Um outro olhar sobre a lei de drogas e a criminalização da pobreza

A foto ao lado traduz bem a realidade das periferias dos grandes centros urbanos. Entretanto, a referida imagem foi capturada pelas lentes de um fotógrafo do interior, mais precisamente em Valença-RJ. A guerra contra as drogas desembarcou de vez nas pequenas cidades e, com ela, toda sorte de atrocidades contra garantias constitucionais como, por exemplo, Devido Processo Legal e Ampla Defesa.

O encarceramento em massa e a ação seletiva da polícia e do Judiciário levam milhares de pessoas de classes sociais mais baixas para as prisões brasileiras, tendo como justificativa a guerra às drogas.

Três pesquisas feitas sobre decisões judiciais que condenaram pessoas por tráfico de drogas em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Brasília mostram que o perfil do usuário condenado por tráfico de drogas no Brasil é jovem, entre 18 e 25 anos, afrodescendente, com educação fundamental, sem antecedentes criminais e, em geral são presos sozinhos e sem porte de arma. Quando falamos do encarceramento em massa, de fato essa lei contribuiu para acentuar esse número. Somos o quarto país com mais presos no mundo, com a terceira maior taxa de encarceramento, com 245 presos para cada 100 mil habitantes. Só somos superados pelos EUA, com 756 por 100 mil habitantes, e pela Rússia, com 629 por 100 mil habitantes. Além disso, temos um déficit de 170 mil vagas no sistema prisional.

Os números do combate extremado às drogas são ainda mais alarmantes se consideramos as mortes por “auto de resistência”. Diariamente, são registradas três mortes por auto de resistência no estado do Rio de Janeiro. Saímos de 300 casos em 1997 e, em apenas 10 anos, pulamos para 1.300, segundo relatório da Comissão de Direitos Humanos da Alerj.

Há de se considerar ainda o perigo de “balas perdidas”, com dados referentes aos RO (Registros de Ocorrência) das Delegacias de Polícia feitos de janeiro a junho de 2012 e a uma série histórica do fenômeno “bala perdida”, editada a partir do ano de 2009. Os Registros de Ocorrência mencionaram 61 vítimas por “bala perdida” no período de janeiro a junho de 2012, sendo duas fatais e 59 não-fatais. Em comparação com o mesmo período de 2011, quando houveram 57 vítimas, sendo seis fatais e 51 não-fatais, observou-se um aumento de 7,0%.

Os dados indicaram a Capital como a região do estado onde mais ocorreu o fenômeno. Foram duas vítimas fatais e 33 vítimas não-fatais nessa região. A Baixada Fluminense veio logo a seguir, com 19 vítimas não-fatais. Em Niterói, houve quatro vítimas não-fatais e, no Interior, houve três vítimas não-fatais no período de janeiro a junho de 2012 (dados do Instituto de Segurança Pública-ISP).

Mas que relação esses números, prisões, autos de resistência e balas perdidas têm com a pacata cidade de Valença, interior do Rio de Janeiro?

Simples: só relacionar os números com a foto no alto da página. A política de repressão segue os mesmos moldes, mesmo com a diferença discrepante dos traficantes daqui para os traficantes dos grandes centros. Em regra, são pequenos varejistas que não possuem o mesmo poder de fogo. Não existe a ostentação do fuzil e muito menos a organização criminosa comum encontrada no Complexo do Alemão.

De qualquer forma a questão é que a atual política de combate as drogas está esgotada. Não deu certo! Desde que o mundo é mundo, o homem tem encontrado uma forma de se entorpecer. Sempre existiram substâncias psicoativas e a alteração da consciência ordinária é uma constante antropológica em todos os tempos, seja por finalidades religiosas, medicinais ou recreativas. Achar que isso vai mudar é de uma ingenuidade estrondosa.

Existe um ciclo vicioso. A ilegalidade das drogas fomenta o genocídio de jovens pobres, negros e da periferia, alimentando a corrupção de autoridades policiais e públicas, além, é claro, do sistema financeiro convencional, que lucra lavando o dinheiro do tráfico.

Os mecanismos de lavagem de dinheiro foram tratados pelo The Observer no ano passado, depois de um raríssimo acordo judicial em Miami entre o governo federal dos Estados Unidos e o Wanchovia Bank, tendo este último admitido que fazia entrar 110 milhões de dólares de dinheiro da droga nos Estados Unidos. No entanto, as autoridades não conseguiram monitorizar os 376 mil milhões de dólares que, ao longo de quatro anos, entraram nas contas desse banco através de casas de câmbio no México. O Wachovia Bank foi, já depois deste acordo, adquirido pelo Wells Fargo, que cooperava com a investigação.

Com o esgotamento da atual política de guerra as drogas, abre-se uma nova fase, embora ainda tímida, pois em nome dos lucros milionários, da corrupção que sustenta esse sistema excludente e assassino, os Governos têm se mantido tímidos nessa mudança.

Porém, é significato lembrar os números de Portugal. Desde 1o. de Julho de 2001 (Lei no. 30/ 2000, de 29 de Novembro), a aquisição, posse e consumo de qualquer droga estão fora da moldura criminal e passaram a ser violações administrativas. Desde então, o uso de droga em Portugal fixou-se “entre os mais baixos da Europa, sobretudo quando comparado com estados com regimes de criminalização apertados”. Baixou o consumo entre os mais jovens e reduziram-se a mortalidade (de 400 para 290, entre 1999 e 2006) e as doenças associadas à droga.

Há uma grande preocupação porque existem tratados e convenções internacionais consagrando o proibicionismo, assinadas pela maioria dos países, e os EUA pressionam pela manutenção desses acordos. Porém, os próprios EUA já começam a seguir por outro caminho: 21 estados possuem leis que organizam a venda de drogas para fins medicinais. Em Washington e Colorado já se autorizou o uso para fins recreativos da maconha. Essas leis foram aprovadas após plebiscitos, respeitando um desejo popular. Agora, temos o Uruguai com essa iniciativa pioneira de legalização. Se isso passar, vamos ter o primeiro país a adotar um regime de legalização de direito e há a possibilidade de que seja um efeito dominó.

Hoje, vivemos esse momento de transição, onde se notou a falência do proibicionismo e caminha-se para um novo modelo que está sendo discutido e experimentado. Existe outro apelo também, o Controle do Estado sobre essas substâncias que, de forma mais inteligente, pode moldar uma nova forma de combate ao uso de entorpecentes, regulamentando o mercado, acabando com o ciclo vicioso da corrupção e, inclusive, desmantelando organizações criminosas que não terão mais poder econômico para se armar – afinal, quem tem dúvidas de que o forte armamento dos criminosos é adquirido com dinheiro do tráfico?

Dessa forma, é fácil concluir que, seja nos grandes centros ou em cidades como Valença, a política proibicionista está falida, sendo necessário um debate sincero e longe dos “achismos” e preconceitos. O senso comum de que droga mata e destrói famílias não pode sobrepor a realidade dos fatos apresentados. Ou seja, a guerra contra as drogas mata muito mais e, sem dúvida nenhuma, é mais nociva à sociedade do que o próprio uso de substâncias psicoativas.

Foto: Sandro Barra, Jornal Local.

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