Pandemias para alguns corpos
Brasil ultrapassou na semana passada os 3oo mil mortos, alguns flagelados física ou mentalmente e outros socio-economicamente miseráveis.
Mas como é de costume, na sociedade altamente segregada e desigual, as hordas infecciosas encontram hospedeiros mais frequentes nos mais vulneráveis, conseguindo multiplicar numericamente infecções e aumentar curva parasita-hospedeiro para índices alarmantes.
A seguir, destaco alguns casos no Brasil relacionado à temática:
O mosquito Aedes vem desde o século XIX na história do Brasil sendo um vetor de doenças que tiveram amplo alcance e alto recorrência na população brasileira. A cada verão a dengue volta ao Brasil, mas no verão de 2016 o conhecido Aedes trazia outros tipos de arboviroses: chikungunya e o zikavírus. Naquele surto, outros corpos poderiam estar em risco, exemplo os feto que poderiam ser acometidos pelo zikavírus e os corpos que realizavam Olimpíadas 2016. Desde então, somos mundialmente “não sanitizados”.
Outro caso diz respeito as infecções da febre amarela que são endêmicas de áreas de matas e recorrentes nas áreas rurais e florestais. São alvos do mosquito Haemagogus e Sabethes os corpos dos povos das florestas e do campo, que não têm visibilidade midiáticas ou apelos comerciais. Mas somente quando a febre amarela começou adoecer corpos metropolitanos e urbanizados, alvos do vetor Aedes entre 2016 e 2017, que houve mobilização dos equipamentos de saúde para combate incisivo contra febre amarela. Talvez porque o avanço parasitário no novo vetor Aedes incidia em corpos com grande atenção em vigilância em saúde, ao contrário da desatenção aos corpos que “conviviam” com as infecções e agravamentos da doença nas regiões de floresta e campo.
Em seguida, passamos para o surto das infecções sexuais. A sífilis ataca fortemente quem não tem ou usa preservativos ou deixa de fazer o aconselhamento de saúde sexual. Esses corpos que são contaminados acabam gerando uma cadeia de complicações que mira as gestantes e seus bebês, e resulta no que conhecemos por sífilis congênita. Mas dos corpos mais socialmente julgados para os corpos mais puramente concebidos, os programas de saúde no combate as IST ainda falham para que essa cadeia não ocorra.
Agora com a COVID-19 o acometimento é respiratório e o vetor são os ares contaminados. Essa ameaça que aterrissou no Brasil tem estigmatizado os corpos dos “fracos, doentes e idosos” lhes impondo uma sentença de morte. Foi realizado um corte para que parte da classe trabalhadora não parasse de trabalhar, criaram os corpos de “trabalhadores essenciais”, uma essencialidade pouco articulada com as necessidades da população. Todos somos trabalhadores essenciais, só que uns produzindo recursos durante a pandemia, e outros produzindo a continuidade da comunidade brasileira mais isoladamente possível. Os corpos dos trabalhadores que foram formalizados como “essenciais” estão grandemente marcados como corpos pandêmicos — corpos passíveis de doenças — devido o alto risco que o negacionismo/inanição/corrupção/precarização impõe, juntos com a numericamente grande camada dos corpos dos famélicos de subsistência, aqueles se expuseram na pandemia para simplesmente existir no mundo.
Somos e estamos uma grande população de famélicos da subsistência, ora comendo ora tentando garantir o que comer! Marcados pelo neocolonialismo, pela divisão internacional do trabalho e pelo neoliberalismo.
Mente quem diz que a pandemia pegou de “surpresa” os gestores brasileiros. Como vimos, os brasileiros vivem surto após surto de doença infecciosas, convivem com uma gama de patógenos a cada sazonalidade tropical ou subtropical, e a desigualdade entre as classes é um fator relevante que, na maior parte das vezes determina quem adoece e morre. E o que determina a ação dos governos está, grande parte das vezes também, vinculado ao impacto econômico indesejado que os corpos pandêmicos podem causar.
Existem corpos que podem demandar recursos biotecnológicos e de atenção em saúde, estes os industriais, políticos e comerciantes dão especial atenção e mobilização. Outros corpos servem de “diluentes” da pressão sanitária do coronavírus, são os “braços” das “cabeças” virtuais criadas nestas pandemias.
Então sim, o lockdown, é necessário para que os “braços” não sejam substituídos a cada boletim diário de mortalidade. E, diante da ausência de medidas no sentido de garantir o isolamento social, é preciso que a gente construa uma greve sanitária! Temos que parar de deixar nossos organismos à mercê de patologias infecciosas evitáveis!
Após 1 ano de pandemia e dos surtos aqui mencionados, devemos nos perguntar em que a política pública de vigilância em saúde e a vigilância sanitária precisam avançar para prevenir que os corpos dos brasileiros sejam como “baús” infecciosos.
Por que as organizações internacionais não conseguem estabelecer uma medicina tropical sólida nos países acometidos pelas doenças negligenciadas? Por que as patentes são mais fortes do que a nossa necessidade por produtos biotecnológicos, principalmente as demandas de países populosos e de pobres como o nosso? Quantos apartheids vacinais os corpos pandêmicos viverão nesta e nas próximas pandemias ocasionadas pela atual crise ambiental? Teremos quantos anos de variações da COVID sobre esses corpos pandêmicos?
Acho que a resposta óbvia é que o sistema capitalista e do mercantilismo médico que faturam pelo adoecimento coletivo é falido pra atender a promoção e prevenção da vida dos nossos corpos. O papel que as burocracias estatais e privadas são clara evidência da compactuação do nosso adoecimento: Conselho de Medicina conivência com prescrições de medicamentos ineficazes; desinvestimento em saúde pública mesmo em surtos e pandemias; lobby de empresas privadas para furar fila de vacinação; contingenciamento de insumos e equipamentos de saúde em países ricos etc.
A resposta para essas perguntas encontramos ao analisar a fundo o sistema capitalista, que transforma a saúde, nossa força de trabalho, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia em mercadorias, faturando com o adoecimento coletivo e falhando em atender a promoção e prevenção da vida dos nossos corpos. O desdobramento do novo coronavírus no Brasil e no mundo tem pedagogicamente demonstrado isso: o desinvestimento em saúde pública mesmo em contexto de surtos e pandemias, lobby das empresas privadas para furar fila de vacinação; contingenciamento de insumos e equipamentos de saúde em países ricos e a recente lei que avança na privatização ao permitir a contratação privada de leitos de UTI para SUS. Os interesses de classe que se interpõem na defesa da vida levam até mesmo o Conselho Federal de Medicina durante essa pandemia, ser conivente com prescrições de medicamentos ineficazes.
Fazer do fôlego humano moeda de troca só cria mundialmente literal sufocamento da nossa existência.