O desmonte da saúde mental no Rio de Janeiro

Falar de saúde mental é falar de uma área muito importante da saúde. Afinal, o usuário da saúde mental circula por toda a rede de saúde, passando por todos os serviços da área, hoje tão precarizada. Ao mesmo tempo, é necessário falar sobre o paradigma sanidade-loucura, pois esta maneira de entender a realidade vem sendo disseminada e naturalizada há muitas décadas e tida como verdade para a maioria da população. Isso acabou gerando práticas como exclusão, discriminação, encarceramento e despotencialização medicamentosa.

Tais práticas foram aplicadas durante séculos em hospitais psiquiátricos no mundo inteiro, mas também foram questionadas em vários momentos da história. Um dos mais importantes foi a reforma psiquiátrica italiana capitaneada por Franco Basaglia nos anos 1970. Desde então, a antiga lógica dos manicômios vem sendo desconstruída também no Brasil, visando o tratamento de pessoas com transtornos psiquiátricos. Para tal, foram criados serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, como os CAPS (centros de atenção psicossocial), RTs (residências terapêuticas) e as moradias assistidas.

As práticas manicomiais permanecem

Entretanto, com o passar dos 40 anos da reforma no Brasil, fica claro que não basta apenas desativar as instituições físicas, pois as práticas manicomiais podem continuar nesses novos espaços. Assim, há o risco de que os CAPS se tornem meros ambulatórios para dispensação de medicamentos e as RTs virem “mini-hospícios”. Para que isso não ocorra, é necessário um amplo debate sobre o tema na sociedade e que a formação dos profissionais de saúde tenha a saúde mental como um dos seus eixos.

O constante desafio para uma política de saúde mental de qualidade requer, antes de mais nada, uma gestão que entenda a delicadeza e especificidade do trabalho realizado na área. Entretanto, não é isso o que vem ocorrendo. Por exemplo, na rede de saúde mental do município do Rio de Janeiro, o que se vê hoje é uma lógica de sucateamento sistemática dos serviços, com o intuito claro de passar a administração para as OSS (Organizações Sociais de Saúde). Ou seja, o objetivo é de privatizar os serviços!

As RTs do município, neste ano, passam pelo pior momento desde a sua implantação, por conta de um atraso na renovação do convênio da Apacojum (Associação de Parentes e Amigos dos Pacientes do Complexo Juliano Moreira, uma organização com uma história de luta antimanicomial, que tocava o programa das RTs de toda a cidade). Houve suspensão de férias, impossibilidade de contratações e demissões, não houve reposição dos profissionais que saíram, não foram inauguradas novas SRTs (Serviços Residenciais Terapêuticos) devido à falta de verbas, sem falar na impossibilidade da realização de manutenção e reparos nas casas que fazem parte do programa. Além disso, os funcionários tiveram sucessivos atrasos nos salários, com informações desencontradas por parte da Superintendência de Saúde Mental do município.

A única saída: luta!

Após um longo e desgastante processo, a Apacojum foi substituída pela Cieds, uma ONG inexperiente na área e que vem se tornando gestora da maioria dos equipamentos da saúde mental do Rio. O detalhe é que os ex-funcionários da Apacojum, ao serem demitidos, não receberam o pagamento da rescisão contratual, direito de todo trabalhador.

A única saída para essa crise é a união dos trabalhadores para denunciar essa situação de calamidade! Não é possível manter um sistema de saúde de qualidade quando o trabalhador não é valorizado e nem tem os seus direitos respeitados!

Novo ministro da saúde, novas ameaças

Outro fator preocupante, agora a nível nacional, é a nomeação do deputado federal Marcelo Castro (PMDB) como o novo Ministro da Saúde do governo Dilma. Provavelmente, o novo ministro irá chamar para a Coordenação de Saúde Mental o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria e atual diretor do Hospital São Pedro (Porto Alegre-RS), deputado Osmar Terra. O deputado, além de estar revertendo o processo de reforma psiquiátrica naquela instituição, é o autor do Projeto de Lei 7663/2010, que propõe o aumento das penas por porte de drogas para consumo próprio e tráfico. Esse Projeto de Lei defende absurdos como internações involuntárias para tratamento dos dependentes químicos (não levando em conta as recaídas tão comuns nesse tipo de tratamento), criação de um sistema paralelo ao SUS para atendimento de usuários, internações prolongadas em comunidades terapêuticas religiosas e a criação de um Cadastro Nacional de Usuários de Drogas.

Esse é um tremendo retrocesso para a política nacional de saúde mental, álcool e outras drogas desenvolvida nas ultimas décadas no país. Por isso, está havendo uma mobilização de mais de 400 entidades, coletivos, grupos e movimentos sociais antimanicomiais de todo o país, além de organizações de defesa da saúde pública, no intuito de imediatamente protocolar uma carta e marcar uma audiência com o novo ministro. É necessário lembrá-lo dos interesses majoritários que têm implementado a reforma psiquiátrica como política de Estado, votada nas quatro conferências nacionais de saúde mental que tivemos até hoje no país, bem como nas convenções da ONU assinadas pelo Brasil e pela legislação de direitos humanos e para pessoas com deficiência (que incluem as pessoas com transtorno mental) em nosso país.

Para além do debate sobre qual é a melhor política de saúde mental a ser adotada, é necessário pensarmos na produção da “loucura”, tema que cabe a todo o conjunto da sociedade, pois diz respeito à forma na qual vivemos e como queremos viver.

Então, cabe elaborarmos uma pergunta: queremos uma sociedade que nos oprime e explora constantemente, polui nossos corpos através de alimentação de péssima qualidade, nos aliena com informações pobres veiculadas nos meios de comunicação, retira todos os recursos do ambiente sem pensar nas consequências futuras e privilegia poucos em detrimento da maioria? A realidade na qual vivemos produz comportamentos que geram sofrimento psíquico intenso – estes ganham nomenclaturas como pânico, depressão, transtorno bipolar, “burnout”, transtorno obsessivo compulsivo, transtorno do déficit de atenção, entre outros, tidos como doenças do século XXI.

Questionar os padrões e os patrões

A sociedade na qual vivemos, segundo a psicoterapeuta Suely Rolnik, produz em nós três principais medos: o medo de morrer, de não ser bem sucedido e o de enlouquecer. Este último confronta todos os nossos desejos e nos faz sustentar os padrões sociais vigentes, nos faz guardiões de uma ordem que não nos serve e nos faz mestres em desqualificar as nossas próprias potências. A loucura é balizada por uma noção do que é ser normal – ou seja, ser louco é diferir, estar fora dos padrões. O questionamento desses padrões comportamentais é fundamental para revermos o sistema no qual vivemos.

O capitalismo necessita de corpos e mentes dóceis para a sua produção cada vez mais intensa e modula à sua vontade a maneira como vivemos sob o planeta. Ou seja, se não tomarmos as rédeas das nossas vidas, continuaremos nadando com vontade para a boca dos tubarões.

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