Enquanto a guerra impulsiona a inflação, protestos explosivos abalam o Peru

Os impactos da guerra na Ucrânia estão reverberando em todo o mundo, causando mais turbulência na economia global e provocando crises sociais e políticas. Os protestos e motins em curso no Peru, desencadeados pelo aumento da inflação, já deixaram sete pessoas mortas e são um exemplo marcante do que está por vir no atual período de instabilidade capitalista. 

Menos de um ano após sua presidência, o slogan eleitoral de Pedro Castillo, “Ninguém deve ser pobre em um país rico”, está em mil pedaços. Professor rural e sindicalista, Castillo foi eleito com um programa de esquerda para combater a desigualdade e a pobreza através da tributação dos ricos e da nacionalização de indústrias-chave. Embora inicialmente um candidato marginal, Castillo superou seus oponentes explorando o descontentamento das massas peruanas, como uma expressão eleitoral dos protestos de massas que eclodiram em novembro de 2020.

Mas agora, apenas oito meses depois, ele enfrenta um movimento da classe trabalhadora e oprimida em resposta à deterioração das condições de vida.

Guerra e inflação

O gatilho imediato para os protestos são os aumentos nos preços dos combustíveis. Mesmo antes da guerra, o Peru vinha lutando para controlar a inflação que causava o aumento do custo de vida. As sanções ocidentais contra a Rússia e a falta de exportações da região afetaram ainda mais as cadeias de abastecimento globais e elevaram os preços de alimentos, combustíveis e fertilizantes – dos quais, tanto a Rússia quanto a Ucrânia são grandes exportadores.

O Peru não é um caso isolado. O Sri Lanka entrou em erupção com protestos contra a inflação e a escassez e manifestações sobre os mesmos temas abalaram a Albânia e o Sudão. Enquanto em alguns países a guerra pode ter fortalecido temporariamente o establishment em nome de uma já frágil unidade nacional, em outros, ela está desmanchando o sistema pelas costuras.

Que comam… peixe 

O movimento começou com uma greve convocada pela Associação Nacional de Transportadores e Motoristas (GNTC), em 28 de março, para protestar contra um aumento no preço dos combustíveis, que se juntou a uma raiva mais ampla e detonou uma luta mais abrangente e que se espalhou por todo o país, envolvendo trabalhadores, agricultores e jovens. 

O primeiro-ministro Anibal Torres teve seu momento de Maria Antonieta quando afirmou que as pessoas deveriam comer peixe se não pudessem comprar frango – apesar de o primeiro ser mais caro. Tais comentários não mostram nada além de desdém pelas condições enfrentadas pelas massas peruanas. Além de ter a maior taxa de mortalidade per capita do mundo da COVID-19, o impacto da pandemia elevou a taxa de pobreza para 30%. O atual aumento dos custos dos alimentos foi o ponto de ebulição: a quantidade se transforma em qualidade, a miséria acumulada explode nas ruas. 

Talvez, inevitavelmente, aspectos dos protestos sejam caracterizados por uma raiva confusa e um sentimento de desespero. Pontes de pedágio foram incendiadas e supermercados saqueados. Mas o movimento de trabalhadores também desempenhou um papel significativo. O Sutep, principal sindicato de professores, apelou para Castillo – que vem de suas próprias fileiras – para “mudar de rumo ou renunciar” e apelou para que os trabalhadores e outras organizações continuem a se mobilizar, exigindo novas eleições e que “os ricos paguem o custo da crise”.

Resposta do governo: concessões e repressão

Da mesma forma, quando o governo reagiu prometendo eliminar o imposto sobre combustíveis e aumentar em 10% o salário mínimo nacional, a Confederação Geral dos Trabalhadores Peruanos, corretamente. rejeitou o aumento salarial por ser insuficiente, uma gota no oceano de alta meteórica dos preços.

O movimento continuou, e quando suas concessões falharam, o governo mudou para a implementação da lei marcial e o uso da repressão estatal. No entanto, nem isto fez os manifestantes pararem e o governo foi forçado a recuar, levantando o toque de recolher no dia seguinte. Manifestações, bloqueios e confrontos com a polícia continuam até o momento em que se escreve este texto. 

Tudo isso aponta para um governo incrivelmente fraco, que tem tentado se manter de pé entre dois lados de uma corda bamba que, de um lado, pende para apaziguar as massas que o levaram ao poder e, de outro, não perturbar os interesses econômicos da elite governante. As contradições estão agora se desvendando.

Instabilidade política na era da desordem

Apesar das enormes expectativas de mudanças reais depositadas no governo Castillo, ele tomou o caminho da conciliação de classes e acabou aceitando os limites do sistema capitalista. Enquanto os investidores estrangeiros e os capitalistas peruanos estavam inicialmente aterrorizados com a perspectiva de um governo de esquerda, Castillo garantiu que os negócios continuavam como de costume e que o setor de mineração permanecesse nas mãos dos especuladores. Desde que tomou posse, não houve nacionalizações, com Castillo se resignando a administrar o capitalismo.

Ao invés de ser recompensado com estabilidade, mesmo que temporária, Castillo tropeçou de uma crise para a outra, enfrentando duas tentativas de impeachment. Concessões à direita levaram seu próprio partido, nominalmente marxista, o Peru Libre, a romper com o presidente. Mas nem isso não foi suficiente para amenizar os medos da classe dominante. 

A política, como Lenin disse, é economia concentrada. E, na “Era da Desordem”, as contradições incontroláveis do capitalismo se refletem em crises políticas cada vez mais dramáticas. Como foi apontado em um recente artigo do jornal Financial Times que questionava se o Peru estava se tornando um país ingovernável: “Desde que tomou posse no último mês de julho, o presidente tem cambaleado através de quatro composições de governo, quatro primeiros-ministros, três ministros das Relações Exteriores e dois ministros das Finanças … Em média, Castillo tem trocado de ministro a cada nove dias.”

Entre sua base, o período de lua-de-mel de Castillo foi de curta duração. Mesmo antes dos protestos, seu apoio havia afundado para 25%. Embora a economia do Peru tenha experimentado um crescimento de 13,3% em 2021, um dos maiores do mundo, os ganhos não foram sentidos pelas massas trabalhadoras e pobres. Esse crescimento também vem depois de uma contração histórica de 11% registrada em 2020.

Ameaça da extrema-direita

O governo Castillo enfrentou uma campanha implacável de sabotagem pela direita, política, econômica e ideologicamente. Enquanto seus oponentes tentam explorar a situação atual e apontam para a incompetência de Castillo, é também claro que eles mesmos se sentem profundamente desconfortáveis com a revolta e não são capazes de apoiá-la. Eles estão todos muito conscientes de que são incapazes de resolver a crise atual.

No entanto, para evitar a cooptação, confusão e desmoralização, o movimento precisa aprofundar sua organização em torno de um conjunto bem definido de exigências e manter uma posição de independência de classe. Basta lembrar que Castillo venceu por pouco a candidata de extrema-direita Keiko Fujimori – filha do ex-ditador Alberto Fujimori – por trás da qual todo o establishment jogou seu peso. A eleição de Castillo representou uma vitória sobre a extrema-direita, mas que ainda não foi totalmente consolidada. Os partidários de Fujimori continuaram a se organizar contra o governo Castillo e as condições só se tornaram mais férteis para seu crescimento. 

Caminho a seguir para o movimento

Devemos olhar para o movimento que ocorreu no vizinho Equador em 2019 contra os cortes ordenados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) nos subsídios de combustível. A solidariedade e a ação unida entre os povos indígenas e os trabalhadores forçaram o governo de Lenin Moreno a recuar. Foi, sobretudo, a intervenção da classe trabalhadora – e, principalmente, dos trabalhadores dos transportes – que paralisou a economia e a reforma de austeridade. 

Da mesma forma, no Peru, os protestos atuais ilustram o poder estratégico dos trabalhadores da logística e sua capacidade de afetar a economia. Como em outros lugares da América Latina, uma infraestrutura precária significa que o fechamento de uma única rodovia como a Rodovia Pan-Americana pode paralisar a sociedade e resultar em uma hemorragia dos lucros dos principais capitalistas. O movimento sindical deveria começar a construir para uma greve geral, não apenas entre a pequena minoria de trabalhadores já sindicalizada, mas também procurar mobilizar e organizar os milhões de setores em empregos precários e não sindicalizados, ao lado de agricultores pobres, povos indígenas e estudantes, bem como os movimentos LGBTQ e de mulheres. 

Este poder latente precisa ser organizado em torno de um programa político que possa apontar uma saída para a crise. Um imposto emergencial sobre os super-ricos e as multinacionais contribuiria muito para proporcionar alívio imediato aos pobres e às massas trabalhadoras. O controle dos preços e uma escala móvel de salários (para ficar acima da inflação), um moratório de despejos e controles de aluguel são todos fundamentais. Devem ser criados comitês comunitários para supervisionar a distribuição e erradicar o aumento especulativo de preços. 

Romper com o capitalismo e o imperialismo

Mas como se torna mais evidente a cada dia, um sistema capitalista decadente é incapaz de prover essas demandas ou qualquer uma das necessidades mais básicas da vida. É por isso que precisamos não apenas voltar ao programa inicial de Castillo para nacionalizar as principais empresas mineradoras ir além e exigir que as empresas que contratam a economia se convertam em propriedade pública democrática, juntamente com uma verdadeira reforma agrária que tire a terra das mãos dos grandes latifundiários e a distribua entre os agricultores pobres e os povos indígenas. 

É claro que isto iria enfrentar a amarga resistência do capitalismo peruano e das diversas potências imperialistas com interesses no Peru. Nem Castillo nem a liderança de seu antigo partido Peru Libre se mostraram dispostos a travar essa batalha e romper abertamente com a dominação do capital. Portanto, a classe trabalhadora e oprimida que trouxe Castillo ao poder deve lutar por novos instrumentos de luta que vão além de uma tímida perspectiva reformista. Como assinalamos na esteira da vitória de Castillo, e que continua a ser ainda mais relevante hoje: 

“Toda a energia das massas peruanas deve ser organizada para avançar além das reformas propostas por Pedro Castillo. Deve ir em direção à destruição deste estado capitalista e avançar na construção de um governo de trabalhadores e construir o socialismo no Peru e no resto da América Latina.”

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