Bolsonaro ameaça acabar com serviços públicos de saúde mental: saúde não se vende, loucura não se prende!
No início do mês de dezembro fomos surpreendidos com aquele que entendemos ser um mais forte ataque às conquistas da Reforma Psiquiátrica Brasileira e, portanto, aos serviços públicos e gratuitos que cuidam de milhares de pessoas com sofrimento psíquico em seu território. O governo Bolsonaro e a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), apresentaram uma minuta que determina o fim da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), retorno dos eletrochoques, a suspensão do financiamento dos SRTs (Serviço de Residência Terapêutica), das Unidades de Acolhimento e do Consultório na Rua, além de outros ataques.
O documento é denominado “Diretrizes para um modelo de atenção integral em saúde mental no Brasil”, e será submetido dia 16/12/2020 à CIT (Comissão Intergestores Tripartite), que é constituída (em nível federal) paritariamente por representantes do Ministério da Saúde, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
Mais que divergências sobre o modelo de política pública: está em jogo a disputa por um modelo de sociedade
Essa ação do governo reforça a visão predominante que pratica a opressão e exclusão de todos que são “diferentes” do padrão hétero, branco, homem cis e/ou que não se encaixam na “racionalidade burguesa”. Mas não é uma visão pautada “apenas” pelo conservadorismo e preconceito, está intimamente alinhada coma intensificação dos lucros da “indústria da loucura”.
Este documento atroz foi redigido pela ABP, a qual defende claramente um modelo biomédico centrado, que vê o sujeito como uma anomalia, o “doente mental” – como repete muitas vezes no documento – e não como uma pessoa que adoeceu em função de determinadas condições socioculturais. Desta forma, retrocede nos avanços conquistados pelos usuários, familiares e trabalhadores da rede de saúde mental, retornando com um modelo de assistência que é baseado no isolamento, arrancando o sujeito de seu meio social e atribuindo ao médico o poder da cura.
O movimento de luta antimanicomial e reforma psiquiátrica orientaram em grande medida as políticas atuais de saúde mental. Apesar de problemas e limites, ela é muito progressiva e mundialmente reconhecida. Estes movimentos pautam-se no entendimento de que o processo de saúde e doença se dá em um determinado local/território e momento histórico, em funções das condições de vida presentes, portanto, a comunidade deve ter recursos no local/território para cuidar das pessoas que ali adoecem. Os serviços criados para isso são os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), que consistem em serviços comunitários de portas abertas, ou seja, que acolhem a população sem precisar de marcação de consulta. Tais centros compõem a RAPS, que é uma rede de serviços e dispositivos no território, que incluem trabalho-renda, lazer-cultura, os quais articulados auxiliam o sujeito a construir condições de se reorganizar e desenvolver formas de lidar com seu sofrimento e de bem-estar na vida.
O documento mencionado defende que os CAPS não sejam mais porta de entrada da rede, e, portando, os usuários precisarão de encaminhamento – horário e dia marcado – para serem atendidos, ou seja, um modelo ambulatorial, que trata sintomas e não lida com sujeitos. Com a aprovação desse documento, a RAPS deixa de existir. Da mesma forma as Residências Terapêuticas, serviços de moradia para pessoas as quais o Estado trancou em manicômio por décadas, as privando de suas famílias e amigos, violando todas as garantias de diretos. As UAs, Unidades de Acolhimento, moradias transitórias para pessoas em sofrimento psíquico devido ao uso abusivo de substâncias psicoativas também perderão seu financiamento. Assim como as equipes de “Consultório na Rua”, que levam o SUS até às pessoas que estão em situação de rua. Ou seja, acaba com os princípios do SUS de equidade, integralidade e regionalidade.
Além de reafirmar uma sociedade conservadora e excludente, modelo que a crescente bancada evangélica vem construindo, a indústria da loucura terá ganhos significativos em seus lucros. Esta minuta acaba com a Portaria 2.644 de 2009, que desestimula internações de longa permanência e hospitais de longo porte. A portaria de 2009 determina que o repasse de verba é maior para hospitais com um número de leitos e tempo de internação menores. A proposta do MS e da ABP irá inverter essa lógica, remunerando com um aumento de até 4 vezes os hospitais de grande porte. Se esse ataque passar retornaremos à velha forma asilar e manicomial, com internações de décadas. Em 2011, a 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos realizada pelo CFP (Conselho Federal de Psicologia), apontou as condições subumanas nos hospitais psiquiátricos, que foram reafirmadas agora, em 2020, com a Inspeção Nacional, realizada pelo MPF e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Há anos a política de saúde mental vem sendo atacada
Mas esses ataques não são de agora. Nos últimos anos vimos sucessivos retrocessos e desmontes do SUS e da Reforma psiquiátrica que vêm a conta gotas, para evitar maiores repercussões e explosões de luta. Por exemplo, vimos a intensificação de internações compulsórias de usuários de álcool e outras drogas, que segue a lógica de Higienização social e exclusão. Tal política foi e é impulsionada pela bancada evangélica na câmara, que também defende as Comunidades Terapêuticas (CT). Essas são Instituições privadas, “sem fins lucrativos”, que são financiadas em grande parte pelo poder público. A maioria possui caráter religioso, não apresentam equipe multidisciplinar e visam a “cura” através de orações. Trabalham com a lógica da abstinência, ao invés da política de redução de danos, adotada no SUS, a qual visa a resignificação do uso da substância psicoativa. As CTs são os novos manicômios, mantém as pessoas em isolamento, rompendo os vínculos sociais e promovendo grandes violações de direitos humanos. Atualmente recebem uma verba maior que os CAPS III (que funcionam 24h), são destinados 120 milhões por ano para as CTs. Vemos como mais uma vez a bancada evangélica usa da fé para garantir seus lucros.
Tivemos no final de 2015 a nomeação de Valencius Wurch Duarte Filho, para a Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, que evidência de forma escancarada a ofensiva da indústria da loucura. Na década de 1990 o psiquiatra Valencius foi coordenador da Casa de Saúde Doutor Eira, considerado o maior manicômio privado da América Latina, fechado em 2012 por graves violações aos Direitos Humanos. Sua nomeação gerou uma grande mobilização nacional, que desencadeou em atos por todo país, incluindo ocupações aos prédios do MS nos estados, uma grande manifestação em Brasília e a ocupação da sala de Valencius por mais de 4 meses, pelos usuários, familiares e trabalhadores da saúde mental. Após meses de luta o movimento foi vitorioso e Valencius caiu.
Só a luta pode derrubar esse ataque
Está provado que só a união dos usuários, familiares e trabalhadores, com muita luta, irá garantir que nossos direitos não sejam roubados. Foi com muita luta que há décadas atrás foram conquistados os grandes avanços que hoje temos nas políticas de saúde mental. Apesar de problemas de precarização, privatização, subfinanciamento e boicote, os princípios e estrutura geral da política pública nessa área é uma enorme conquista do povo, possibilitando, ainda assim, um atendimento efetivamente humano, ao contrário do modelo manicomial.
Na luta contra este ataque, profissionais e movimentos ligados à área estão chamando um ato virtual dia 10/12, durante a Abrasme (Associação Brasileira de Saúde Mental), às 20h e dia 16/12, dia em que ocorrerá a CIT, das 10h às 20h. A máfia composta pelos nossos governantes, que são financiados pela indústria da loucura, a ABP, indústria farmacêutica, donos de convênios privados, etc, podem dar alguns anéis para não perderem os dedos, mas nós estamos lá pra lembrar que saúde não é mercadoria: Saúde não se vende, loucura não se prende! Em defesa do SUS e do cuidado em liberdade!