Reflexões sobre o “Fifagate”: há possibilidades de mudança?
O futebol é dos esportes mais populares do mundo! Seja no interior do Amazonas, em um bairro de periferia em Luanda ou em Berlim, é um dos mais vistos e praticados. O jogo é simples, sequer exige uma estrutura sofisticada para a sua prática – quem não se recorda da perda dos “tampões” do dedão do pé nas famosas “peladas” de rua –, assim como sua transmissão – um jogo do campeonato nacional japonês pode ser exibido sem maiores obstáculos aqui no Brasil, basta um narrador apresentando o nome dos jogadores.
A simplicidade desse esporte são elementos para relevarmos o quanto da sua ampliação e popularização no mundo! Porém, nas últimas décadas, o capitalismo vem avançando com profunda voracidade sobre ele, transformando-o num mero espetáculo mercadológico para uma pequena elite e excluindo a leal plateia composta por trabalhadores. Tal fenômeno se caracteriza por uma complexa engenharia onde grandes empresários, executivos de TV, dirigentes do setor, assim como políticos afora se articulam em esquemas corruptos de favorecimento, algo normatizado dentro do sistema capitalista. Porém, nas últimas semanas, após investigações do FBI, grandes figuras da principal entidade futebolista do mundo, a Federação Internacional de Futebol (FIFA), viram seus “castelos de areia” serem desmoronados – algo que ocasionou no que pode ser compreendido como uma das maiores evidências do verdadeiro papel desta entidade.
A FIFA
Fundada no ano de 1904 em Paris por iniciativa de quatro dirigentes europeus ambiciosos em promover um torneio internacional e a profissionalização do esporte, a entidade no decorrer da sua história teria um papel fundamental no que compete a expansão da profissionalização e propaganda do esporte no mundo. Caracterização essa que percorreu relevantes contradições, principalmente na condução das ideologias dominantes, principalmente, a partir da gestão do brasileiro João Havelange (1974-1998), destacado por sua profunda afinidade com as ditaduras militares na América Latina. O próprio caráter autoritário da instituição, onde em mais de cem anos se teve apenas oito presidentes (número inferior ao de papas na Igreja Católica, por exemplo), já nos dá uma indicação da falta de democracia dessa entidade.
A visão do futebol enquanto uma importante ferramenta mercadológica, intensificada nos anos 1990, permitiu que diversas empresas ampliassem uma busca desenfreada em capilarizar seus tentáculos no esporte. Seja no envolvimento em patrocínio de campeonatos, clubes ou seleções de futebol, criação de agências para administração de contrato de jogadores, relações com emissoras de TV, dentre uma série de questões que elevaram a FIFA como um nicho privilegiado de acordões ilegais que estabeleciam desde “moedas de troca” para a escolha de sedes da Copa do Mundo, acompanhada sempre de enriquecimento ilícitos de grandes executivos da federação, assim como lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Isso é algo que já vinha sendo exposto pelo escocês Andrew Jennings no livro “Jogo Sujo” (2011), onde diversos representantes eram citados nos esquemas de corrupção, com destaque para o acusado nas recentes investigações, o brasileiro José Maria Marín, ex-governador de São Paulo (1982-1983), reconhecido defensor da ditadura militar nos anos de chumbo, vice-presidente da CBF e presidente do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo no Brasil em 2014.
O avanço das investigações se deu com a confirmação de recebimento de suborno por parte do americano Chuck Blazer, ex-membro do poder executivo da Fifa, no processo de escolha da França (1998) e África do Sul (2010) como sede da Copa nos respectivos anos citados. Apesar de não ser um “apaixonado” pelo esporte, Blazer viu uma possibilidade de enriquecimento ao se envolver com o futebol, o que lhe garantiu uma vida extremamente luxuosa e chamou a atenção do governo americano, principalmente, quando envolveram instituições norte-americanas, como os bancos Delta, JP Morgan Chase, Citibank e Bank of America, ou filiais nos EUA de instituições estrangeiras, como os bancos brasileiros Itaú e Banco do Brasil, no depósito do dinheiro recebido com as propinas.
Até o momento, 14 pessoas do alto escalão da entidade foram acusadas numa operação que, segundo o departamento de justiça americano, envolveria cerca de US$150 milhões em propinas. Contexto que respingou no reeleito para o quinto mandato, agora ex-presidente da Fifa, Joseph Blatter, que após uma semana do pleito de sua eleição, fez uma declaração de saída da presidência da entidade, por conta da pressão de grandes patrocinadores do esporte, incomodados com a queda de suas ações na bolsa, devido a desmoralização da entidade.
Qual a repercussão disso no Brasil?
A corrupção no futebol brasileiro é ainda mais agravante, principalmente, em virtude do que se pode dizer do apoio da “bancada futebolista”, parlamentares que possuem relações horizontais com burocratas do futebol no país – como, por exemplo, Ricardo Teixeira, ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), promotor de “agrados” a esses parlamentares, como podemos ver nesse exemplo num amistoso da seleção brasileira no Mineirão em 2004.
A famosa CPI do futebol em 2011 levantou excelentes dados referentes a fraudes da entidade, assim como de dirigentes e clubes de futebol. Porém, foi sufocada pela famosa “pizza”, nomenclatura popularizada quando se referencia comissões parlamentares que não se desdobram em ações junto aos acusados.
Apesar dessas questões, as denúncias sobre Marín vêm acompanhadas de pesadas acusações sobre a entidade brasileira que repercutem em Teixeira, Del Nero, dentre outros. Além de “esquemões” envolvendo suborno para o monopólio de transmissão de campeonatos de futebol (ligações com a empresa Traffic e com fortes possibilidades de recaírem junto à famigerada Rede Globo de Televisão), há irregularidades no contrato entre a empresa esportiva Nike e a CBF: relatórios do FBI indicam que dirigentes se apropriaram indevidamente de parcelas do pagamento da empresa esportiva mandando parte do dinheiro para a Suíça.
Apesar de usar símbolos do Estado brasileiro, como a bandeira e o hino, a CBF é compreendida enquanto instituição privada. Isso lhe dá legitimidade para atuar enquanto uma empresa que lucra explorando adereços do país. Confusão que também se encontra na organização dos campeonatos nacionais, principalmente na concessão das cotas de TVs, onde sempre a Rede Globo é beneficiada nas transmissões dos jogos e decide inclusive os horários das partidas de acordo com sua programação. Pareada a essa questão temos, novamente, a exemplo da Fifa, a presença do autoritarismo na escolha dos representantes da entidade, sempre com longos mandatos e continuidade de políticas, além da gerência direta nos clubes brasileiros, retirando deles qualquer autonomia.
É possível mudar?
Há quem reproduza a máxima “o futebol é ópio do povo”, portanto as denúncias de corrupção só corroboram isso. Provavelmente, tal afirmação sequer leva em conta a história do esporte, seja em sua trajetória mundo afora, onde muitos times surgiram de fábricas de trabalhadores, assim como seu caráter de resistência, seja na resistência ao imperialismo, ditaduras ou ataques ao trabalhadores. Recordemos do recente “Fora Beto Richa” na final do campeonato paranaense de 2015 onde torcedores se solidarizam aos ataques do governo estadual contra os profissionais de educação em greve.
Esse caráter libertário do futebol se torna mais evidente quando analisamos os recentes movimentos críticos ao atual estado de condução desse esporte tão apaixonante pelos brasileiros. Lembremos do Bom Senso Futebol Clube, coletivo organizado pelos jogadores de futebol no Brasil incomodados com a ditadura dos dirigentes e das emissoras de TV, além da Frente Nacional de Torcedores, movimento contestatório à elitização do futebol e reivindicativo à sua democratização e popularização.
Tais elementos nos dão suporte para melhor visualizar uma transformação do futebol, ampliando-o enquanto uma importante ferramenta emancipatória, estabelecendo seus limites e contradições, sem desprezar seus avanços. Características que serão melhores elaboradas diante de sua democratização, a começar pelas principais entidades representativas, “viciadas” em “esquemões” e reféns de um modelo de gestão empresarial do esporte, que pouco incorpora as demandas de torcedores e jogadores.
Porém, apesar das recentes denúncias e acusações de corrupções junto às diversas figuras do alto escalão da FIFA e CBF, pouco se tem mudado a postura das mesmas, emergindo “coringas alternativos” que apenas cumprem o continuísmo da ditadura do capital destas organizações. Nesse sentido, mudanças relevantes só serão possíveis com a organização dos torcedores e jogadores, os principais interessados na progressão e democratização do esporte.
Que as recentes denúncias sirvam como um importante impulso para a reflexão dos caminhos do futebol mundial, principalmente no nosso país. Em tempos de extinção da “geral” (espaço popular do antigo Maracanã) e ampliação de camarotes, é chegada a hora de maior organização dos trabalhadores para construirmos um futebol popular e democrático.