O levante de Soweto de 1976 – A luta por libertação social continua
Às 7 AM de 16 de junho de 1976, milhares de estudantes africanos em Soweto se reuniram num ponto de reunião pré-determinado para a manifestação. Eles lançaram um movimento que começou em oposição à imposição do Afrikaans como meio de instrução (nas escolas africanas) e se desenvolveu, em 20 meses, num levante dos jovens de todo o país contra o regime do apartheid.
Este movimento custou a vida de mais de mil jovens. Mas, como um terremoto, abriu uma enorme fissura na história sul-africana, separando uma era de outra. Politizou toda uma geração de jovens, e relegou para a memória a era de derrotas dos anos 60. Anunciou a determinação dos jovens de terminar com um dos mais bárbaros exemplos da moderna escravidão capitalista.
A versão original deste artigo comemorava o 10º aniversário do levante de Soweto, aparecendo na edição de setembro de 1986 do Inqaba Ya Basebenzi (Fortaleza da Revolução). Inqaba era o jornal da Tendência dos Trabalhadores Marxistas do Congresso Nacional Africano (CNA), predecessor do Movimento Socialista Democrático (DSM – CIO na África do Sul). O autor, Weizmann Hamilton, escrevendo no exílio sob o pseudônimo Basil Hendrickse, foi um ativista do movimento Consciência Negra. Ele serviu duas penas de detenção em confinamento solitário antes de ser posto sob proibição e prisão domiciliar. O artigo concluía com um chamado para construir um CNA de massas sobre um programa socialista. O CNA chegou ao poder em 1994 num acordo negociado. Tendo já abandonado a Carta da Liberdade, e seu chamado pela nacionalização dos setores-chave da economia, o CNA, depois de um breve flerte com um meio reformista Programa de Reconstrução e Desenvolvimento, adotou a economia política neo-liberal Programa de Crescimento, Emprego e Redistribuição (Gear). Vinte anos depois da queda do governo da minoria branca, um novo apartheid de classe caracteriza a África do Sul. O país possui 40% de desempregados, mais de 50% da população vivendo na pobreza, e o maior índice de infecção de HIV/Aids do mundo. Fora continuar a ditadura econômica da classe capitalista branca, o reino do CNA beneficiou apenas uma minúscula elite negra que se tornou obscenamente rica de um dia para o outro à medida que a classe capitalista ainda predominantemente branca assimila os capitalistas negros em suas fileiras. A juventude suportou o peso das políticas capitalistas do governo. Menos de 50% dos que começam a escola terminam o ano final. Desigualdades na educação vivem como um insulto à memória da geração de 1976. Matriculas e mensalidades resultam em milhares sendo excluídos das instituições de ensino e protestos são agora um evento anual. As condições estão sendo preparadas para um conflito social explosivo. Em 2005, houve mais de 5 mil protestos contra a corrupção e os precários serviços sociais. A corrupção e processo de estupro do antigo deputado-presidente demitido, Jacob Zuma, que jogou o CNA na sua mais profunda crise desde sua fundação em 1912 e produziu um tensionamento insuportável na Tripla Aliança do CNA, Partido Comunista Sul-Africano e o Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos, é um reflexo distorcido da profunda polarização de classe na sociedade. Com o CNA transformado num agente consciente do capitalismo, hoje, o DSM luta por um partido de massas dos trabalhadores com um programa socialista.
|
Desde fevereiro de 1976, a raiva vinha se acumulando sobre a aplicação do regime do Afrikaans como meio de instrução – uma raiva rapidamente dirigida contra todo sistema de ‘Educação Bantu’. Introduzida em 1955, a Educação Bantu foi criada não apenas para por cada obstáculo possível no caminho do desenvolvimento intelectual dos negros africanos, mas conscientemente criar um proletariado explorado como mão de obra barata.
Mas a enorme expansão da economia capitalista trouxe a necessidade de mão de obra qualificada em conflito direto com a necessidade de trabalho barato, produzindo uma crise séria nas escolas. Sob a Educação Bantu, a pobreza negra africana e o custo da educação combinaram para produzir uma alta evasão escolar. Em 1975, menos de 10% dos estudantes negros africanos recebiam educação secundária e 0.24% estavam no nível 5 (o ano final da escola secundária, também chamada ‘matric’). A falta de qualificação forçou o governo a introduzir algumas mudanças. A extensão da carreira escolar foi reduzida de 13 para 12 anos. A nota de aprovação para a admissão à escola secundária foi reduzida de 50 para 40%, aumentando a admissão.
O resultado foi o caos. Um observador em janeiro de 1973 revelou que um quarto de todas escolas registradas não tinha prédios seus mas se congregava em salões de igreja, barracas ou salas ‘emprestadas’de outras escolas à tarde. Este estado de coisas causou enorme amargura entre os pais. Muitos consideravam a educação (apesar de suas deficiências) como o canal que poderia fazer suas crianças saírem da pobreza que parecia inevitável para muitos da classe trabalhadora negra.
Nestas condições, a tentativa de impor o Afrikaans – a língua do estado do apartheid – nas escolas, juntou o insulto à injuria. Isso provocou a oposição mesmo entre elementos conservadores do quadro escolar. Começando com o boicote às classes Afrikaans, os estudantes rapidamente começaram a boicotar todas as classes. No começo de junho vários milhares de alunos de 7 escolas estavam em greve.
16 de junho
Em 13 de junho, o movimento de estudantes sul-africanos chamou uma reunião no centro comunitário Donaldson em Orlando. 300 a 400 estudantes representando 55 escolas decidiram começar uma manifestação de massas em 16 de junho. Um comitê de ação, depois conhecido como Conselho Representativo dos Estudantes de Soweto (SSRC), foi eleito para liderar a campanha. Consistia de 2 delegados de cada escola, reunidos em segredo e usando pseudônimos.
Em 16 de junho, colunas de jovens saíram de pontos de reunião selecionados num tempo específico para manter a disciplina e alargar as linhas policiais o máximo possível. Uma dúzia de escolas serviu como pontos de encontro, no caminho para o destino final, o estádio Orlando, para um comício. Apesar de brigas com a polícia, a maioria dos manifestantes alcançou o último ponto de reunião em Orlando West.
Contudo, já que centenas ainda marchavam para Orlando, um grande contingente da policia chegou em vans e se espalhou em frente aos manifestantes na forma de um arco. Desafiadoramente, os estudantes continuaram cantando músicas de liberdade. De repente um policial branco atirou uma lata de gás em frente aos estudantes. Eles se retiraram um pouco, mas mantiveram o terreno cantando e segurando cartazes, onde se lia: ‘Fora com o Afrikaans’, ‘Negros não são latas de lixo’, ‘Afrikaans é uma língua tribal’, etc.
Então um policial branco sacou seu revólver e atirou direto nos estudantes desarmados. Hector Petersen, a primeira vitima do levante, caiu em frente a seus camaradas. Outros policiais então abriram fogo.
Os estudantes, muitos deles garotas de 10 a 12 anos, ficaram chocados primeiramente, e ficaram olhando para os corpos dos mortos e feridos. Então sua raiva e fúria subiram. Pegando pedras, tijolos ou qualquer coisa que pudessem ter às mãos, eles avançaram rumo às linhas policiais e as atiravam na polícia. Um jornalista comentou: “O que me assustou mais do que qualquer coisa foi a atitude das crianças. Muitas obviamente estavam em perigo. Elas continuavam indo para a polícia, esquivando e abaixando, apesar do fato de que eles estavam armados e continuavam atirando”. O levante de Soweto tinha começado.
A polícia se retirou, perseguida pelos jovens. Todos os prédios associados de algum modo com o estado – escritórios de administração, correios e especialmente salões de cerveja – foram atacados. Os jovens requisitaram, em nome da revolução, gasolina dos donos de garagem para fazer bombas incendiárias e tacar fogo nestes prédios. Lojas de garrafas foram saqueadas e o líquido esvaziado nas ruas.
Neste meio-tempo, 2 helicópteros do exército circulavam sobre Orlando West, jogando gás lacrimogêneo. 2 unidades especiais de contra-insurgência de Pretoria e Johannesburgo foram empregadas. Pela tarde, 14 transportadores de pessoal, conhecidos como hippos, chegaram na favela. Desenhados para resistir a minas terrestres nas zonas de guerrilha na Namíbia e Zimbábue, eles agora se tornaram uma parte natural do ambiente da favela.
Estimativas das mortes de 16 de junho variam de 25 a 100 pessoas. No 2º dia, 1,500 policiais armados com armas Sten, rifles automáticos e carabinas foram chamados a Soweto e unidades do exército postas em prontidão. Os feridos eram maiores do que no dia anterior, possivelmente centenas mortos. Fogo indiscriminado era a ordem do dia. Levantar o punho fechado e gritar o slogan ‘Amandla!’, era suficiente para justificar uma bala na cabeça. Então ocorreu o batismo político – com balas e gás lacrimogêneo – de toda uma nova geração de jovens trabalhadores em luta.
Muitos pais retornaram ao lar na tarde anterior para encontrar a favela em chamas e seus filhos mortos ou desaparecidos. Muitos espontaneamente não trabalharam em 17 de junho. Estudantes na Universidade de Witwatersrand começaram uma manifestação com um cartaz dizendo: ‘Não comece a revolução sem nós’. Em Soweto o governo deixou escolas na quinta (17 de junho). Na sexta, Soweto foi efetivamente selado, saturada com policiais em comboios armados atirando em qualquer grupo que viam nas ruas.
Neste meio tempo, confrontos estalaram em Tembisa, Kagiso e qualquer lugar perto de Witwatersrand. Nas universidades étnicas de Ngoye e Turfloop, houve boicotes de solidariedade. Turfloop foi fechada em 18 de junho. Em Alexandra, norte de Johannesburgo, os jovens rapidamente perceberam que por si mesmos não poderiam enfrentar a polícia, e apelaram a seus pais, os trabalhadores, para apoiá-los. Em 18 de junho, eles tentaram persuadir trabalhadores a começar uma greve montando piquetes nos terminais de ônibus e estações de trem. Sem preparação adequada, estes primeiros esforços não tiveram sucesso.
Apoio dos trabalhadores
Depois de um fim de semana relativamente tranqüilo, as favelas perto de Pretoria se uniram à luta. Em 22 de junho, mais de mil trabalhadores da fábrica de automóveis Chrysler pararam de trabalhar. Essa foi a 1ª ação grevista consciente em apoio aos estudantes.
Em períodos revolucionários, a classe trabalhadora aprende em dias e horas o que leva anos para aprender em períodos de tranqüilidade entre as casas. A proibição de reuniões públicas imposta pelo governo foi contornada pela organização de funerais de massa, que ocorreram em 22 de junho e foram usados como comícios políticos.
Como em Alexandra, os jovens trabalhadores de Soweto rapidamente viram a necessidade de envolver seus pais. Eles também viram que confinar a frente de batalha contra o estado às favelas era uma limitação. Conseqüentemente, o SSRC tomou a responsabilidade de organizar simultaneamente para 4 de agosto uma marcha estudantil para Johannesburgo e, por 3 dias, a primeira greve geral política na África do Sul desde 1961.
Tal era o sentimento nas favelas que a concessão do regime sobre a questão da língua em 6 de julho não fez absolutamente nenhuma diferença. A revolta era agora dirigida contra o próprio governo. Para assegurar o sucesso da greve uma caixa sinalizadora chave foi sabotada, e todos os trens de Soweto ficaram paralisados. Os jovens montaram piquetes nos pontos de ônibus e estações de trens tentando convencer os trabalhadores a não ir para o serviço. Entre 20.000 e 40.000 marcharam para Johannesburgo, mas foram dispersados poucos quilômetros depois de Soweto. A paralisação nos três dias foi 60% vitoriosa. Encorajados por isso, os estudantes prepararam-se para organizar uma 2ª paralisação de três dias, a começar em 23 de agosto.
Enquanto isso, a revolta se espalhou para estudantes aos Cabos Ocidental e Oriental pela primeira vez. O regime tentou novas táticas: medidas drásticas em todo país foram desencadeadas contra a direção estudantil, com muitos jogados em detenção indefinida.
Para impedir o sucesso da segunda paralisação, o regime tentou semear a desunião. A polícia disse a trabalhadores migrantes Zulu – hospedados em albergues e fisicamente e socialmente segregados das favelas – que os jovens estavam para atacá-los. No segundo dia da paralisação, um dos albergues foi incendiado, provavelmente por um agente provocador. Os trabalhadores migrantes investiram contra as favelas, perseguindo e atacando os moradores, queimando suas casas, estuprando e saqueando – tudo sob proteção policial. Foi uma antecipação das táticas que seriam empregadas numa escala ainda maior em 1985/6.
Na segunda paralisação, aprendendo rapidamente da experiência da primeira, os jovens conduziram uma intensa campanha casa-a-casa explicando as questões a seus pais. A conseqüência foi um nível de sucesso de 80-90%. Além disso, enquanto a 1ª paralisação ficou confinada a Soweto, a segunda recebeu apoio em outras áreas de Witwatersrand. Embora o segundo e terceiro dias fossem menos vitoriosos, foi uma importante conquista da juventude.
Uma 3ª paralisação foi chamada, a mais vitoriosa de todas. No Transvaal (agora dividida nas províncias de Gauteng, Mpumalanga e Limpopo), um apoio sólido de 75%-80% foi sustentada por 3 dias. Em todos eles, três quartos de milhão de trabalhadores participaram nesta ação quase nacional.
Desta vez os trabalhadores migrantes Zulu deram quase apoio total. Os jovens os abordaram de antemão explicando que eles foram usados pelo estado anteriormente, e apelando para eles para apoiar a luta.
Uma 4ª paralisação, chamada por 5 dias, falhou em se materializar. Os jovens ultrapassaram eles mesmo e os trabalhadores não viam mais o objetivo. Apesar deste retrocesso, os jovens permaneceram determinados.
Em abril de 1977, o SSRC lançou uma campanha discutindo uma reivindicação de seus pais, os trabalhadores. A autoridade títere local, o Conselho Urbano Bantu (UBC) decidiu aumentar os aluguéis. O SSRC forçou o UBC a suspender os aumentos, e exigiu a renúncia de todos os vereadores da UBC em junho. Então em Soweto, Alexandra, Mamelodi e Atteridgeville (Pretoria) os jovens forçaram a renúncia dos quadros escolares.
A última onda de insurgência foi após 17 de setembro, quando estudantes saíram em todo país em reação às notícias da morte na prisão do Líder da Consciência Negra (BC), Steve Biko. Motins se espalharam pelo país e especialmente no Cabo Oriental.
Vinte membros do SSRC foram presos no final de agosto e o último presidente do SSRC, Tromfomo Sono, se exilou. Em 19 de outubro, o governo pôs na ilegalidade 17 organizações, a maioria do movimento Consciência Negra. O levante de 1976/77 chegou ao fim.
Sem liderança para o momento, o movimento da juventude retrocedeu e a reação ganhou um fôlego temporário. Mas diferente dos anos 60, a vazante do movimento não indicou uma vitória decisiva para o estado e a reação. A nova geração de jovens trabalhadores foi meramente endurecida e experimentada pelas ações bárbaras do regime. O cenário acalmado foi apenas o prelúdio de confrontos ainda maiores no futuro.
A geração que liderou a revolta de 1976/77 exibiu um heroísmo quase sem paralelo. Mas 1976 não foi um raio no céu azul. O desafio militante da juventude negra – um ingrediente indispensável para sustentar a revolta por mais de 20 meses – refletiu as mudanças que ocorreram na situação objetiva, em particular o balanço de forças entre as classes. Estas mudanças estavam ocorrendo mesmo durante os horas negras da derrota do movimento nos anos 60. De fato esta derrota, e o período de relativa paz de classes que se seguiu nas condições do boom capitalista mundial, forneceu à classe dominante sul-africana a oportunidade de uma expansão econômica sem paralelo.
Este período também viu uma enorme expansão nas forças produtivas: o número, o tamanho, e a mecanização das fábricas, minas e fazendas. De igual modo, houve um enorme crescimento no tamanho e posicionamento estratégico da classe trabalhadora negra. Uma média de crescimento de 5.5% entre 1961 e 1974 dobrou o número de trabalhadores africanos na industria. Ao fim de 1974, os africanos formavam 70.4% da população economicamente ativa. Estas condições colocaram em movimento (nas palavras de Leon Trotsky) um ‘processo molecular’ na consciência da classe trabalhadora africana, curando suas feridas, e restaurando sua confiança.
Apesar do crescimento econômico, as condições de vida dos trabalhadores africanos estagnaram ou caíram. O desemprego aumentou de meio milhão em 1962 para 1.5 milhão em 1974 – em 1976 ele estava aumentando ao nível de 30.000 por mês.
As crises sociais eram refletidas num rápido aumento nos preços de aluguéis e transportes e uma drástica redução no gasto governamental em habitação. Ao mesmo tempo em que a confiança da classe trabalhadora africana estava se recuperando, o boom pós-guerra do capitalismo mundial chegou ao fim Em1974/75, houve uma recessão simultânea em todos os maiores países capitalistas. Em 1975, o nível de crescimento sul-africano caiu 2%. Em 1976/ 77 estava abaixo de 2%; e em 1977/78 houve uma queda absoluta na produção de 0.2%.
O efeito destas mudanças na consciência do proletariado africano é mostrado pelo quadro de greves. Entre 1962 e 1968 a média anual de trabalhadores envolvidos em greve era de apenas 2.000 – refletindo o sentimento de impotência depois da séria derrota de 1961 com a proibição do CNA e do Congresso Pan-Africanista, e a imposição do estado de emergência.
Os primeiros sinais de mudança vieram em abril de 1969, quando 2.000 estivadores em Durban pararam por maiores salários. Derrotados, pararam de novo em setembro/outubro de 1971, e desta vez conseguiram uma vitória. A isto se seguiu uma greve geral de um mês na Namíbia em dezembro/janeiro de 1971/72. Embora as demandas dos trabalhadores não fossem atendidas, foi uma manifestação do poder da classe trabalhadora.
Mas o ponto de inflexão decisivo ocorreu na onda grevista que começou em 25 de janeiro de 1973, com uma greve de 7.000 operários do grupo de fábricas têxteis Frame em Natal e se espalhou rapidamente para outras províncias. Apenas em fevereiro, ocorreram 60 greves envolvendo 40 mil trabalhadores. No fim de março, o quadro aumentou para 60 mil trabalhadores em mais de 150 firmas. Nacionalmente, pelo menos 100.000 trabalhadores pararam.
Grandemente vitoriosas estas greves traçaram uma clara linha de demarcação entre a era de derrota e passividade e uma nova era de desafio militante. A erupção vulcânica de junho de 1976 foi precedida e preparada pelas necessárias mudanças subterrâneas que tinham ocorrido dentro do proletariado africano.
Da Consciência Negra à consciência de classe
Os jovens dos anos 70 entraram na luta frescos. Não havia nenhuma tradição de genuino marxismo. Nem tinham o CNA ou o Partido Comunista Sul-Africano criado ou preservado um organismo clandestino para explicar as lições da derrota dos anos 50 em termos de classe. Muitos participantes nas lutas aprenderam as tradições das gerações anteriores apenas quando foram para a prisão ou para o exílio.
O Consciência Negra – inspirado pelas idéias dos Panteras Negras e o movimento de direitos civis nos EUA – parecia fornecer explicações para a opressão e exploração sofridos pelo povo negro. Um ímpeto importante para o movimento Consciência Negra foi a necessidade de quebrar com a influência debilitante das idéias liberais e a oposição débil ao regime por organizações como a liderada e dominada por brancos União Nacional de Estudantes Sul-Africanos (NUSAS). Embora o rompimento com o NUSAS não tivesse ocorrido conscientemente numa linha de classe, a adoção dos estudantes ao Consciência Negra representou um conflito inconsciente entre 2 irreconciliáveis tendências de classe.
Corretamente, a juventude entendeu a necessidade de criar a unidade dos oprimidos como uma pré-condição para a luta vitoriosa contra o regime. O Consciência Negra foi visto como um veículo para tal unidade Também forneceu aos estudantes negros das universidades, onde o movimento começou, a conexão com a maioria negra oprimida. A atração do Consciência Negra era que permitia aos estudantes se afirmarem com um orgulho desafiador contra a humilhação diária da opressão racial. O Consciência Negra também forneceu uma bandeira sob a qual as barreiras étnicas – tanto entre a população africana e entre os africanos, ‘mulatos’ e indianos – poderiam ser quebradas. Como Karl Marx explicou em relação à subjugação dos povos coloniais pelo imperialismo, isso poderia continuar apenas enquanto um sentimento de nacionalidade não se desenvolvesse entre os oprimidos.
Além disso, o Consciência Negra forneceu uma crítica penetrante da pequena burguesia negra preparada para participar no esquema governamental de dividir para governar. Na época, por exemplo, quando o reacionário papel de Gatsha Buthelezi (líder do Partido da Liberdade Inkatha, que foi usado para fomentar a chamada violência ‘negro-à-negro’ que tirou mais de 10 mil vidas nos anos 80 e 90) não era ainda entendido, os jovens forçaram o seu desmascaramento, obrigando-o a estabelecer ele mesmo muito rapidamente como inimigo do povo. O fato do Consciência Negra não fornecer claras perspectivas, políticas ou programa, contudo, foi revelado apenas através da experiência da própria luta.
A entrada na luta da juventude primária e secundária alterou radicalmente a composição social do Movimento Consciência Negra. Esmagadoramente proletários, os jovens escolares levaram os slogans do Consciência Negra para fora da universidade debatendo-as e testando-as no campo da luta vida, acelerando o debate sobre a adequação do Consciência Negra como um guia para a ação.
Nas lutas de 1976/77, a juventude descobriu que o feroz orgulho e determinação irreconciliável que o Consciência Negra instilou neles não era suficiente por si mesmo para derrubar o regime. Face a face com o poder mortífero do estado, e o sistema capitalista que ele defendia, os jovens chegaram a entender que sua raiva precisava do motor do movimento dos trabalhadores na produção para concentrar sua luta numa força material. Ao mesmo tempo, eles chegaram a ver, enquanto tinham preocupações e interesses especiais, eles eram uma parte integrante da classe trabalhadora. Ao fazerem isso eles descobriram dos próprios trabalhadores as limitações do Consciência Negra. Este poderia permanecer uma força com uma posição nacional sobre o movimento da juventude negro apenas enquanto esta permanecesse separada do movimento dos trabalhadores negros.
‘Poder Negro’ não tinha nenhuma política sobre as questões candentes da revolução sul-africana: o controle da terra, minas e fábricas; a organização da produção e distribuição; o caráter de classe do estado revolucionário. Para os trabalhadores, poder negro poderia servir como não mais do que um veículo para a expressão de raiva e frustração. Não poderia mostrar o caminho a seguir.
A incapacidade do Consciência Negra de fornecer uma liderança coerente para as lutas dos juventude trabalhadora se tornou clara depois do estado de sítio de 1977. Em 1979, o Consciência Negra estava em sério declínio. Os jovens estavam se virando crescentemente para a Carta da Liberdade e o CNA, a tradição o qual os trabalhadores ainda aderem.
Já em junho de 1977, em seu discurso presidencial à conferência anual da SASO, Diliza Mji articulou o inicio do entendimento de classe que estava se desenvolvendo: “O apelo hoje de setores Liberais e ‘verligte’ [cultos] para o governo nacionalista é de que aos negros deve ser dada uma maior oportunidade de participar no chamado ‘sistema da livre empresa’ o que eles identificam ser capaz da defesa contra o ‘avanço da agressão comunista que está agora às portas da África do Sul’. A necessidade é portanto olhar a luta não apenas em termos de interesses de cor, mas também em termos de interesse de classe”.
A questão das armas
De 1976, a juventude tirou a seguinte conclusão: o movimento deveria estar armado. Ao longo de 1976/77 os jovens lutaram uma batalha irremediavelmente unilateral contra as espingardas, pistolas e carabinas do estado. Eles desejavam armas para defender a si mesmos. Mas elas não vieram. Ao invés disso, os jovens tiveram que usar sua própria engenhosidade. Rapidamente aprenderam como lidar com o gás lacrimogêneo: uma tampa de lata de lixo segurado num ângulo poderia, com sorte, desviar cápsulas ou ricochetear as balas. Eles descobriram que um pneu cheio de gasolina, tampado e rolado abaixo até as linhas policiais poderia dar à policia com alguns problemas, e que uma bola de tênis injetada de gasolina, fechada e atirada para um prédio poderia ser difícil de ser esquivada. Mas isso era irremediavelmente inadequado.
A direção do CNA pode ter sido pega de surpresa pelos eventos. Mas o levante durou por 20 meses e armas ainda não foram postas nas mãos dos jovens. Isso veio não apenas da inércia da direção mas por esta perseguir a política falida do guerrilheirismo que, apesar do heroísmo dos quadros do Umkhonto we Sizwe (Lança da Nação, o braço armado do CNA), não era mais do que uma irritação para o regime. A preparação do movimento de massas em si foi subordinada à política do guerrilheirismo.
A conseqüência imediata das políticas da direção foi perpetuar a separação da ‘luta armada’ do movimento de massas. Milhares de jovens cruzaram as fronteiras por armas e treinamento, esperando retornar e libertar os oprimidos através da guerra de guerrilhas. Eles foram sem necessidade desviados da tarefa essencial da organização de massas da classe trabalhadora.
Dentro da África do Sul, o Congresso de Estudantes Sul-Africanos (COSAS) nasceu em 1979 – a primeira organização nacional verdadeiramente de massas dos estudantes secundários. O AZASO (Organização de Estudantes Azanianos) rompeu com o Consciência Negra. O boicote escolar de 1980 anunciou uma nova era de luta entre os jovens, ligados desde o começo de forma mais estreita com os trabalhadores, preparando e armando-os para a insurgência revolucionária de 1984-86. A perspectiva da juventude se tornou firmemente anticapitalista, ligada à percepção clara de que a principal arena de luta eram os centros industriais da África do Sul. Em 1984-86, a demanda por armas era mais generalizada e urgente do que em 1976. Mas os jovens não cruzaram as fronteiras. Ao invés, o apelo era: ‘Umkhonto We Sizwe, estamos esperando por vocês aqui. Nos armem!’
A revolução de 1984-86 foi liderada pelos jovens. Esta geração não poderia construir para os pioneiros de 1976 um monumento melhor – não de pedras, mas de comprometimento com os ideais pelos quais eles deram suas vidas.