Abalado por crises, Bolsonaro tenta recompor governo

Preparar a retomada das lutas por direitos, pela vida e pelo Fora Bolsonaro

No pior momento da pandemia até agora, com mais de 3 mil mortos diariamente, a troca de seis ministros e dos três comandantes das Forças Armadas essa semana refletiu uma das piores crises até agora do governo Bolsonaro. Durante algumas horas na segunda-feira, na medida que surgia notícias de queda de ministros, incluindo a demissão do Ministro da Defesa Fernando Azevedo surgia ideais de que um golpe era eminente ou, no outro extremo, que o governo estava derretendo. É importante fazer uma avaliação fria desses processos, evitando cair num impressionismo que leva ao alarmismo, mas também sem deixar de ver os perigos inerentes à situação atual.

Como chegamos aqui?

Essa crise é mais profunda da que teve seu auge em maio do ano passado, que levou ao desembarque de Sergio Moro e demissão de Weintraub. No ano passado, era uma combinação da crise sanitária e econômica, junto com as investigações que chegavam cada vez mais próximos de filhos de Bolsonaro, levando a confrontos com STF, o Congresso e a mídia. Nas ruas havia mobilizações da direita, mas também atos da esquerda. Acuado, Bolsonaro foi para o ataque. Chegou a contemplar intervir contra o STF, mas foi aconselhado pelos militares a recuar.

Houve uma estabilização com a introdução do auxílio emergencial. O avanço da pandemia também fez que os protestos de rua recuassem e Bolsonaro abriu para uma colaboração com o Centrão no Congresso, para garantir uma base que poderia bloquear os inúmeros pedidos de impeachment.

O auxílio emergencial trouxe uma recuperação da popularidade de Bolsonaro, apesar da política catastrófica no combate à pandemia e troca de ministros da saúde. Mas nas eleições municipais, sem ter conseguido fundar partido próprio, ele viu grande parte de seus candidatos saírem derrotados. 

A partir da segunda onda da pandemia, a situação se agravou para o governo. O caos sanitário que começou no Amazonas se espalhou pelo país inteiro, com hospitais lotados, falta de remédios e oxigênio, levando a um rápido aumento de mortes. A alta nos preços dos alimentos e combustíveis, junto com um desemprego recorde e o fim do auxílio emergencial, trouxe de volta a fome em larga escala.

Ao mesmo tempo, a aliança com o Centrão veio com um preço e pressão por cargos e verbas. O processo de elaboração do orçamento desse ano atrasou por meses. A vitória do candidatos do Centrão para o comando da Câmara e Senado parecia um trunfo que fortaleceria o governo, mas se mostrou uma faca de dois gumes, fortalecendo o Centrão.

Março: agravamento da pandemia e das crises

Veio assim o mês de março, quando todas as tensões se agravaram. A pandemia deu um salto, com as médias diárias de mortes subindo rapidamente, passando de 1.000 para 2.000, agora superando 3.000 por dia. O mês fechou com quase 67 mil mortes, mais que o dobro do segundo pior mês da pandemia. Isso teve reflexo nos eventos políticos que vieram um atrás do outro.

No dia 8 de março, Fachin anulou a condenação de Lula, restaurando seus direitos políticos e embaralhando o cenário eleitoral de 2022. Isso foi confirmado com a decisão da segunda turma do STF pela suspeição de Moro no caso do tríplex contra Lula.

No dia 11 de março foi aprovada a PEC Emergencial, bastante desidratada comparando com o projeto inicial, mas ainda com ataques importantes, especialmente o gatilho que levará ao congelamento dos salários de servidores quando. Isso levou a manifestações também de parte da base bolsonarista, com os policiais rodoviários federais protestando.

Na segunda-feira dia 15, cai finalmente o “general Pesadelo”, ministro falido da saúde. Durante esse período, Bolsonaro continuou a apostar na linha de jogar a culpa nos governadores e prefeitos, apelando ao sentimento contra medidas de isolamento. Essa política tem uma ressonância que vai além dos negacionistas terraplanistas, já que muitos trabalhadores e pequenos empresários não têm amparo financeiro que permite ficar em casa. Também não ajuda as políticas erráticas dos governadores, declarando “emergência”, mas mantendo boa parte das atividades abertas na desculpa de serem “essenciais”, como indústrias, escolas, igrejas, etc.

Diante da escalada da crise, Bolsonaro tentou ir para a ofensiva, tentando barrar medidas de governadores no STF, mas sem sucesso. Ao mesmo tempo apelava à sua base falando: “O meu Exército não vai para a rua cumprir decretos de governadores, não vai. Se o povo começar a sair, entrar na desobediência civil, sair de casa, não adianta pedir ao meu Exército, meu Exército não vai nem por ordem do Papa. Não vai.”

A semana passada começou (22/3) com a carta de centenas de banqueiros, empresários e economistas, em que apresentam uma dura crítica ao governo pela falta de política para lidar com a pandemia e acelerar a vacinação, já que isso afeta a economia e seus lucros. No dia seguinte, pressionado, Bolsonaro fez um pronunciamento mentiroso na TV, alegando que sempre foi a favor da vacina e que 2021 vai ser o “ano da vacinação”.

Na quarta-feira, dia 24, o presidente da Câmara, Arthur Lira, fez um discurso duro cobrando medidas contra a Covid, falando que acendeu o  “sinal amarelo”, que “tudo tem limite” e que “os remédios políticos no Parlamento são conhecidos e são todos amargos. Alguns, fatais.”

Já na quinta-feira, Bolsonaro assinou decreto que cria o “Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento da Pandemia da Covid-19”, com líderes do Executivo e Legislativo, para se reunir semanalmente e discutir o combate à pandemia. Porém, sem capacidade de convencer ninguém, já que continuou atacando medidas de isolamento e falando contra máscaras.

A pressão aumentava ao mesmo tempo contra o chanceler Ernesto Araújo, um dos principais porta-vozes da “ala ideológica” olavista.

No domingo, dia 28, houve o trágico episódio do PM Weslei em Salvador, que em surto foi morto depois de atirar contra outros PMs. Os bolsonaristas mais reacionários tentaram usar esse episódio para incitar um motim entre PMs. A Bia Kicis, que agora preside a CCJ chegou a publicar: “Soldado da PM da Bahia abatido por seus companheiros. Morreu porque se recusou a prender trabalhadores. Disse não às ordens ilegais do governador Rui Costa da Bahia. Esse soldado é um herói. Agora a PM da Bahia arou. Chega de cumprir ordem ilegal!”. Depois de algumas horas ela deletou a postagem.

Dança das cadeiras

Diante dessa situação, com crises e pressões de vários lados, Bolsonaro tentou reorganizar e estabilizar a situação. Além de trocar Ernesto Araújo, ele tinha que tentar manter a relação com o Centrão e garantir algum cargo, que cumpriu com a indicação da Flávia Arruda do PL a Secretaria de Governo. 

Bolsonaro estava incomodado com José Levi (Advocacia-Geral da União), que não assinou a ação ao STF para impedir que governadores adotem medidas de isolamento contra a pandemia. Ele foi substituído por André Mendonça, que já foi da AGU, abrindo espaço como Ministro da Justiça para Anderson Torres, delegado próximo da família, que pode reforçar a relação com a Polícia Federal. 

O mais surpreendente foi a dança das cadeiras que ele promoveu entre os militares, partindo da demissão de Fernando Azevedo. Bolsonaro queria que as Forças Armadas se alinhassem ainda mais ao governo.

Porém, isso levou a uma reação de altos militares, com os três comandantes das Forças Armadas colocando seus cargos a disposição diante da demissão de Azevedo. O incômodo que isso gerou entre militares se evidenciou no fato que Bolsonaro teve que aceitar a indicação com o critério de antiguidade. Assim, para comandar o Exército foi escolhido o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, irritando Bolsonaro, já que como responsável pela medidas sanitárias no Exército, Oliveira implementou medidas de isolamento.

Bolsonaro e a ameaça de golpe

Quais conclusões podemos tirar dessa situação? Hoje não há base social suficiente para um golpe militar. Em 1964 o golpe tinha apoio da mídia, dos empresários, dos EUA. Hoje não é esse o cenário e Bolsonaro tem noção disso. Mesmo assim, não se descarta que se acuado pode embarcar em uma aventura, como ele considerou no ano passado contra STF, que pode começar com uma medida mais pontual, mas pode assumir uma dinâmica própria e virar uma bola de neve, especialmente se surgir uma ameaça jurídica mais concreta contra seus filhos, ou mesmo contra ele.

A tentativa de usar o caso do PM Weslei em Salvador mostra que parte da base bolsonarista tenta impulsionar ações golpistas, insatisfeitos com tantas concessões, como foram feitas ao Centrão, que era visto como parte do campo inimigo.

A estratégia de Bolsonaro é fazer tudo para ganhar as próximas eleições e entende que precisa até lá o apoio do Centrão. Sua estratégia se assemelha à de Trump, de se colocar como quem está lutando contra o sistema e o Estado corrupto, por isso as falas contra governadores, STF, mídia, etc. Também como Trump, não aceitará uma derrota, o que pode levar a uma aventura golpista. 

Militares democráticos?

Esse episódio mostrou também que entre os militares há um setor que tenta se distanciar do governo, não querendo ser avalista para uma condução catastrófica da pandemia. Porém, é importante não ter quaisquer ilusões em uma suposta ala “democrática” entre os militares, que se rebela contra a “politização dos quarteis”. A cúpula militar é cúmplice desse governo, mesmo se agora um setor pode querer pular fora. 

São seis mil militares em cargos políticos indicados pelo governo. O ex-comandante Pujol, que agora se diz crítico a “politização”, autorizou que generais da ativa ocupassem cargos no governo, incluindo ministérios. Fernando Azevedo, agora demitido, assinou nos dois últimos anos a Ordem do Dia na data do golpe, descrevendo ele como um “marco da democracia”, e também sobrevoou com Bolsonaro uma manifestação pedindo intervenção militar em frente ao STF.

Conflitos continuam com o Centrão

Lira, tão crítico na semana passada, ficou bem quieto nessa, dizendo que a recomposição do governo é “normal”. Conseguiu dar um passo para fortalecer sua posição com a indicação de Flávia Arruda. 

Mas as tensões continuam. Não está resolvido o imbróglio do Orçamento, que saiu do Congresso sem cumprir o teto de gastos. O relator do Orçamento, Marcio Bittar (MDB-AC), cortou em despesas obrigatórias como previdência, abono salarial e seguro desemprego, para abrir espaço para emendas de parlamentares. A Folha de S. Paulo relata um clima de revolta no Ministério da Economia, com possiblidade de novas renúncias de secretários contra um orçamento que avaliam ser ilegal. 

Além do cabo de guerra sobre o orçamento, o Centrão irá cobrar mais cargos, incluindo ministérios, para sustentar o governo. Quanto mais crise, mais caro o apoio.

Bolsonaro tenta se equilibrar entre manter o apoio do Centrão e manter sua base. Não é possível, porém, em uma situação de crise profunda, garantir qualquer estabilidade.

Impeachment volta à tona?

A profundidade da crise e o ressurgimento da possibilidade de uma candidatura de Lula muda o cenário. A direita tradicional precisa se reposicionar. Na busca por uma “terceira via”, cresce a avaliação de que é melhor bater no Bolsonaro do que tentar concorrer com Lula por uma vaga no segundo turno. Há também aqueles que avaliam que um impeachment de Bolsonaro seria benéfico, tirando um concorrente do caminho, mas ao mesmo tempo enfraquecendo Lula como polo de oposição.

Hoje o Centrão é um entrave contra um impeachment, mas se a crise continua a se agravar, e Bolsonaro derum passo em falso ou não se dispor a pagar o preço alto cobrado pelo Centrão por seu apoio, os ratos podem rapidamente abandonar o navio furado.

Nesse caso, temos que nos preparar para medidas golpistas também por parte da direita. O golpe contra a Dilma não foi obra de Bolsonaro. O julgamento que tirou Lula do caminho também precede a onda bolsonarista. É importante lembrar disso quando se fala em “Frente Ampla” com “setores democráticos” da burguesia. Grande parte deles foram os golpistas de ontem. Isso não significa que é impossível fazer alianças pontuais para barrar ataques de Bolsonaro, mas não como aliança política.

Tarefas imediatas

Vivemos em uma situação extremamente peculiar, onde há uma crise muito profunda, de ataques duros e grande descontentamento na população, mas sem possibilidade de expressar isso em forma de luta de massas. Historicamente, esse tipo de crise no andar de cima da sociedade costuma ser o empurrão necessário que leva as pessoas às ruas, mas com milhares de pessoas morrendo diariamente, isso não é possível. Mas não significa que as contradições e tensões somem. Elas estão acumulando por debaixo da superfície, esperando surgir uma rachadura por onde escapar. Como vimos em outros países, isso pode acontecer até antes do fim da pandemia, mas não em um momento de escalada rápida da crise sanitária como o atual. 

Essa calmaria na superfície pode continuar por mais um tempo, mas é improvável que dure até as eleições. Até o segundo semestre teremos camadas maiores da população já vacinadas. Bolsonaro espera que o novo auxílio emergencial acalme os ânimos até a vacinação e a economia acelere, e que isso por sua vez melhore suas chances. Esses são fatores a se considerar, mas não superarão o peso das múltiplas crises, além da política de ataques que o governo vai continuar a tentar implementar. A recuperação econômica ainda é frágil e pode se reverter, com um cenário mundial extremamente instável.

Mas, é um equívoco colocar todas as esperanças em uma saída através das eleições 2022, especialmente se ela não for preparada com uma retomada das lutas. Só com muita luta poderemos garantir uma correlação de forças favorável para barrar a onda de ataques que virão antes das eleições, assim como construir as condições para uma saída pela positiva nas próprias eleições. Bolívia mostrou como é possível reverter a derrota que foi o golpe em 2019. Mas para garantir as eleições e uma vitória política contra foi necessário greve geral e mobilização de massas nos meses que antecederam o pleito.

Até que seja possível a retomada de lutas em escala maior, que podemos fazer? Ainda nessa situação difícil é possível acumular forças. Há lutas importantes em curso, como a greve de professores em São Paulo contra a retomada de aulas presenciais. Onde é possível tomar iniciativas de lutas, devemos impulsionar. Mesmo no trabalho de solidariedade necessário contra a fome, podemos e devemos nos organizar, com construção de comitês de solidariedade e de luta nos bairros, para arrecadar e distribuir alimentos, combinando com a necessária discussão sobre saídas dessa crise.

Precisamos preparar para enfrentar o bolsonarismo com luta de massas, mas também construindo uma alternativa política. O governo Bolsonaro é o principal obstáculo no nosso caminho e o principal foco de nossa luta, mas a tarefa é maior ainda. Para garantir emprego e renda, auxílio emergencial e cestas básicas para todo mundo que precisa, investimentos na saúde imediatos e vacinação em massa, precisamos questionar o modelo de sociedade que vivemos, que coloca o lucro acimada vida. Bolsonaro é um sintoma de uma sociedade doente. Por isso a construção de uma alternativa socialista é fundamental.

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