Desastres imigratórios – o custo humano dos cortes orçamentários

O enésimo naufrágio de um navio de imigrantes no Mar Mediterrâneo e as mortes de 800 a 900 pessoas em um único naufrágio fizeram com que os holofotes do mundo inteiro se voltassem à tragédia humanitária de incalculáveis dimensões que está se desenvolvendo a poucos quilômetros da costa da Europa. Dessa vez aconteceu numa noite de sábado para domingo (18 e 19 de abril) no Mar Mediterrâneo. Apesar do seu caráter apocalíptico, esse massacre não é nenhuma novidade. É apenas a última de uma longa série de tragédias, com milhares de vítimas, cuja maioria são jovens oriundos da África Subsaariana e do Oriente Médio, fugindo de guerras e da devastação que o capitalismo traz.

O caráter comum dessa tragédia é demonstrado pelo fato de que, apenas em 2014, mais de 3 mil pessoas se afogaram (o naufrágio do Titanic resultou em 1.500 mortes). O Mar Mediterrâneo é, de acordo com um estudo da ONU, a “estrada” mais perigosa do mundo. Enquanto mais cadáveres continuam sendo retirados do mar e milhares de pessoas estão digerindo o choque dessa tragédia sem precedentes, chegam notícias de novos massacres de imigrantes iguais a esses que aconteceram depois de dois dias na costa da ilha grega de Rhodes, onde outros cem imigrantes viajando da Turquia perderam suas vidas. Números anônimos que escondem a perda de jovens vidas de países devastados pela pobreza e pela guerra.

Essas tragédias abalaram a consciência de milhares de pessoas ao redor do mundo e, particularmente, milhares de cidadãos italianos acostumados, como tal, a viver em um tipo diferente de costa do Mediterrâneo – aquela com sombras de pinheiros e de dias com a família na praia. Por outro lado, essas tragédias podem reforçar a demanda pelo fechamento das fronteiras feita por alguns setores da população no contexto de recursos sendo aproveitados ao máximo por causa da crise e se aproximar da retórica anti-imigração utilizada pelo partido de direita Liga Norte e amplificada pela mídia.

Como era de se esperar, todos os políticos líderes do “País Belo” (Bel Paese), desde o líder da Liga Norte, Salvini, Georgia Meloni (líder do “Fratelli d’Italia”, racha direitista do partido do Berlusconi) até o “radical” Nichi Vendola, têm avidamente tirado vantagem da ocasião para falar sobre si mesmos e fazer com que outros falem deles também – comentando sobre os eventos e colocando as interpretações e soluções mais improváveis.

Consideramos as palavras de Daniela Santanchè, uma das apoiadoras mais direitistas de Berlusconi, que sugeriu afundar os barcos no mar, revoltantes e pensamos que elas expressam apenas a desumanidade insensível da mesma. Mas, ao mesmo tempo, não cairemos no jogo moralizante daqueles que a atacaram – os “chacais” – por esconder suas próprias responsabilidades que são tão sérias quanto. Os partidos do governo e uma grande parte da oposição têm, por anos, apoiado a política internacional da União Europeia, incluindo o bombardeio na Líbia em 2011, o qual contribuiu para a situação atual.

A destruição do regime de Gaddafi pela intervenção militar da França e da Inglaterra, apoiada pelo presidente italiano, Napolitano, e “de forma crítica” pelo líder direitista, Berlusconi, destruiu a integridade territorial do estado da Líbia, enfraquecendo os acordos feitos com o ocidente pelas autoridades líbias anteriores sobre o controle do fluxo de imigrações.

O aparato do estado Líbio não existe mais. Em seu lugar, existem entidades políticas que não reconhecem umas às outras e que estão lutando entre si no contexto de um mosaico complexo de clãs e tribos, dentro dos quais também operam grupos jihadistas. A linha costeira da Líbia está repleta de enormes campos de prisão com milhares de nigerianos, etiópios, eritreus, somalis, ganenses e sudaneses que vivem em condições de pobreza absoluta e semiescravidão, tratados como commodities para troca fazendo lucros enormes para traficantes mas, sobretudo, para as organizações criminosas que estão por traz dos mesmos. Os imigrantes, forçados a pagar milhares de euros para a jornada até a Europa, são mercadorias utilizadas para produzir lucro e são a ameaça da chantagem à Europa nas mãos desses traficantes. Por isso as saídas da Líbia aumentaram, aumentarão nos meses subsequentes, e continuarão a aumentar.

De acordo com algumas estimativas feitas por ONGs que operam no território Líbio, existem mais de um milhão de refugiados no país prontos para ir embora e alcançar o continente europeu através da Itália. A chegada do verão só vai acelerar a frequência dessas jornadas.

O massacre de 18-19 de abril se inscreverá na história como um massacre antecipado – um massacre previsto e que poderia ser prevenido.

O que era o Mare Nostrum?

O naufrágio de uma embarcação líbia no dia 3 de outubro de 2013, a alguns quilômetros do porto de Lampedusa, que matou 366 pessoas, causou uma onda de protestos e de pressões políticas nacionais e internacionais, que forçou o governo liderado por Enrico Letta a intervir para evitar que eventos parecidos se repetissem. Cercados pela opinião pública, Vaticano e setores da União Europeia, o governo de Letta decidiu lançar a Operação Mare Nostrum em 14 de outubro de 2013. Essa operação era uma missão militar e humanitária cujos objetivos principais eram assistência marítima e resgate dos imigrantes.

Ao longo de mais ou menos um ano e com 558 intervenções, a Mare Nostrum assistiu à segurança de mais de cem mil imigrantes, salvando as vidas de mais de trinta mil pessoas. Ela custou 114 milhões de euros – 9,5 milhões por mês. Não obstante seu sucesso, a operação foi cancelada, como um dos muitos cortes de gastos públicos, e substituída pelas operações europeias chamadas de Frontex Plus e Triton. Estas operações, muito embora envolvessem 29 países, tinham um orçamento de apenas 2,9 milhões equivalentes a um terço do custo mensal da Mare Nostrum.

A operação Triton tinha objetivos bastante diferentes da Mare Nostrum. Ela cobria o controle das fronteiras e assistência marítima apenas no caso de embarcações a trinta milhas (aproximadamente 30 quilômetros) da costa italiana. Conforme Gil Arias Fernandez, diretor executivo da Frontex, Mare Nostrum e Triton explicou, Triton tinha como objetivo principal o controle das fronteiras e não a localização e resgate, os quais eram o objetivo central da operação italiana.

Ação Urgente

Para tentar prevenir que novas catástrofes aconteçam, um plano de assistência marítima internacional precisa ser reestabelecido em águas internacionais e, caso necessário, nas águas da Líbia. A assistência deverá ser garantida para todos os seres humanos. Nenhuma consideração política acerca de questões imigratórias poderá negligenciar esse fato básico.

A classe capitalista italiana não está disposta a se responsabilizar pelo custo total da reintrodução de uma operação tal qual a Mare Nostrum, e está pedindo auxílio à União Europeia. Por outro lado, é evidente que tais custos não deverão ser retirados a partir de cortes de assistência social ou impostos sobre trabalhadores e classe média. A União Europeia não pode existir apenas para demandar sacrifícios da Grécia, revisão de gastos e austeridade.

Todas as soluções que os políticos italianos e europeus estão alardeando – auxílio ao governo “legítimo” em Tobruk, envio de uma força de paz à Líbia, um bloqueio naval no mediterrâneo, a abertura de centros de detenção no solo líbio, afundar barcos com a cobertura da ONU – são propostas impraticáveis, sem nenhum efeito e que demonstram a total incapacidade dos políticos europeus de enfrentar os principais problemas de nosso tempo.

Chorar lágrimas de crocodilo sobre as tragédias criando “dias de memória” e fornecendo funerais estatais não devolverá a vida ou dignidade daqueles sujeitos infelizes que morreram no Mediterrâneo!

A solidariedade e assistência espontâneas e desinteressadas das pessoas de Lampedusa, Catania e Palermo tem sido o oposto às palavras vazias dos políticos nos últimos anos. Essa é a melhor resposta a qualquer pessoa que, meio a tantos políticos, explore cinicamente esses eventos, lucrando de forma ignóbil com as tragédias dos outros. Mas a solidariedade e generosidade dos cidadãos italianos não são suficientes para impedir essas tragédias.

Conclusão

Existe um problema imediato – não deixar que milhares de pessoas morram. Isso só poderá ser resolvido através da mobilização de todos os meios disponíveis. O controle sobre todas as decisões que afetam imigrantes deverá estar nas mãos de representantes de trabalhadores comuns e não de políticos ricos que protegem seus próprios interesses.

Não é suficiente tentar lidar com as consequências do problema: ele deve ser resolvido.

No contexto de uma economia capitalista, de especulação sobre os preços de matérias-primas, larga pobreza e conflitos alimentados pelo imperialismo ocidental (incluindo o imperialismo italiano) o fenômeno de imigração em massa é algo inevitável. Considerando que a Europa não pode ser cercada por arames farpados, a solução do problema deverá ser política.

Apenas uma sociedade livre de pobreza, da exploração do trabalho e da guerra será capaz de garantir para cada ser humano a liberdade para escolher entre viver com dignidade em seus próprios países ou migrar para outro país, sem ter medo das consequências de tal escolha. Isso é o que chamamos de uma sociedade socialista.

Um primeiro passo em direção a essa sociedade é rejeitar uma política que constantemente utiliza nosso dinheiro para financiar seus tráficos desonestos sob o pretexto de cooperativas que trabalham com imigração e “cooperação internacional” e que financia expedições militares para fora do país, o que por sua vez leva a uma explosão de imigração em massa.

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