A América Latina e a nova ‘guerra fria’

O fortalecimento da presença chinesa na América Latina tem sido fonte de preocupação de analistas e autoridades estadunidenses e europeias em meio à nova ‘guerra fria’ que marca o cenário internacional. Ao mesmo tempo, parte da esquerda no subcontinente alimenta ilusões sobre um suposto papel progressista do gigante asiático, como contrapeso ao imperialismo estadunidense, além de fonte de oportunidades para um desenvolvimento menos dependente. 

A América Latina será cada vez mais um palco da disputa inter-imperialista da época atual. Ainda que o papel historicamente dominante dos EUA, como principal força imperialista na região, continue sendo decisivo, seria um grave erro subestimar ou enganar-se com o papel do imperialismo ascendente chinês. 

Para que a classe trabalhadora e os povos latino-americanos deixem de ser meros joguetes de interesses imperialistas diversos é fundamental que a esquerda socialista na região rejeite alinhamentos automáticos e construa sua própria alternativa independente – internacionalista, anti-imperialista, anticapitalista e socialista.

Dependência e relações neocoloniais

A influência da China na América Latina cresceu exponencialmente no último período. O comércio chinês com a região passou de US$ 12 bilhões em 2000 para US$ 495 bilhões em 2022. A China já é hoje o principal parceiro comercial da América do Sul e o segundo maior se tomarmos o conjunto da América Latina e Caribe.

O país asiático tornou-se o principal comprador de matérias primas minerais, energéticas e alimentares oriundas da América Latina, concentradas basicamente em poucos produtos: soja, cobre, minério de ferro e petróleo. Ao mesmo tempo, a China tornou-se um grande exportador para a região de bens de consumo e hoje também de bens intermediários (máquinas, componentes eletrônicos etc.), em concorrência direta com os EUA e a Europa. A China tem superávit comercial com todos os países da região, exceto Brasil, Chile e Venezuela.

A exportação de matérias primas para o mercado chinês permitiu relativo crescimento e estabilização econômica em países latino-americanos durante o auge do ‘boom’ das commodities. A interrupção desse processo a partir de 2014 esteve na base das crises econômicas e políticas que vimos na região, incluindo a crise da primeira onda de governos “progressistas” latino-americanos.

Antes mesmo dos efeitos negativos da interrupção do superciclo das commodities, as características de tipo neocolonial nas relações comerciais entre a América Latina e a China (venda de matéria prima e compra de produtos industrializados) por si só tiveram consequências nefastas significativas. Entre elas destaca-se a massiva destruição do meio ambiente e ataques aos povos originários resultantes das atividades agroextrativistas. Isso também levou ao fortalecimento de uma fração de classe burguesa ainda mais reacionária, violenta, pró-imperialista e golpista baseada no agronegócio, uma base social importante da reação de extrema-direita na região. 

Além disso, o tipo de relação estabelecida com a China aprofundou o processo de desindustrialização nos principais países da região e fez retroceder as relações comerciais intrarregionais. É muito difícil imaginar como esse tipo de relação com a China poderia de alguma forma representar um caminho na direção da emancipação latino-americana.

Dívida e investimentos

No período mais recente, os investimentos diretos chineses na região também cresceram, principalmente no setor elétrico, transporte e mineração. Grandes obras de infraestrutura também foram realizadas com financiamento dos bancos chineses. Já existem vinte países da América Latina e Caribe que assinaram acordos com a China em torno da Iniciativa Cinturão e Rota (Nova Rota da Seda). A Argentina, que firmou acordo de entrada na Iniciativa em fevereiro deste ano, é o primeiro grande país da região a fazê-lo.

A concessão de empréstimos chineses a governos latino-americanos também cresceu. Os empréstimos de bancos chineses na região chegaram a superar a totalidade de empréstimos do Banco Mundial, BID e CAF durante o período entre 2005 e 2017.

Novas relações de dependência e laços políticos e diplomáticos foram criados, independentemente da cor política dos governantes em questão. O Equador, por exemplo, governado pelo direitista Guillermo Lasso, recentemente teve que renegociar sua dívida com a China. Fez isso depois de já ter firmado um acordo com o FMI que impôs duros custos ao povo equatoriano e é o pano de fundo da crise política de seu governo que está a ponto de cair.

O governo argentino do peronista Alberto Fernández e seu ministro da economia Sergio Massa acabam de renovar um acordo de swap cambial com a China em meio à profunda crise argentina. O objetivo é tentar obter algum fôlego no curto prazo diante da escassez de reservas internacionais, cenário agravado pela seca que afetou as exportações agrícolas. 

Com o acordo, a Argentina terá acesso imediato a US$ 10 bilhões para fazer intervenções no mercado cambial e assim tentar evitar novas desvalorizações do peso, o que agravaria a crise social nas vésperas das eleições de outubro deste ano. 

No total, a Argentina é o país que mais recebeu empréstimos de emergência da China, algo em torno de US$ 112 bilhões. É importante notar que os empréstimos chineses não são mais baratos do que aqueles feitos pelo FMI. A taxa de juros média associada a um empréstimo de resgate chinês é de 5% enquanto a do FMI está em torno de 2%. Além disso, muitos dos acordos com a China estão vinculados a acordos com o FMI, organismo do qual a China também é um componente importante. 

Os empréstimos chineses não são obras de caridade. De forma geral estão vinculados a garantias econômicas e  geopolíticas, como o controle de portos, o monopólio sobre minerais estratégicos etc. Eles também refletem uma lógica imperialista, ainda que isso se dê num contexto em que a China ainda é uma potência em ascensão que também tem suas contradições, crises e limites.

Lula nos EUA e na China

Lula esteve na China em abril na companhia de mais de 200 empresários brasileiros, onde anunciou a assinatura de 15 acordos comerciais e fez declarações aparentemente ousadas sobre a substituição do dólar nas trocas entre os países e o papel do ocidente na guerra da Ucrânia. 

Antes disso, pouco depois de sua posse, Lula esteve em Washington numa visita com poucos resultados comerciais, mas que serviu antes de tudo como agradecimento simbólico sobre o papel de Biden na contenção da extrema-direita civil e militar no Brasil.

O que aparentemente se coloca como uma postura equidistante e pragmática, na verdade reflete um jogo de subordinação dupla e flexível do governo brasileiro. Tenta-se obter pequenas vantagens aproveitando-se dos conflitos entre os dois campos imperialistas em disputa, sem romper com a dependência em relação a ambos.

Mesmo que a política externa de Lula não possa ser comparada à vergonhosa submissão aos EUA de Trump durante o governo de Bolsonaro, ela não representa efetivamente uma alternativa soberana. 

Alinhamento com a China?

No campo da esquerda e do chamado “progressismo” latino-americano, o caráter historicamente nefasto do imperialismo estadunidense e europeu fez surgir ilusões em um papel supostamente mais benéfico das relações com a China.

Mesmo aqueles que reconhecem que as relações sociais de produção e o Estado na China não tem nada de socialistas ou comunistas, argumentam que a ascensão de uma nova potência poderia enfraquecer a hegemonia estadunidense e estabelecer uma ordem multipolar, abrindo espaços para a América Latina.

O que estamos vendo, no entanto, não pode ser descrito como uma dinâmica na direção da multipolaridade, mas sim uma verdadeira disputa pela hegemonia imperialista no mundo, que se manifesta como uma guerra econômica, geopolítica e propriamente militar eventualmente, como no caso da Ucrânia. Essa nova guerra fria (com seus muitos aspectos quentes) vai marcar o próximo período e, diante dela, é preciso assumirmos uma posição clara.

A guerra desencadeada pela invasão da Ucrânia pela Rússia acentuou as tensões e a polarização levando uma parte da esquerda a capitular ao campo imperialista ocidental, que usa o conflito para recuperar forças e atingir a China, e outra fazendo o mesmo em relação à Putin e sua aliança estratégica com a China. 

O papel da esquerda socialista não é o de alinhar-se a algum dos campos imperialistas em disputa, mas sim construir sua própria alternativa independente com uma clara perspectiva anticapitalista e socialista. Não haverá independência da América Latina diante do imperialismo se não superarmos a lógica do capitalismo em sua crise estrutural e construirmos a unidade socialista dos povos latino-americanos, na direção de um novo mundo socialista

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