O ouro de tolo da informalidade e o Globo Repórter
Na sexta-feira à noite (14/02), mais uma vez foi entoada a ode à informalidade. Dessa vez, o canto da sereia foi o tema das reportagens do Globo Repórter, programa semanal da TV Globo. Em pauta não estava a questão do quanto diversas categorias profissionais precisam de atenção especial em tempos de temperaturas escaldantes, nem muito menos, era cogitada a suspensão de algumas atividades – em face aos riscos à saúde desses trabalhadores.
Na direção oposta, o verão era o pote de ouro para aqueles que “aproveitam as oportunidades”. Não podemos perder de vista que por trás dessa matéria está um fato não muito novo, mas progressivamente preocupante: a necessidade de trabalhadores e trabalhadoras “se virarem”, procurarem meios de sobreviver às exigências do dia a dia – comer, dormir, ter um teto para morar etc. Curiosamente, não é esse o tom da matéria. Afinal de contas, quem não ficou tentado, após assistir ao programa, a vender mais de 100 sanduíches? Ou comprar o seu carro e sua casa vendendo salgados na praia? Foi mais de uma hora nos mostrando a beleza e as vantagens de ser informal.
Para eles não era ali o lugar de evidenciar que a universalização do trabalho assalariado e formalizado no Brasil sempre foi um projeto fracassado. Intencionalmente fracassado. Para se ter uma ideia, mesmo na época da criação da CLT – a lei que, a grosso modo, assegura às trabalhadoras e trabalhadores acesso a uma diversidade de direitos que garantem a sua sobrevivência –, o conjunto de trabalhadores passíveis de terem suas carteiras de trabalho assinadas não passava de 30%. Essa situação nunca se alterou radicalmente, já que no cenário atual não ultrapassa 33% o número de trabalhadores com carteira assinada ou inseridos no setor público1. Ou seja, faz parte do nosso modo de nos organizarmos em sociedade a falta de emprego. Ele nunca existiu e não existe para todas e todos inseridas no modo de produção capitalista.
Foi recorrente nesse programa o destaque à renda obtida pelos trabalhadores, o que pode fazer inveja a qualquer operário ou funcionário de multinacionais. É verdade que a remuneração líquida obtida por esses trabalhadores, segundo a pesquisa de Economia Informal Urbana conduzida pelo IBGE em 2003, girava em torno de 3,5 salários mínimos naquela época, por mês. Se resumíssemos o trabalho apenas à renda obtida, poderia esse ser um dado animador que faria todos largarem seus computadores, máquinas e balcões e corressem para a praia ou camelô. Contudo, nem tudo se mostra à primeira vista. Os custos para obtenção dessa renda é, inevitavelmente, a negação de nossos direitos trabalhistas e a depreciação das nossas condições de trabalho.
Quanto ao primeiro custo, ele se evidencia na pergunta sobre quem garantirá o sustento desse trabalhador nas suas férias? Ou quando machucar um pé e não poder caminhar 8 km diários na praia? Ou ainda, quando com seus 80 anos não puder descansar um pouco mais, pois, quanto mais horas na cama, menos comida na mesa? É preocupante que, segundo a pesquisa aludida, ao menos oito milhões de trabalhadores informais não contribuíam para a previdência social. Ficam claras as consequências: aos que sofrem acidentes ou ficam incapacitados para o trabalho – ao qual sua renda é vinculada – resta à solidariedade familiar ou de amigos, caso contrário, fica a míngua com seus parcos recursos economizada. Assim escapa do vocabulário desses trabalhadores palavras como “férias”, “descanso” ou “aposentadoria”: é ali que se aprofunda a conversão literal do tempo em dinheiro, transformando em mercadoria a própria vida. Não é raro relatos de trabalhadores que, a despeito da esperança de um dia “tirarem um tempinho para si”, passarem anos sem um único dia de descanso pleno.
Já com relação às condições de trabalho, em 20032, se trabalhava em média de 40 a 60 horas semanais e de 21 a 30 dias por mês. É nesse reduto dos trabalhadores informais que vemos relatos de jornadas de trabalho, costumeiras, de 15, 17, 19 horas diárias de segunda a segunda. Fora isso, a escassez de equipamentos adequados ou que garantam a segurança do trabalhador são constatações corriqueiras para o seu cotidiano. O mais absurdo é que, na referida reportagem, comentários sobre essas situações são, forçosamente, expressos em tom de brincadeira ou de orgulho por se sofrer no trabalho. Estaria a ode à informalidade associada ao masoquismo do trabalho penoso?
No fim das contas, a sombra da informalidade é muito mais escura do que pintado na nossa telinha.
Ora, então por que propagandear esse ouro de tolo? Se individualmente são extremamente legítimos esses tipos de trabalho, do ponto de vista social, legitimar essas saídas é negar que há um problema coletivo, já comentado: a falta de emprego para o total de trabalhadores e trabalhadoras. Se o problema é coletivo e social, não é individualmente que se encontrará uma saída para todos e todas – aqui a fábula do beija flor no incêndio da floresta passa longe em sua validade. É bem verdade, o cenário da informalidade mostra o quanto somos radicalmente criativos e inventivos, não havendo necessidade de patrões ditando o modo de produzirmos em sociedade.
Essa ideia de que sozinhos sairemos da nossa situação caótica de (não) trabalho não surge do nada. Em um momento em que vemos o crescimento dos esforços por parte do capital em se utilizar da flexibilização do trabalho, da privatização e da derrubada da legislação trabalhista, acentuando a precarização, fantasiar o trabalho autônomo ou por conta própria como o Éden dos trabalhadores é pauta do dia, para aqueles preocupados com a apazigação social. Com isso, se resolve duas questões com uma só armadilha.
Uma delas é a própria redução de custos. É certo que boa parte dos trabalhadores informais se encontra no setor de serviços ou comércio o que facilita a circulação de mercadorias de grandes conglomerados: o brinquedo vendido no camelô do centro, em sua maioria, é produzido por grandes indústrias localizadas no outro lado do mundo. O que imediatamente se apresenta como a tentativa de um trabalhador sobreviver em nossa sociedade, guarda, por trás, um mecanismo que otimiza a venda das mercadorias produzidas pelas grandes indústrias, já que, por essa via, os encargos são altamente reduzidos – seja pela sonegação de impostos, seja pela redução de custos com a unidade comercializadora, ou seja, o trabalhador que vende o produto.
A segunda questão é exatamente a redução da pressão social por empregos dignos. Convencer-nos de que com esforço e força de vontade podemos sair da situação de desemprego – ou em outra metáfora, sairmos do buraco puxando-nos pelos nossos próprios cabelos –, é desviar o foco de que essa estratégia pode até ser bem sucedidas para um punhado de trabalhadores, mas nunca poderia ser pensada como saída para todos e todas que padecem com a falta de renda. Da mesma forma, a sedução também se direciona para aqueles que dia e noite reclamam de seus empregos, defendendo que esses, em vez de lutarem para que as condições desse trabalho melhorem, criem seus próprios meios de renda – ou se conformem com a benção de um emprego desumano. Em um contexto marcado por sucessivas greves e uma crescente insatisfação com os empregos, é estratégico para o capitalismo que as forças de combate dos trabalhadores sejam direcionadas para saídas individuais – o que acaba fomentando ainda mais o individualismo e a competição entre esses, impedindo qualquer traço de solidariedade.
Nada mais atual do que Karl Marx para entendermos essa situação: o programa em questão aponta para uma ideologia que, no seu sentido germinal, se configura como uma percepção pervertida da realidade. Inverte-se a compreensão da realidade, em favor da manutenção da ordem posta, ou não seria esse o resultado da afirmativa implícita de que “para um problema que é de todos e todas, adote saídas individuais”? Defender a informalidade como o caminho de tijolos amarelos para a saída do desespero do desemprego é frear uma pressão social e legitima por trabalhos dignos para todos, que leva ao limite o nosso sistema social.
Antecipando interpretações contrárias, não se neutraliza a ode à informalidade com a ode ao emprego formal do modo que temos hoje. Na contramão, a defesa é pela construção de uma organização das relações sociais em que não estejamos em um falso dilema: a informalidade, e as agruras inerentes a ela, ou a formalidade, e a exploração direta e cotidiana de um trabalho sem sentido em si. O trabalho é radical para qualquer sociedade humana, mas não devemos equivaler essa condição às formas atuais existentes. Novas saídas que permitam o pleno desenvolvimento das mulheres e homens são possíveis.
Portanto, não é com matérias bem feitas e reluzentes que a informalidade deverá ser comprada como a diluição divina de nossas angústias para sobrevivência, mas somente com a luta coletiva dos trabalhadores e trabalhadoras que questione e transforme esse modo de distribuirmos a grandiosa riqueza que produzimos.
[1] Esse dado é derivado da Pesquisa de Emprego e Desemprego conduzida pelo DIEESE e é derivado da soma do número de trabalhadores assalariados no setor privado com o número de trabalhadores que são vinculados à instituições públicas ou não souberam responder o tipo de empresa que os contrata.
[2] Desculpo-me antecipadamente com o leitor por apenas poder utilizar dados da década passada, contudo, essa foi a pesquisa mais recente que contemplasse a gama de dados utilizados para a população brasileira. A despeito da antiguidade e da limitação da pesquisa – que subvaloriza o espectro da informalidade – ela aponta para tendências presente nessa parcela do trabalho coletivo.