Belicistas criam uma situação perigosa na Ucrânia
Terremotos políticos e econômicos estão sendo gestados globalmente à medida que as forças do imperialismo estadunidense e chinês passam de um estado de cooperação para uma competição aberta. À medida que estas forças colidem, ondas de choque se multiplicam pelo mundo desorganizando, perturbando e reorganizando as relações entre as diferentes potências imperialistas. O epicentro desta ruptura atualmente é a Ucrânia.
Embora ambos os lados afirmem que não querem um conflito, o imperialismo estadunidense e russo estão enfrentando um ao outro, fazendo com que a histeria de guerra atinja um nível tal que a lei das consequências não intencionais possa intervir para desencadear uma guerra quente, cuja escala potencial não terá sido vista na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. No meio disto, o povo ucraniano está sendo tratado como peças de tabuleiro, cujo destino é decidido por forças fora de seu controle. Enquanto são os trabalhadores e os pobres da Ucrânia, e também nos países imperialistas, que perderão suas vidas, suas casas e seus meios de subsistência como consequência desta guerra desnecessária.
A Alternativa Socialista Internacional está em completa oposição aos planos dos abutres imperialistas, e conclama a um movimento antiguerra em massa baseado na solidariedade entre os trabalhadores da Ucrânia, dos Estados Unidos e da Rússia.
Na própria Ucrânia, os belicistas estão enfatizando que a invasão é iminente. O ex-chefe das Forças Especiais da Ucrânia, Sergey Krivonos, afirma na TV central que estão sendo elaborados planos para transportar milhares de pára-quedistas russos aos aeroportos ao redor de Kiev para tomar a cidade. O ex-presidente Poroshenko calcula que o ataque consistirá em mísseis balísticos ‘Iskander’ disparados do mar e sobre a fronteira para destruir as principais instalações ucranianas. O Presidente Zelensky vê os invasores entrando com tanques através de Kharkiv. Testemunhas oculares relatam que os aeroportos de carga ucranianos estão vendo um aumento maciço de vôos, enquanto nos parques das cidades, forças voluntárias estão sendo treinadas para o serviço de combate.
No último dia, talvez para acalmar a população, vozes mais moderadas foram levantadas em Kiev. Após a evacuação amplamente divulgada das famílias dos diplomatas dos EUA, Reino Unido e Austrália em Kiev, foi convocada uma reunião de emergência do “Conselho de Segurança e Defesa Nacional” da Ucrânia. Na coletiva de imprensa, seu secretário Aleksey Danilov declarou:
“Não vemos hoje nenhuma base para confirmar uma invasão em larga escala. É impossível que isso aconteça mesmo fisicamente… Hoje podemos ver (nas fronteiras da Ucrânia) cerca de 109 mil soldados. Vemos cerca de 10 a 11 mil chamados “comboios”, forças de escolta. Se nossos parceiros pensam que isto é um grande aumento no número de tropas, para nós isto não é novidade. Um aumento em 2-3 mil não é crítico”.
Também no ICTV, o Ministro da Defesa da Ucrânia, Aleksey Reznikov, disse:
“Hoje, no momento atual, não foi formada nenhuma força de ataque das forças armadas da Federação Russa, o que confirma que elas não estão planejando um ataque iminente”.
Ele comparou a situação com a de abril passado, acrescentando que não deu muito valor à sugestão de que um ataque ocorreria no dia 20 de fevereiro.
Não à intervenção imperialista
As potências estrangeiras, no entanto, continuam a elevar a temperatura. Do oeste, os países bálticos, a Grã-Bretanha, o Canadá e a Turquia estão trazendo armamento e pequenos contingentes de tropas “para treinamento”. O Pentágono, de acordo com o New York Times, preparou planos para enviar até 50 mil tropas para a Europa Oriental, e hoje é relatado que 8,5 mil foram colocados em “alerta elevado”.
Na Rússia, a informação é mais difícil de ser obtida. É evidente que há um aumento significativo nas atividades militares. O arsenal está sendo movimentado, exercícios conjuntos entre Rússa e Belarus com o uso de artilharia viva estão sendo realizados a 40 quilômetros da fronteira ucraniana. Foram anunciados exercícios navais envolvendo 140 navios – em todos os mares que circundam a Rússia, desde o Pacífico até o Mar Negro. Navios das potências ocidentais e da Rússia estão se deslocando para o Mediterrâneo e o Mar Negro.
As negociações em todos os tipos de formatos diferentes continuam, embora, até o momento, ainda não tenha sido feito nenhum avanço.
Possíveis cenários
Uma invasão total da Ucrânia pela Rússia é a opção menos provável nesta situação. Isto não impede que os belicistas ocidentais falem como se já estivesse iminente. O ” Instituto para o Estudo da Guerra”, que se apresenta como uma “organização não partidária, sem fins lucrativos, de pesquisa de políticas públicas”, empenhada em ajudar os Estados Unidos a alcançar seus objetivos estratégicos, distribuiu amplamente seu mapa de “Planos potenciais para uma invasão total da Ucrânia”.
De acordo com este mapa, a Rússia atacará da Crimeia e das não reconhecidas Repúblicas de Donetsk e Lugansk (DNR/LNR) para desviar as forças ucranianas. As forças mecanizadas avançarão então do nordeste para cercar Kiev, Dnipro e Kharkiv – 3 cidades com uma população combinada de mais de 5 milhões de habitantes. Em seguida, forças navais, ou tropas enviadas por vias aéreas para a Transnístria (que reivindica independência da Moldávia), invadirão do oeste para capturar Odessa e a costa do Mar Negro. Mais tropas entrarão da Belarus no norte, atravessando no processo as terras de resíduos radioativos ao redor de Chernobyl.
Se a Rússia invadisse desta forma, os custos humanitários seriam inconcebíveis. Com uma população duas vezes maior do que a da antiga Iugoslávia, que se desfez com guerras interétnicas no início dos anos 90, deixando 140 mil mortos e 4 milhões de refugiados, uma ocupação da Ucrânia poderia deixar centenas de milhares de mortos, e vários milhões de refugiados. Com toda probabilidade, tal conflito arrastaria os países bálticos vizinhos e a Polônia.
Este é um cenário provável?
Dada a volatilidade da região, com revoltas populares recentes em Belarus e Cazaquistão, guerra em Nagorno-Karabakh e protestos de massas na Rússia, Geórgia e Armênia, a política externa agressiva da administração Biden e as políticas autoritárias e expansionistas do Kremlin, nada pode ser descartado. Mas como Clausewitz apontou “a guerra é a política por outros meios”. O que determinará os acontecimentos será o resultado da luta política – entre as potências imperialistas, assim como dentro dos países envolvidos.
O conflito pode até estar relacionado ao destino da Ucrânia, mas demonstra o cúmulo do cinismo das potências imperialistas que na primeira semana de negociações, que começou com diplomatas americanos e russos sentados para jantar em Genebra, a Ucrânia não foi sequer convidada. Depois de três semanas, nenhuma solução foi encontrada até agora durante estas negociações.
A Federação Russa se apega ao que chama de suas “linhas vermelhas”: A OTAN não deve expandir-se mais na Europa Oriental, a Ucrânia e a Geórgia nunca devem ser autorizadas a aderir, e as armas da OTAN não devem ser localizadas nas fronteiras russas.
Os EUA, por sua vez, insistem arrogantemente em que qualquer país que deseje pode aderir. Desde então, vários países da OTAN têm enviado armas para a Ucrânia, enquanto a própria OTAN está enviando mais navios e caças para a Europa Oriental. A Ucrânia está sendo sacrificada como cenário de uma guerra por procuração entre as potências imperialistas.
Todo o processo é acompanhado de perigosos discursos belicosos. O imperialismo ocidental, lealmente noticiado pela grande mídia, não conhece fronteiras. O Secretário de Estado estadunidense Blinken, antes de sua reunião com o Ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, comentou que a Rússia tem um
“longo histórico de comportamento agressivo”. Isto incluiu atacar a Geórgia em 2008 e anexar a Crimea em 2014, e ‘treinar, armar e liderar’ uma rebelião separatista no leste da Ucrânia”.
Ele falhou, é claro, em mencionar que nas últimas duas décadas, os EUA bombardearam Belgrado, invadiram o Afeganistão e o Iraque, realizaram numerosas intervenções na Síria, Líbia, Iêmen e em numerosas partes da África.
Embora relativamente moderada em comparação com a propaganda extrema durante a anexação da Crimea há oito anos, a mídia russa traz regularmente relatos de provocações sendo planejadas pelas forças ucranianas contra a DNR/LNR. Como sempre, é o “Partido Comunista” que está cantando mais alto no coro de belicistas. Ele está reivindicando que a Duma reconheça oficialmente a DNR/LNR. Mesmo o porta-voz do Kremlin adverte que isto seria visto como a agressão de que o Ocidente está alertando. Afinal, Biden diz que qualquer tentativa das forças russas de cruzar a fronteira seria vista como “uma invasão”. Ao atrasar a aprovação da proposta, figuras pró-Kremlin sugerem que ela mina seu “Plano B” – o que é o “Plano A” é que eles não dizem, mas é sugerido que isto significa a conclusão bem sucedida das negociações.
Expansão da OTAN
Putin frequentemente se refere à promessa feita pelo imperialismo estadunidense ao ex-líder soviético Mikhail Gorbachev em fevereiro de 1990, de que se o exército soviético se retirasse da Alemanha Oriental e este se tornasse de fato parte da OTAN na nova Alemanha unida, então a OTAN não se estenderia mais ao leste. Desde então, a OTAN se expandiu mais de 800 km até a fronteira entre a Rússia e os países bálticos. Parte da Rússia, o enclave de Kaliningrado está cercado em todas as suas fronteiras terrestres por países da OTAN. Em 2008, em sua cúpula em Bucareste, a OTAN firmou um acordo de aliança com a Geórgia e a Ucrânia, com o objetivo final de sua adesão. Se eles aderissem, isso significaria que as forças da OTAN se estenderiam por mais de 4 mil quilômetros da fronteira da Rússia.
Atualmente, os exercícios anuais “Defender Europe” envolveram 28 mil soldados em 2021. Eles foram mobilizados, segundo o Chefe do Exército dos EUA na Europa e na África, General Chris Cavoli “para áreas operacionais em toda a Europa, incluindo Alemanha, Polônia, países bálticos, outras nações do Leste Europeu, países nórdicos e Geórgia”.
Estes exercícios são apenas uma parte das atividades das potências ocidentais na região. 5 mil tropas, 32 navios e 40 aeronaves participaram dos exercícios “Brisa do Mar” no verão passado no Mar Negro.
Isto é parte da contínua polarização do mundo entre os diferentes interesses imperialistas. O governo Biden certamente vê a China como o principal concorrente dos EUA, e vem construindo com determinação alianças, preparando-se para desafiá-la globalmente. Ao mesmo tempo, ele chama a Rússia de “a maior ameaça”, devido à forma como ela usa seu poderio militar para interferir na expansão dos interesses dos EUA em outros lugares, e para ajudar a impulsionar a divisão entre os aliados dos EUA. A Rússia atrapalhou os planos dos EUA de destituir Assad na Síria, e interveio na Líbia. Os interesses ocidentais foram limitados na República Centro-Africana e em Mali e substituídos por mercenários russos.
União Europeia marginalizada
Estes eventos deram mais um passo no rebaixamento do relacionamento dos EUA com a Europa. A criação da aliança AUKUS e a súbita partida do Afeganistão, como observou um comentarista, confirmaram isso:
“o pessoal da China na Casa Branca está dirigindo o ônibus. E eles não têm uma apreciação da União Europeia como um parceiro útil em coisas importantes para os Estados Unidos”.
A UE também não foi convidada para as negociações da semana passada, exceto como membros individuais da OTAN.
Em parte isto reflete a divisão dentro da própria UE. O Kremlin vem cultivando, há vários anos, o apoio das forças populistas de direita, particularmente na Itália, França e Áustria, enquanto depois da crise de 2014, quando a Rússia assumiu a Crimea e a DNR/LNR foram estabelecidas, a França e a Alemanha seguiram um caminho próprio, entrando para tentar resolver a questão no que ficou conhecido como o formato Normandia, responsável pelas negociações de Minsk. Também a Polônia, já em conflito com Bruxelas sobre se as leis da União Europeia se sobrepõem à Constituição polonesa, está descontente que a UE não esteja agindo firmemente sobre o conflito.
Os EUA querem uma abordagem unificada com a UE para implementar sanções. Parece haver acordo sobre sanções contra figuras de destaque no regime russo, agora incluindo, possivelmente, o próprio Putin. Mas a França acaba de assumir a presidência da UE por seis meses. Macron declarou explicitamente que as sanções contra a Rússia não funcionam, enquanto outros membros da UE discordam quanto ao que deveria realmente desencadear as sanções. A sanção que parece ter ampla aceitação é suspender a economia russa do sistema de informação bancária SWIFT.
Mais controverso é o destino do gasoduto Nord Stream 2. Espera-se que a produção de gás natural da Grã-Bretanha, Holanda e Noruega caia nos próximos anos, no exato momento em que se espera que a demanda aumente, pois é vista como uma fonte de energia mais limpa. Para tratar disso, a Rússia construiu o novo gasoduto Nord Stream 2 sob o Mar Báltico, permitindo que o gás seja canalizado diretamente para a Alemanha. Ele tem o benefício adicional de privar a Ucrânia da renda que ela obtém com o trânsito de gás.
O gasoduto foi enchido com o primeiro gás no final de dezembro e agora está esperando que as autoridades alemãs emitam a certificação final para que possa iniciar as operações. Um quarto do petróleo da UE e mais de 40% de seu gás vem atualmente da Rússia, e pensa-se que só o Nord Stream 2 tem a capacidade de fornecer um terço das futuras necessidades de gás da UE. Sanções contra o Nord Stream 2 significariam um sério enfraquecimento da economia, particularmente quando os preços da energia estão subindo.
Esta é a razão pela qual os EUA encontraram resistência para bloquear o Nord Stream 2. A recém-formada coalizão alemã de “semáforo” (entre a social-democracia, os liberais e o partido verde) entrou em sua primeira grande crise em relação a esta questão. O chanceler Olaf Scholz do partido social-democrata se opõe publicamente às sanções contra o Nord Stream 2, um reflexo dos interesses da elite empresarial alemã. Merkel apoiou o projeto, e o ex-chanceler Gerhard Schröder é presidente do Comitê de Acionistas da Nord Stream 2. A Ministra das Relações Exteriores Annalena Baerbock, entretanto, membro dos Verdes, defende sanções. Isto ela explica que é uma “política externa feminista”, embora se as sanções e a guerra resultassem desta política, seria um grande revés para as mulheres na Ucrânia e na Rússia.
Outro jogador neste perigoso jogo de guerra é a Turquia, também membro da OTAN. Erdogan sugeriu que a Turquia poderia atuar como anfitriã das negociações entre a Rússia e a Ucrânia, obviamente perdendo a ironia quando ele criticou a Rússia, dizendo
“Você não pode lidar com estas coisas dizendo ‘Eu vou invadir alguma coisa, eu vou tomar'”.
A Turquia e a Rússia têm uma relação melhor descrita como rivalidade cooperativa, às vezes concordando ao criticar os EUA, em outros momentos em conflito, como na Síria. Após a recente guerra em Nagorno-Karabakh, quando o Azerbaijão obteve grande apoio da Turquia, Erdogan apoiou publicamente a reivindicação de Kiev sobre a Crimea. Uma fábrica próxima a Kiev começou a produzir drones projetados na Turquia, que já foram usados no leste da Ucrânia.
As relações entre os EUA e a Turquia estão em um nível mais baixo de todos os tempos. A compra de mísseis por Erdogan da Rússia em 2019 levou a sanções por parte dos EUA. Agora o país quer comprar caças estadunidenses para modernizar sua força aérea. Uma parte da elite dos EUA ainda olha para Ancara como um aliado em potencial contra a Rússia, então fecha os olhos para o perigo de um colapso da economia turca, o crescimento do autoritarismo e desacordos anteriores por medo de cortar completamente as relações, e deixar a Turquia muito mais próxima do eixo China-Rússia em desenvolvimento.
Os planos do Kremlin
Consciente de que a guerra fria em curso irá, com toda a probabilidade, aproximar o Kremlin do regime chinês, Biden tem interesse em enfraquecer uma força militar tão significativa, dando-lhe um nariz sangrento antes que tal união ganhe demasiada tração. As afirmações da Casa Branca de que isto é em apoio a sua política de “promover uma ação coletiva global para impulsionar a democracia” têm sido desmascarada pela pressa em apoiar as ações brutais do regime do Cazaquistão.
Em um extraordinário artigo publicado pelo Kremlin em meados de 2019, Putin justifica sua crença de que a Ucrânia faz parte da Rússia, referindo-se, entre outros:
“A escolha espiritual feita por São Vladimir… o trono de Kiev [que] ocupava uma posição dominante na Antiga Rus… o costume desde o final do século IX… o Conto dos Anos Passados… as palavras de Oleg, o Profeta, sobre Kiev, ‘Que ela seja a mãe de todas as cidades russas'”.
Ao se aproximar dos tempos modernos, ele atacou os bolcheviques de Lenin por permitir que o povo ucraniano decidisse por si mesmo seu próprio destino, dizendo:
“O direito das repúblicas de se separarem livremente da União foi incluído no texto da Declaração sobre a Criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e, posteriormente, na Constituição da URSS de 1924. Ao fazer isso, os autores plantaram na fundação de nosso Estado a mais perigosa bomba relógio, que explodiu no momento em que o mecanismo de segurança proporcionado pelo papel de liderança do PCUS se foi…”.
Estas citações, por si só, desmente qualquer sugestão de que Putin queira restaurar a União Soviética, ou como fazem alguns números da esquerda, para justificar o apoio à Rússia como um regime mais progressista. Ele se inspira no antigo império russo, falando consistentemente de uma união, usando a antiga terminologia czarista, de Belarus, Malorússia (Ucrânia do Norte e Ocidental), Novorossiya (Ucrânia do Sul à Moldávia) e Crimeia.
Nem neste artigo nem na recentemente publicada “Estratégia de Segurança Nacional”, o Kremlin propõe uma intervenção direta para tomar qualquer uma destas áreas. Mas comentaristas falam de “cisnes negros” – eventos inesperados que oferecem oportunidades de ação. Em 2014, o Kremlin utilizou os eventos em torno da “Euromaidan” para assumir a Crimeia, e estabelecer uma posição na Ucrânia Oriental. Desde então, o conflito militar continuou até agora tirando 14 mil vidas.
Nos últimos dois anos, apareceram outros “cisnes negros”. A revolta na Belarus, conduzida ao fracasso pela oposição liberal, levou o regime belarrusso de volta à órbita do Kremlin. A guerra em Nagorno-Karabakh viu a Turquia intensificar sua influência no Azerbaijão às custas da Rússia, mas permitiu que o Kremlin tomasse um controle mais firme sobre a Armênia. A revolta no Cazaquistão viu o regime de Nazarbayev se afastar da estratégia “multivetorial” de equilíbrio entre Rússia, China e EUA, já que Tokayev tornou-se dependente das forças russas para apoiar seu regime.
Mas a nova “Estratégia de Segurança Nacional” publicada no ano passado é muito mais assertiva. De acordo com o diretor do Centro Carnegie de Moscou, a estratégia anterior, escrita em 2015, tratava de uma época diferente:
“Naquela época, as relações com o Ocidente já haviam se deteriorado drasticamente como resultado da crise da Ucrânia, mas ainda eram consideradas salváveis; grande parte da fraseologia liberal herdada dos anos 90 ainda estava em uso; e o mundo ainda parecia mais ou menos unificado. A versão atual …é um manifesto para uma época diferente: uma definida pelo confronto cada vez mais intenso com os Estados Unidos e seus aliados; um retorno aos valores tradicionais russos”.
É sem dúvida verdade que o tom e os ultimatos do Kremlin se tornaram muito mais agressivos.
Como isso pode ser realizado na prática? O “Plano A” parece ser a continuação das negociações para limitar a expansão da OTAN para o Leste. Mas a Casa Branca parece não estar pronta para um acordo sobre esta questão. Quanto mais o Kremlin aumenta a aposta com suas movimentações de tropas e jogos de guerra para pressionar o Ocidente, quanto mais o Ocidente move armas para a Ucrânia e aumenta a ameaça de guerra, maior é o risco de uma escalada acidental. O “Plano B” parece estar se aproximando à medida que as negociações se aproximam de um impasse. Então, uma decisão oficial do parlamento e do governo russos de reconhecer as duas repúblicas confirmaria o processo, pelo qual a Rússia iniciou a emissão em massa de passaportes russos e a abertura das relações comerciais. As tropas russas se deslocariam então para as duas repúblicas.
Uma nova escalada, se os mísseis da OTAN forem colocados na Ucrânia, poderia ser a transferência de mísseis russos para outros países – Cuba e Venezuela foram mencionadas. Outra opção é que haja uma intervenção rápida na parte principal do país para dar um golpe no exército ucraniano, antes de se retirar, como aconteceu na guerra de 2008 contra a Geórgia, quando o exército russo atacou a cidade de Gori.
Uma escalada mais profunda na Ucrânia pareceria problemática – em 2014 os amargos combates impediram o lado pró-russo de abrir o corredor no Sul ao redor da cidade de Mariupol. Putin teve que abandonar seu objetivo inicial de tomar conta de toda a “Novorossiya”. Hoje os militares ucranianos estão mais bem treinados e equipados, mas o mais importante, a população ucraniana verá tal ataque como uma invasão, e resistirá amargamente.
Ao contrário de então, quando houve um frenesi patriótico após a tomada da Crimeia, a população russa de hoje desconfia muito mais do Kremlin. A ômicron atingiu a população amplamente não vacinada, enquanto a situação econômica e o fortalecimento dramático do autoritarismo minaram o apoio ao regime. Uma pesquisa de opinião publicada esta semana sugere que a maioria dos russos ainda não acredita que haverá uma guerra, embora a maioria a tema, encarando a situação não como um conflito com a Ucrânia, mas com os EUA, no qual:
“Ucrânia – é um simples peão no jogo maior jogado pelos EUA… é simplesmente o jogo dos EUA, com os países ocidentais e a OTAN, que estão usando a Ucrânia para pressionar a Rússia”.
Muito significativamente, as grandes empresas também têm pouco entusiasmo por uma guerra. O recente crash do mercado de ações eliminou 150 bilhões de dólares do valor das principais empresas e o rublo está caindo. No momento, os negócios não estão se pronunciando. Como comenta um banqueiro de investimentos anônimo:
“Enquanto ninguém quer guerra, não espere que as grandes empresas se levantem e expressem sua oposição. Nós nos tornamos passageiros. A comunidade empresarial só vai discutir a guerra em suas cozinhas. Em público, todos ficarão calados”.
Este comentário, no entanto, expõe um perigo real. Desde 2014, a base social da autocracia do Kremlin tem se tornado cada vez mais estreita. Putin tem se tornado cada vez mais isolado, agravado por seu medo do coronavírus. Os visitantes de sua residência têm que ficar em quarentena por duas semanas, antes de passar por um ‘túnel de desinfecção’ especialmente fabricado. Isto torna a situação muito perigosa, pois restam poucos controles, nenhuma palavra de cautela para impedir que o Kremlin tome decisões desastrosas.
Ucrânia em crise
Superficialmente, e particularmente se você ouvir os discursos do presidente Volodymyr Zelensky, 2021 tem sido um bom ano para a Ucrânia. O PIB caiu 4% em 2020 durante a pandemia, conseguiu crescer 3,1% em 2021. O Ministério da Economia e o próprio Zelensky se orgulham de que o PIB do país atingiu agora seu nível mais alto do período pós-soviético de 200 bilhões de dólares. No entanto, esta afirmação não tem fundamento – de acordo com o mesmo Ministério, o PIB em 2020 foi de apenas US$156 bilhões. Em 2008 foi de US$ 180 e em 2013 de US$ 183.
Outras estatísticas demonstram a situação real. A renda das famílias é 20% menor do que em 2013, a inflação é oficialmente de cerca de 10% e o desemprego atingiu 9,7%. Quando ele foi eleito, Zelensky prometeu que o PIB aumentaria 40% em 5 anos, que ele pressionaria a Ucrânia a aderir à União Europeia e resolveria o conflito no Leste da Ucrânia através de negociações com a Rússia. Ele falhou em todas essas questões.
Devido a estes fracassos, a aprovação de Zelensky nas pesquisas de opinião pública vem caindo. De forma populista no ano passado, ele introduziu uma lei que supostamente restringia os direitos dos oligarcas de possuir empresas e a mídia, bem como uma campanha contra a “corrupção”. A primeira medida foi muito vista como um ataque aos oligarcas que eram pró-russos, ganhando a ira do Kremlin. Quanto aos movimentos contra a corrupção, como expressou um comentarista:
“Até agora nenhum dos maiores corruptos sofreu, e há uma razão concreta para isso – colaboração com o gabinete do Presidente”.
Enquanto as críticas cresciam dentro de seus próprios circuitos, Zelensky agora se moveu contra alguns de seus antigos apoiadores, demitindo, por exemplo, o presidente da Rada, o parlamento, Dmytro Razumkov.
Estas medidas não ajudaram a recuperar sua aprovação. Há ameaças também de grandes aumentos nos preços dos serviços públicos. Uma pesquisa de opinião realizada em dezembro sugeriu que 67% da população acredita que o país está se movendo na direção errada, acima dos 36% de dois anos atrás. Apenas 5% dos entrevistados disseram que sua posição material havia melhorado nos últimos dois anos, enquanto o conflito militar, o aumento dos preços dos serviços públicos e os baixos salários foram todos apontados por mais de 60% dos entrevistados como “os problemas mais graves”.
É contra este pano de fundo que o clima de guerra está sendo criado na Ucrânia. Em dezembro, Zelensky anunciou que um golpe pró-russo estava prestes a acontecer. Esta trama parece ter sido regurgitada pelo Ministério das Relações Exteriores de Boris Johnson que afirma ter descoberto esta semana uma trama para instalar um governo pró-russo em Kiev. Esta afirmação está sendo ridicularizada em Kiev. Um ex-porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia reagiu dizendo:
“Este cenário só funcionaria com uma verdadeira invasão assumindo o controle de Kiev. A cidade seria dizimada, suas terras queimadas, e um milhão de pessoas fugiriam. Temos 100 mil pessoas na capital com armas, que lutarão… Pode haver um plano, mas é uma besteira”.
Esta última afirmação do governo Johnson representa mais um elemento para as divisões na Europa. Sem dúvida, tentando desviar a atenção da crise existencial que seu governo enfrenta, Johnson declarou que o Ministério das Relações Exteriores britânico está intensificando a atividade para reforçar a unidade da OTAN atrás da liderança dos EUA, enquanto critica a sugestão de Macron de que agora é o momento de estabelecer uma estrutura de defesa europeia, e a hesitação do governo alemão em relação às sanções do Nord Stream 2.
Na Ucrânia, o número de pessoas que agora pensam que a guerra pode ser evitada através de negociações está caindo. Uma minoria acredita que a Rússia está preparando uma invasão em grande escala. Muito mais provável, na opinião de muitos, é uma incursão e um aumento da atividade militar na zona de conflito entre as repúblicas não reconhecidas e o resto da Ucrânia. Uma pesquisa de opinião realizada em meados de dezembro mostrou que a maioria dos que vivem na Ucrânia resistiria a uma invasão da Rússia, 33% pegariam em armas para fazê-lo.
A situação se torna mais complexa pela sensação de terem sido abandonados pelo Ocidente. Há um crescente clima anti-NATO com comentários como:
“É como se eles nos tivessem abandonado. Somente a Grã-Bretanha, os países bálticos e a Polônia estão se saindo bem. E nos EUA o presidente é ruim, um trapo, mas também há boas pessoas lá, que deveriam se levantar para se opor ao presidente”.
A polarização global em desenvolvimento está mudando a relação entre a Rússia e a China – não faz muito tempo, eles se viram competindo por influência. Agora eles estão se aproximando – ambos tendo regimes autoritários de direita, temerosos de seus próprios povos e usando a agressão dos EUA na atual guerra fria em desenvolvimento para apresentar seus países como enfrentando ataques estrangeiros. Ambos apoiaram o golpe em Myanmar, Lukashenko na Belarus, e o regime do Cazaquistão.
A China vê a situação na Ucrânia como mais um exemplo da agressão dos EUA. Há, no entanto, uma nuança importante. A China pediu a Putin que não iniciasse uma guerra na Ucrânia até que os Jogos Olímpicos de Inverno terminassem. Putin planeja assistir à abertura dos jogos, e sem dúvida estará testando quanto apoio ele pode esperar de Pequim, enquanto que se a situação se agravar na Ucrânia, abrirá um precedente para as ações da China no Mar do Sul da China e em Taiwan.
A guerra pode ser evitada?
Os diferentes lados podem não estar planejando escalar o conflito. Mas com seus belicismos e ultimatos, seus interesses nacionais/imperialistas, a situação pode facilmente se desenvolver fora de controle. Mesmo que agora uma guerra não se desenvolva, dada a crescente polarização do mundo entre diferentes interesses imperialistas, é apenas uma questão de tempo até que novos conflitos “por procuração” se desenvolvam aqui, ou em outro lugar. Isto levanta a necessidade da construção de um movimento antiguerra de massas. Em que base?
Não pode haver confiança em nenhuma negociação de paz conduzida pelas potências imperialistas. É o conflito entre os interesses das diferentes potências imperialistas que está causando as condições para que tais guerras se desenvolvam. As forças e equipamentos de todas as forças imperialistas – Rússia e OTAN – devem ser retiradas da Ucrânia e do Leste Europeu.
A Ucrânia tem o direito de se defender, a questão é no interesse de quem e de que maneira? A elite dominante exigirá a unidade nacional, o que na realidade significa defender o governo dos oligarcas, que desde a independência deixou a Ucrânia pulando de uma crise para outra enquanto os ricos simplesmente se enriquecem cada vez mais. A extrema-direita e os belicistas vão criar um clima nacionalista reacionário, que deixará os ucranianos lutando por conta própria e, em vez de acabar com o conflito, aumentará o ódio e ampliará o conflito.
Mas a guerra não é do interesse da classe trabalhadora. Uma classe trabalhadora organizada defenderia suas casas e locais de trabalho, e unificada em um forte movimento antiguerra na Ucrânia poderia fazer um forte apelo de classe aos trabalhadores na Rússia e em outros lugares para que eles mesmos tomassem medidas para acabar com a guerra.
Para realmente impedir a guerra, porém, é necessário um movimento internacional, manifestações de massas e até greves nos EUA, Rússia e países da OTAN. Mas como os movimentos antiguerra anteriores demonstraram, mesmo os enormes protestos globais contra a invasão do Iraque envolvendo milhões de pessoas não foram suficientes para deter a guerra.
A ASI apóia o apelo feito pelos camaradas da Sotsialisticheskaya Alternativa na Rússia e na Ucrânia para se oporem à guerra:
“Os socialistas apelam para que todos os trabalhadores e estudantes conscientes comecem a construir um forte movimento internacional antiguerra, virando-o contra qualquer um que tente provocar a guerra entre os povos. Não estamos lutando pelo pacifismo abstrato, mas por uma luta unida contra o sistema que causa guerra, pobreza, catástrofe climática e ecológica, pandemias e autoritarismo”.
Isto requer a construção de movimentos políticos poderosos para opor-se às elites capitalistas que lucram com a guerra, para tomar em propriedade pública democrática as empresas de petróleo e gás e outros recursos de propriedade dos oligarcas, e para acabar com o domínio dos belicistas imperialistas, garantindo os direitos reais à autodeterminação e a construção de uma federação verdadeiramente democrática e socialista da Europa e do mundo.