Congresso do PSOL, a reorganização da esquerda e os desafios históricos para os socialistas

O processo congressual do PSOL está em andamento. As teses foram escritas e já começaram os debates virtuais que vão desembocar na primeira etapa de votação, onde os votos depositados em urnas irão definir a divisão de delegados e delegadas para os congressos estaduais, que por sua vez irão eleger representantes para o congresso nacional.

O debate central é o mesmo que permeia toda a esquerda: como derrotar Bolsonaro e qual será o papel das eleições 2022 nesse processo. Isso ocorre num contexto de mais de meio milhão de mortes pela pandemia, agravadas pela política genocida de Bolsonaro, junto com os ataques a direitos e ameaças autoritárias, mas também de uma retomada das lutas.

Esse debate está levando a um novo realinhamento de forças fora e dentro do partido e levanta temas que vão além das eleições. No fundo se trata de um debate de estratégia para a luta da classe trabalhadora. Felizmente, temos um rico acervo de lições não só históricas, mas das importantes lutas e processos que ocorreram no último período da América Latina.

O elemento que está levando a um realinhamento é uma eventualcandidatura de Lula, já que é visto como quem tem a melhor, ou até a única, chance de derrotar Bolsonaro em 2022. Isso é um tema que leva a divisão nos partidos de centro-esquerda, como PDT e PSB, com a tentativa de Ciro a se cacifar como uma “terceira via” entre Lula e Bolsonaro, apelando ao antipetismo e a direita que é contra Bolsonaro. Também se reflete, junto com a lógica da cláusula de barreira a ida do Flávio Dino do PCdoB para o PSB, que pode ser seguido pela Manuela D’Ávila.

No PSOL são poucos que se posicionam por uma frente “amplíssima” de “todos contra Bolsonaro”. Foi essa posição que levou à saída de Marcelo Freixo (que foi para o PSB) e Jean Wyllys (para o PT). Freixo quer fazer uma frente que inclui Rodrigo Maia, Eduardo Paes, ambos agora no PSD, e viu que não espaço para essa política no PSOL. 

Essa posição de Freixo reflete uma política que enxerga o caminho para as mudanças limitado à atuação institucional e parte da avaliação de que tudo é subordinado a derrota de Bolsonaro (e a avaliação que só pode ser em 2022). Por isso vale a pena até aliança com quem apoiou o golpe contra a Dilma, em nome da defesa da democracia!

A saída de Freixo do PSOL terá um impacto importante, especialmente no Rio de Janeiro, onde é uma das principais figuras da esquerda. O partido tem raízes e perfil forte, sendo mais forte que o PT. Um debate central no estado vai ser como manter esse perfil próprio. Há um espaço para o programa do PSOL, mesmo que possa parecer pequeno entre uma candidatura de Freixo de um lado e uma base forte do bolsonarismo no outro.

Lula ou candidatura própria

Dentro do PSOL o principal debate é entre aqueles que defendem uma aliança ao redor de uma candidatura de Lula já no primeiro turno e quem defende uma candidatura própria. 

O argumento pelo apoio a Lula é que há uma vontade muito forte pela unidade e que não há espaço para uma candidatura do PSOL. Através de uma aliança com Lula, o PSOL pode influenciar os rumos da candidatura e também negociar acordos para suas candidaturas em nível estadual.

O principal problema desse argumento é que ele parte de uma vontade que não condiz com os fatos que tem se apresentado concretamente. Lula já deixou claro que continuará com a mesma política de conciliação de classes, buscando reatar os laços com o Centrão e com empresários não bolsonaristas. A tendência é que essa situação se afirme no ano que vem com a aproximação da campanha eleitoral e fique mais evidente as alianças que serão costuradas, mas desde já vemos as conversas de Lula com Sarney, Kassab, e outros. É também bem possível que Lula tentará garantir novamente um empresário como vice, como foi o caso de José Alencar em 2002. 

Por isso, defender que é possível uma “frente de esquerda” com PT, que não vai além da centro-esquerda (PSB, PDT, Rede), é vender ilusões e adiar um problema que teremos que enfrentar mais à frente.

Como alertamos, iniciar a discussão sobre eleições apontado como “plano A” a necessidade de “unidade” nas eleições é uma armadilha. Primeiro porque, até as eleições de 2022 temos um largo período. Basta pensar há dois meses atrás, em meados de maio, quando foram enviadas as teses para o Congresso, boa parte da esquerda não imaginaria que estaríamos ocupando as ruas aos milhares ainda no mesmo mês. Em segundo lugar, estabelecer essa “unidade” desde agora coloca o PSOL em uma situação em que de antemão recua programaticamente, para não atrapalhar esse processo. Isso já teve reflexo nas teses para o congresso das correntes que defendem essa linha, com o rebaixamento do balanço crítico dos governos do PT. 

A tese do PSOL de Todas as Lutas, que reúne a Primavera Socialista, Revolução Solidária (corrente liderada por Boulos) e outros, tem um programa econômico rebaixado, sem abordar temas como privatizações. Outro tema importante é o da dívida pública, em que já há um recuo faz tempo da linha que o PSOL defendia anteriormente, de colocar a necessidade de suspensão do pagamento junto com auditoria da dívida. Isso mostra uma crescente influência de defensores da “Teoria Monetária Moderna”,uma linha reformista que coloca que dívida pública não é um problema e que não há necessidade de colocar temas que apontam para necessidade de ruptura como sistema capitalista.

Essa busca de unidade com o PT não tem dado muitos frutos ainda. Em São Paulo, Boulos já está em pré-campanha para governador e está na frente nas pesquisas, mas o PT não abre mão da pré-candidatura de Haddad e a possibilidade de conquistar o estado mais rico e populoso do país. 

O sentimento forte pela unidade contra esse governo genocida é algo positivo e temos que dialogar com ele, mas o PSOL não deve simplesmente se adaptar a esse sentimento. É necessário o partido agir como a “memória da classe trabalhadora”, traçando estratégia e perspectivas para as lutas, para não cair em armadilhas que já conhecemos. Também é necessário em transformar isso em um programa socialista que pode mostrar um caminho para fora dessa crise. 

O PSOL nasceu por causa da necessidade de superar o PT e sua linha de conciliação de classes, exatamente porque ela leva a crises com a que vivemos. Bolsonaro é mais um sintoma e produto da crise do sistema do que sua causa. Para derrotar o bolsonarismo é necessário derrotar o sistema que o criou. 

É exatamente a profundidade dessa crise que torna impossível apontar saídas que não rompem com a lógica do sistema. Não há solução para os problemas da pandemia, auxílio emergencial, moradia, desemprego, inflação, educação, etc. que não passa por temas como a necessidade de um grande programa emergencial de investimentos públicos bancados com taxação dos bancos, grandes empresas e fortunas, não pagamento da dívida pública, com auditoria e estatização do sistema financeiro, estatização das farmacêuticas, etc.

O PT vai querer fazer uma campanha tentando trazer de volta a memória dos melhores momentos dos governos do PT. Mas lembremos que as medidas limitadas de redistribuição de renda foram possíveis, sem ameaçar os lucros e os limites do sistema, em um momento de crescimento da economia mundial que não é o que temos pela frente. O que teremos pela frente não é voltar para a situação de 2003 e o primeiro mandato de Lula, mas para 2015 e o segundo mandato de crise de Dilma.

Qual é o caminho então?

Primeiramente, temos que sempre repetir que não há vitória em 2022 que não passa pelas lutas de 2021. O que pode garantir uma correlação de forças positiva será a participação ativa de nossa classe nas lutas desde já. É agora que precisamos construir a mais ampla expressão da vontade de unificar para derrotar Bolsonaro.

O que garante a amplitude é, sobretudo, a unificação das lutas em todas suas matizes. Não há luta forte e ampla se não levantarmos o temas das opressões, como racismo e feminicídio, as demandas das periferias, a questão indígena, a questão ambiental, a luta contra as privatizações, contra a reforma administrativa. Ninguém da nossa classe pode ficar pra trás. E essa luta extrapola os limites do sistema.

Também não podemos cair na armadilha em achar que o que garante voto é a quantidade de partidos na aliança. Grande parte da população não se enxerga nesse sistema político, e com razão. Quem conseguir expressar o sentimento de mudança pode levar uma camada nova para a luta e também para as eleições. O Bolsonaro em 2018 foi um exemplo disso pela negativa, quando fingiu ser antissistêmico e derrotou o mega aparato eleitoral de Alckmin. Pela positiva, temos a candidatura de Boulos e Erundina indo no segundo turno em São Paulo no ano passado. A candidatura de Pedro Castillo no Peru, também é um exemplo. Era alguém que nem era considerado nas pesquisas, mas como um professor que liderou uma vitoriosa greve da educação conseguiu captar a vontade por mudança.

Uma aliança ampla, com programa rebaixado, não é garantia de vitória contra Bolsonaro, apesar de ele hoje estar fragilizado. Com o avanço da vacinação e recuperação da economia, ele pode também se recuperar, se não há estratégia para as lutas. Sabemos que a recuperação econômica não será nem perto suficiente para melhorar a situação da população pobre no próximo período. 

Também não negligenciamos os riscos autoritários, com Bolsonaro já em campanha para descreditar o sistema eleitoral para não aceitar uma derrota. A aposta de sangrar Temer em 2017, que era muito mais fraco que Bolsonaro, levou à tragédia 2018 e não devemos repetir essa receita.

O partido tem que se preparar para possíveis explosões sociais, como vimos tantas vezes na América Latina nos últimos anos. Essas explosões são momentos onde é possível reconfigurar totalmente o cenário político, como vimos nas eleições no Chile. A pior situação para o PSOL nesse caso é entrar no debate político com uma mão atada, sem programa e perfil próprio.

A necessidade de um programa que extrapola os limites do sistema é fundamental para o próprio partido não se tornar refém do sistema. Estamos vendo como a prefeitura do PSOL em Belém agora está na armadilha de defender uma reforma da previdência no município, já que ir contra isso pode esbarrar nas leis orçamentárias. Desafiar esses limites requer uma estratégia de luta que rompa com as lógicas do sistema e também das alianças com partidos que se adaptaram ao sistema.

O PSOL vem crescendo nas últimas eleições, o que é extremamente positivo. Mas junto com esse crescimento aumenta também a pressão do trabalho institucional. O partido não tem só mais de cem vereadores, deputados e prefeitos. Junto com isso vem centenas de assessores e uma responsabilidade de dar respostas a cada dia a questões burocráticas. Para o partido não ser levado pela lógica das instituições, e não se tornar totalmente dependente de seus mandatos, é preciso raízes fortes nos movimentos e lutas, mas também um programa socialista enraizado na ruptura com o sistema. Sem isso, a lógica do sistema vai prevalecer.

Candidatura Glauber

Muitas das correntes que estão na linha de que o PSOL deve lançar candidatura própria em 2022 se uniram ao redor da pré-candidatura de Glauber. O manifesto em apoio de sua candidatura traz elementos programáticos positivos e importantes. Glauber também tem dado uma linha boa para o tema da unidade nas eleições, colocando que, além da unidade que teremos contra Bolsonaro no segundo turno, ele defende que o partido deve abrir mão de candidatura até no primeiro turno, se for preciso para evitar um segundo turno com Bolsonaro e outra candidatura da direita.

Esse cenário não parece o mais provável hoje, onde Lula e Bolsonaro estão disparado na frente, no entanto não pode ser descartado. Porém, é correto enfatizar que para o partido é melhor fazer a defesa de um programa necessário até onde for possível, e não descartar candidatura própria desde já. 

As dúvidas que temos sobre a candidatura de Glauber está mais relacionada com os grupos que hoje sustentam essa alternativa. Se corremos o risco de ter uma pressão pelo oportunismo e rebaixamento programático diante da candidatura de Lula, por outro lado há um risco de cair em um sectarismo antipetista.

Já vimos isso no partido no debate das prévias em São Paulo no ano passado entre Boulos e Sâmia Bonfim. O debate era muitas vezes rebaixado em uma linha que a candidatura de Boulos era “puxadinho do PT”, o que foi muito negativo. Mesmo com as críticas programáticas que fizemos à campanha de Boulos, foi uma campanha bastante positiva e longe do que apontava esses ataques.Não queremos que o debate seja novamente nesses moldes, já que isso dificulta temas espinhosos e fundamentais que precisamos aprofundar, onde não há respostas simples.

A tendência colocada, especialmente em um momento de congresso e disputa pela direção do partido,é de uma polarização exagerada no debate, por causa da lógica da disputa interna por aparato, onde há problemas nos dois campos. Para dar um exemplo central, a principal corrente que apoia Glauber é o MES, que se coloca pela candidatura própria, mas também não descarta aliança no primeiro turno, desde que não seja só com PT, também com a centro-esquerda (PSB, PDT, Rede). E lembramos outros debates que tivemos com o MES, desde a primeira eleição onde fizeram aliança fora da esquerda (com PV em Porto Alegre em 2008, quando também a corrente que hoje é a Primavera Socialista fez aliança com PSB em Macapá), ou o caso de recebimento de dinheiro de grandes empresas para a suas candidaturas. Também pela posição por bastante tempo a favor da Lava Jato e agora no começo da ano a defesa que a bancada do PSOL deveria votar em Baleia Rossi no primeiro turno para presidente da Câmara.

Por esses motivos, a LSR hoje enfatiza o tema da necessidade de o PSOL apresentar um programa para as eleições, mais do que a defesa de um nome propriamente, considerando esse um tema em aberto. De um lado, a candidatura de Glauber deu uma injeção para o debate programático, por outro avaliamos que deve-se evitar que seja utilizado para uma disputa interna por aparato e debate polarizado em torcidas.

Novos realinhamentos

O PSOL passa por um novo realinhamento que atravessa praticamente todas as correntes. A última vez que houve um realinhamento tão profundo foi 2016-2018, pegando o período do golpe parlamentar contra Dilma até as eleições. Naquele momento, houve uma polarização ao redor da aproximação de Boulos e do MTST ao partido. A LSR foi a primeira corrente a levantar uma possível candidatura de Boulos à presidência pelo PSOL em 2018 em reunião do diretório nacional do partido.

No processo de entrada dos quadros do MTST, nós nos posicionamos por um período junto com a aliança que agora chama PSOL de Todas as Lutas, por entender a importância a aproximação do PSOL aos movimentos sociais, tanto o MTST como APIB e outros que poderiam se aproximar a partir desses, fortalecendo necessárias raízes do partido das lutas.Outro fator que levou a essa localização foi por posições importantes na conjuntura, como a oposição firme desde o início ao golpe e oposição ao Lava Jato.

Começamos também a construção de um campo, agora conhecido como Campo Semente, com qual fizemos uma tese conjunta para o congresso do ano passado, que foi cancelado. Junto com esse campo levantamos temas como a defesa do programa socialista, o balanço crítico do petismo, defesa de estruturas democráticas no partido e contra uma política de alianças ampla.

No processo de construção de teses para esse ano, não foi possível para nós fechar uma tese conjunta, exatamente pelo tema da aliança com PT no primeiro turno. Enquanto nós defendíamos que o partido só deveria abrir mão de uma candidatura própria caso havia risco de uma derrota maior, como um segundo turno com o Bolsonaro e outra candidatura da direita, as outras correntes do campo defendiam que a principal tática deve ser a frente já no primeiro turno, mesmo pelo preço de não ter um programa anticapitalista.

Diante disso, optamos por não assinar a tese nacional conjunta. Entendemos que são posições distintas e legítimas em um debate que não se encerrou. O processo congressual deve servir exatamente para esses debates e esse sem dúvida vai ser um dos temas centrais do congresso, o que reforça a importância de uma tese que ajude a explicitar as linhas, testar elas no debate e na prática, ao invés de tentar sínteses entre posições díspares cedo demais.

Isso nos colocou em uma situação inédita. Pela primeira vez a LSR, desde a fundação do partido em 2004, não apresentou uma tese nacional. Pelo tempo só conseguimos uma tese parcial sobre o tema, além de uma contribuição sobre a luta pelo feminismo socialista. Mesmo assim, onde houve acordo, assinamos teses estaduais conjuntas com correntes do Campo Semente.

Acreditamos que os processos que enfrentaremos nas lutas e processo eleitoral até o ano que vem, irão ajudar a esclarecer esses temas e esse realinhamento irá se expressar em novas configurações. Esse é um dos trunfos de ter no Brasil um partido como o PSOL, que tem em suas fileiras distintas posições que podem se confrontar e permitir um processo vivo e dinâmico, necessário nesse cenário de reorganização da esquerda.Com um debate aberto, franco e fraterno, junto com a intervenção nas lutas será possível fortalecer o partido. Acreditamos que haverá um espaço para fortalecer um campo que não caia em nenhuma das armadilhas gêmeas: o oportunismo eleitoreiro e das instituições ou o isolacionismo sectário.

Nesse debate, temos que confiar na capacidade de luta da classe trabalhadora. Os protestos de 29 de maio, 19 de junho e 3 de julho foi um vislumbre do que é possível. Até outubro de ano que vem não há dúvida que a nossa classe terá várias chances de mostrar sua força, se juntando aos exemplos de nossos irmãos e nossas irmãs de classe no continente. Temos também que ter a confiança que nosso programa socialista representa uma saída para as crises, miséria, opressão e exploração sem fim que representa essa sistema. 

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