1º turno das eleições municipais: Uma nova esquerda cresce para enfrentar Bolsonaro e a direita tradicional
Ao contrário do que diz a maior parte dos comentadores e analistas da imprensa burguesa, o primeiro turno das eleições municipais brasileiras não representa um retorno à “normalidade” depois do “acidente” que atende pelo nome de Jair Bolsonaro.
Eles apostam que o eleitorado caiu em si, passou a rejeitar o voto de protesto ou nos extremos, seja ele de esquerda ou de direita, e percebeu que somente os neoliberais ponderados, experientes e supostamente racionais podem oferecer uma saída para a crise brasileira.
Querem nos convencer que os partidos tradicionais da burguesia, a velha direita (que eles, com sua “novilíngua” orwelliana, preferem chamar de “centro”), recuperaram-se de sua crise e estão agora mais bem localizados para reassumir sua posição hegemônica, em particular diante das eleições de 2022.
Confundem sua análise com seu desejo mais profundo. Querem aqui a reprodução de um cenário estadunidense. Sonham com a emergência de um político burguês neoliberal “sensato” e mais orgânico de sua classe, como Biden, que ocupe o lugar do “populismo” (sic) imprevisível e perigoso, seja ele de direita ou de esquerda.
Esse projeto de uma ala significativa da classe dominante brasileira não pode ser subestimado. Mas, o cenário que emerge das eleições municipais é muito mais complexo e aponta para perspectivas muito mais polarizadas, instáveis e críticas do que pretendem os analistas e propagandistas da burguesia.
A retórica de que o pêndulo político perdeu força e se estabilizou no centro serve a um propósito. No curto prazo, visa influir já no segundo turno em cidades como São Paulo, onde Bruno Covas (PSDB) assume exatamente essa mesma retórica buscando estigmatizar a esquerda representada por Guilherme Boulos do PSOL.
No médio prazo, buscam diminuir o impacto do crescimento de uma nova esquerda, encabeçada pelo PSOL, que emerge como força política importante no país. Essa sim é uma das marcas dessa eleição independentemente do que venha a acontecer no segundo turno.
Tentam conter e relativizar o avanço de uma nova esquerda para diminuir sua influência não apenas nas eleições gerais de 2022, mas também (e até mais importante) nos processos de lutas sociais que tendem a crescer no próximo período em meio à histórica e gravíssima crise que vivemos.
Nosso papel é fazer exatamente o oposto – fortalecer uma nova esquerda socialista para as lutas sociais e a monumental luta política que marcará o próximo período.
Refluxo da onda bolsonarista, mas o perigo continua!
É verdade que tivemos nessas eleições municipais um refluxo da forte onda bolsonarista observada em 2018. Isso se deu em primeiro lugar pela rejeição a Bolsonaro em um contexto de crise econômica e social e os terríveis efeitos da pandemia.
Mas, também contaram nesse processo a divisão da base bolsonarista em várias candidaturas e a ausência de uma coordenação nacional coerente dessa ala da extrema-direita.
Bolsonaro antecipou uma possível derrota tentando desvincular-se das eleições municipais depois do fiasco na tentativa de legalizar um novo partido de extrema-direita, a Aliança pelo Brasil.
Porém, o bolsonarismo estava presente nas eleições e, de forma geral, saiu mais derrotado do que vitorioso. Quando o próprio presidente da república passou a indicar candidatos que apoiava, o resultado foi flagrantemente negativo.
Dos 59 candidatos que Bolsonaro apoiou explicitamente, só conseguiu eleger 13. São dois prefeitos de cidades do interior e 11 vereadores. O bolsonarismo ainda disputa o segundo turno em Fortaleza, com o Capitão Wagner (PROS), que está atrás nas pesquisas diante de seu adversário, José Sarto do PDT.
Já no Rio de Janeiro, onde Marcelo Crivella (REP) conseguiu chegar ao segundo turno, seus índices de rejeição são astronômicos e suas chances de vitória são mínimas, apesar de seu péssimo adversário (Eduardo Paes do DEM).
A maior derrota de Bolsonaro, porém, foi em São Paulo onde Celso Russomanno despencou da primeira posição nas pesquisas para terminar como quarto colocado no primeiro turno.
Outro exemplo do refluxo da onda de extrema-direita de 2018 é o fato de que o PSL, que naquele ano conquistou a segunda maior bancada na câmara federal, voltou a ser um partido nanico em 2020, apesar dos milhões do fundo eleitoral para seus candidatos.
Nos últimos meses, diante da fragmentação de sua base política, Bolsonaro engoliu a seco sua retórica contra a “velha política” e optou pelos acordos e negociatas com o corrupto “Centrão” no Congresso Nacional.
Alguns dos partidos que integram o “Centrão” aumentaram as prefeituras conquistadas. Esse é o caso do PP, por exemplo, que foi o segundo colocado em número de prefeituras nessa eleição, saltando de 498 para 682.
Isso, porém, não pode ser considerado como uma dinâmica de crescimento da direita em geral ou do bolsonarismo em particular.
Partidos como o PP e, principalmente, o MDB – que ficou em primeiro lugar em número de prefeituras conquistadas (777), são velhas máquinas eleitorais que existem há décadas, herdeiras do bipartidarismo da ditadura e estão presentes na maior parte dos 5567 municípios brasileiros. Eles dispõem de tradicionais esquemas clientelistas e currais eleitorais. Mesmo assim, o próprio MDB viu seu número de prefeituras cair 25% em relação às eleições passadas.
No caso do DEM, que também é uma dessa máquinas eleitorais burguesas tradicionais com forte enraizamento local, houve um crescimento substancial já antes das eleições com a migração de prefeitos vindos de outros partidos.
Mas, o crescimento de cerca de 70% no número de prefeituras obtidas pelo DEM (chegando a 459), não o coloca sequer perto das mais de mil prefeituras que chegou a ter no passado. O crescimento atual se dá depois de anos de um semi-colapso desse partido durante o período de auge do Lulismo.
Poderíamos incluir nessa lista o PSD e outra legendas menores que tiveram crescimento nessas eleições. Com esses resultados, esses partidos buscarão valorizar seu passe diante das negociações para 2022, flertando tanto com o Bolsonarismo como com a direita tradicional em torno do PSDB.
O crescimento desses setores que hoje servem (com contradições) ao governo Bolsonaro não representa um fortalecimento do governo federal. Pode significar o oposto, ou seja, Bolsonaro terá que pagar mais caro para manter o apoio desses setores no Congresso.
Mas, também seria um erro imaginar que Bolsonaro seguirá sempre adotando uma linha relativamente pragmática em relação ao Congresso e demais instituições do regime político.
A crise econômica e social não irá arrefecer no próximo período e novos e dramáticos desdobramentos da pandemia se darão. O contexto de polarização social e política tende a ressurgir com força. O bolsonarismo precisará radicalizar suas posições como única forma de enfrentar esse cenário.
Já vimos nessas eleições municipais um sinal do que pode acontecer até 2022. Em uma operação coordenada no dia das eleições, setores de extrema-direita promoveram um ataque hacker aos servidores do TSE ao mesmo tempo em que uma campanha de agitação era feita nas redes sociais denunciado fraudes nas urnas eletrônicas.
Bolsonaro é parte ativa da campanha que visa a desacreditar o processo eleitoral e seu objetivo é evidente. Assim como tentou seu parceiro ultradireitista estadunidense, ele não aceitará outro resultado nas eleições de 2022 que não seja sua própria vitória.
Seria um erro baixarmos a guarda e acharmos que o bolsonarismo não representa mais uma ameaça aos nossos direitos democráticos.
É importante lembrar também que essas eleições foram marcadas por um aumento na violência política que tende a crescer ainda mais no próximo período. Ocorreram pelo menos 85 assassinatos e outras 119 agressões contra candidatos em 2020.
A grande questão é que a direita tradicional não representa nem de longe uma alternativa à ultradireita. Não são capazes de enfrentar o bolsonarismo até as últimas consequências, nem de garantir direitos democráticos e muito menos direitos sociais.
Somente uma alternativa de esquerda antissistêmica poder fazer frente à ameaça bolsonarista que segue sendo um perigo real.
PSDB mal das pernas
Se o bolsonarismo refluiu e se dispersou nessas eleições, é importante destacar que o principal partido orgânico da burguesia brasileira, o PSDB, também não se saiu bem. Isso vai de encontro à retórica dominante na mídia que vê nos resultados eleitorais um retorno ao centro do espectro político.
Em nível nacional, o PSDB perdeu mais de um terço de suas prefeituras (caindo de 804 a 519), com destaque especial a estados onde antes tinha uma base importante, como Minas Gerais, Paraná e Goiás.
A rejeição de João Doria, principal nome do partido para 2022, na capital paulista é equivalente à de Bolsonaro, ultrapassando os 50%. O candidato do PSDB, Bruno Covas, teve que esconder seu padrinho político durante toda a campanha de primeiro turno.
Uma derrota de Bruno Covas em São Paulo teria um efeito devastador sobre o PSDB e fragilizaria muito a alternativa burguesa dita “democrática” ao bolsonarismo. Mas, independente do resultado do segundo turno em São Paulo, o PSDB de Covas e Doria já saiu profundamente desgastado em sua base mais importante.
É decisivo destacar que isso se deu em um embate com uma nova esquerda encabeçada pelo PSOL e não com a esquerda ou centro-esquerda tradicional representada pelo PT.
Esse cenário reflete a incapacidade da velha direita tradicional em fazer frente à extrema-direita pois adotam as mesmas política neoliberais e seu compromisso democrático não passa, na maioria das vezes, de puro jogo de cena. Mostra também a necessidade de uma nova esquerda, separada dos erros e traições históricas do PT, para cumprir esse papel.
O PT não se recuperou de sua crise
Nessas eleições, o PT não se recuperou do colapso vivido nas eleições municipais anteriores (2016), o auge de sua crise. Apesar de ser um dos partidos com forte capilaridade em todo o país, o PT caiu de 256 prefeituras ganhas em 2016 para 178 agora e disputa em duas capitais de estado (Recife e Vitória) no segundo turno e em mais 13 cidades.
Nas eleições gerais de 2018, o PT foi o principal protagonista do embate político contra Bolsonaro, através da candidatura de Fernando Haddad no segundo turno, e elegeu a maior bancada de deputados federais. Apesar disso, mesmo levando-se em conta que as eleições municipais tem suas peculiaridades em relação às eleições para cargos nacionais, os resultados atuais mostram que essa retomada do partido não continuou.
Mesmo com Lula fora da prisão e o crescimento da rejeição a Bolsonaro no auge da pandemia, o PT foi tímido e ambíguo na oposição ao governo federal.
O partido segue tendo responsabilidades em governos estaduais em cujas capitais acabou obtendo resultados ruins, como no caso de Natal (RN), Teresina (PI) e Salvador (BA). No caso de Fortaleza (CE), a candidatura de José Sarto do PDT, apoiada pelo governador do PT, disputa com um candidato bolsonarista (Capitão Wagner do PROS) no segundo turno.
Uma vitória do PT nas duas capitais em que disputa o segundo turno, particularmente em Recife, pode ter um peso em seu resultado geral. Mas mesmo nesse caso, a candidatura de Marília Arraes em Recife reflete a crise interna do PT. Boa parte da direção nacional e estadual do partido preferia uma coligação com o adversário de Marília no segundo turno (João Campos do PSB, alinhado com o governo de Pernambuco do qual o PT também faz parte) ao invés da coligação com o PSOL.
Avanço do PSOL é a marca dessa eleição
Os resultados do PSOL nessas eleições municipais não podem ser subestimados. A simples ida de Guilherme Boulos ao segundo turno em São Paulo, superando o PT em seu berço e derrotando campanhas milionárias na principal metrópole do país, por si só já representa uma enorme conquista.
Nem é preciso mencionar que uma vitória de Boulos no segundo turno (algo que se mostra possível) representaria um deslocamento das placas tectônicas no cenário político nacional e no campo da esquerda em particular.
O PSOL também disputa o segundo turno com grandes chances de vitória na principal capital da região norte do país, Belém (PA). Vencer em Belém também teria um impacto significativo para o partido e o conjunto da esquerda.
Além disso, o PSOL cresceu no número de vereadores, saltando de 53 para 88, em particular nas grandes cidades. No Rio de Janeiro, o PSOL elegeu sete vereadores e triplicou a bancada em São Paulo (crescendo de 2 para 6 vereadores).
Cerca de 40% dos eleitos são mulheres, totalizando 34 vereadoras. Foram eleitos também 42 vereadores negros e negras, representando cerca de 48% do total. O PSOL elegeu ainda quatro mulheres trans para Câmaras Municipais. As duas primeiras vereadoras trans em capitais serão do PSOL. Tanto Linda Brasil (Aracaju) como Erica Hilton (São Paulo) tiveram votações muito expressivas ficando respectivamente como primeira e sexta mais votadas em suas cidades.
É marcante observar como nessas eleições, o processo de reorganização da esquerda no país tem passado pela luta contra as opressões. O PSOL conseguiu dar expressão política a essas lutas, em particular das mulheres, negras e negros e LGBTs. O crescimento do partido reflete um processo de resistência cotidiana de trabalhadores, jovens e setores oprimidos, principalmente diante da crise, dos ataques em geral e do governo Bolsonaro em particular.
O crescimento do PSOL também mostra que se acelerou um processo de reorganização da esquerda no país.
Observamos nas eleições uma rejeição tanto a Bolsonaro como ao PSDB em setores significativos da população, mas isso não se reverteu em uma recuperação do PT, que segue desgastado. Daí vem o espaço para o PSOL.
Evidentemente o PT continua sendo um partido expressivo, com grande presença nacional, a maior bancada de deputados federais e maior fundo partidário e eleitoral do país. Já governou o país por 13 anos e tem à sua disposição a máquina governamental em muitos municípios e alguns estados.
Só isso já significa que ainda tem muita gordura para queimar. Além disso, continua mantendo seus vínculos com a burocracia que controla a maioria dos sindicatos do país e tem, portanto, um peso fundamental no movimento dos trabalhadores.
No entanto, há uma mudança qualitativa na sua posição hegemônica no campo da esquerda. Pela primeira vez, o PSOL aparece como alternativa viável ao PT e, importante que se ressalte, uma alterativa que se coloca à esquerda do PT.
A crise do PT vem desde as jornadas de lutas de junho de 2013, quando o partido então no governo se chocou com as demandas por direitos levantadas pelas mobilizações multitudinárias nas ruas.
Posteriormente, quando uma oposição de direita começou a crescer, o partido foi incapaz de enfrentá-la e, na prática, assumiu sua agenda desgastando-se ainda mais. Isso ficou evidente posteriormente com as políticas neoliberais do segundo mandato de Dilma. Esse foi o contexto que levou ao golpe institucional de 2016 e a destituição de Dilma da presidência.
Diante da crise do PT, setores burgueses de centro-esquerda, como Ciro Gomes do PDT, o PSB e outros, buscaram disputar o espaço eleitoral desse partido. Em geral esses setores não avançaram muito nesse objetivo, apesar do crescimento da figura de Ciro Gomes.
Nas eleições municipais, o PSB caiu de 409 prefeitos eleitos para 251. Se perder a prefeitura de Recife, a derrota será ainda maior. No caso do PDT, também houve queda. Se perderem a prefeitura de Fortaleza, o resultado se mostrará ainda pior.
Ao invés de uma alternativa à direita do PT, começa a crescer uma opção à sua esquerda, encabeçada pelo PSOL. Isso coloca enormes desafios para o partido no próximo período.
As tarefas do PSOL e da esquerda
Já estamos nas ruas travando as batalhas heroicas do segundo turno em São Paulo e Belém, conquistando votos para o PSOL e aproximando ativistas para uma luta mais organizada e permanente. Essa é a prioridade absoluta nesse momento.
O voto crítico em alternativas de esquerda para além do PSOL, sem comprometimento político com seus programas e futuros governos, se justifica em situações como a de Porto Alegre (RS), com Manuela D’Ávila (PCdoB) e Vitória (ES), com João Coser (PT), no embate com a direita ou extrema-direita. Em Recife já demos nosso voto crítico a Marília Arraes (PT) com quem o PSOL se coligou, embora tivéssemos defendido candidatura própria do partido.
Nos casos em que os dois lados da mesma moeda direitista, autoritária e neoliberal estão em disputa no segundo turno, não temos problemas em anunciar nossa opção consciente pelo voto nulo. Esse é o caso do Rio de Janeiro, Campinas (SP), Goiânia e outros municípios.
Compreendemos a intenção de amplos setores que, tapando o nariz, votarão em Eduardo Paes como um “mal menor” contra Crivella, mas não concordamos com essa opção. É fundamental que a esquerda socialista do Rio, em particular o PSOL, desmascare o mal que Eduardo Paes representa como forma de melhor enfrentá-lo posteriormente.
Independentemente dos resultados no segundo turno, o PSOL terá uma base mais forte e mobilizada para enfrentar o próximo período que será decisivo para a luta de classes e a história do Brasil. O terceiro turno das lutas será uma realidade e o partido precisa preparar-se para isso.
As eleições de 2022 não se darão em uma situação de normalidade e estabilidade. O cenário do confronto se conformará durante o decisivo ano de 2021 e temos que usar os mandatos obtidos agora e a o apoio conquistado para organizar a luta contra Bolsonaro, seus ataques que inevitavelmente virão e em defesa de nossos direitos e por uma alternativa de nossa classe.
Para seguir crescendo e se fortalecendo como alternativa de esquerda, é fundamental que o PSOL mantenha seu perfil próprio, independente dos erros e traições da esquerda e centro-esquerda tradicional, e reforce suas raízes nos movimentos sociais, a luta dos trabalhadores e contra as opressões.
É fundamental também que o PSOL construa, em aliança com outros setores da esquerda socialista e dos movimentos sociais combativos, uma alternativa programática de caráter anticapitalista e socialista como saída para a crise atual e como base para nossa intervenção nas lutas e nas eleições.
Nós, da LSR, fazemos um chamado a todas e todos que se aproximaram do PSOL nesse período.
As vitoriosas campanhas a vereador lançadas pela LSR em Natal (Victor Varela), São Paulo (Maria Clara) e outros municípios cumpriram um papel importante no processo de lutas e mobilização de trabalhadores e setores oprimidos e defenderam um programa socialista vinculado à disputa municipal. Essa base será utilizada para continuarmos a luta com mais força no próximo período.
Além de votar e conquistar votos com energia, como estamos fazendo, fazemos um chamado a que todas e todos venham organizar-se no PSOL e ajudem a construir no seu interior uma esquerda socialista e revolucionária para intervir nas lutas, nas eleições e no decisivo processo de reorganização da esquerda. Junte-se a nós!