Bolívia – resistência de massas contra o governo golpista

Por quase duas semanas, o movimento dos trabalhadores, camponeses e indígenas bolivianos mobilizou-se através de marchas, manifestações e mais de cem pontos de bloqueio de rodovias por todo o país contra o projeto antidemocrático, antipopular e pró-imperialista do governo ilegítimo de Jeanine Áñez.

A COB (Central Obrera Boliviana) e o Pacto de Unidade, que reúne vários movimentos indígenas e camponeses, convocaram a jornada de lutas a partir de 3 de agosto. Um amplo setor de manifestantes autoconvocados também participou do movimento. O estopim que deflagrou a luta foi o terceiro adiamento consecutivo das eleições presidenciais originalmente convocadas para maio desse ano. 

A decisão do Tribunal Supremo Eleitoral de cancelar a última data definida para o pleito (6 de setembro) e indicar uma nova para 18 de outubro fortaleceu as expectativas de que o governo oriundo do golpe de Estado de novembro de 2019 buscava manter-se no poder indefinidamente e não estava disposto a garantir eleições livres no país.

No decorrer das mobilizações, além da reivindicação pela manutenção da data previamente estabelecida para as eleições, ganhou força a defesa da queda imediata do governo de Áñez. 

Além da repressão estatal e da sórdida campanha racista promovida contra os movimentos de trabalhadores e camponeses indígenas, também foi marcante a ação truculenta de grupos fascistas atacando os bloqueios nas estradas e ameaçando ativistas e lideranças do movimento. A própria sede da COB e da Federação de Mulheres Camponesas ‘Bartolina Sisa’ em La Paz sofreu um ataque a bomba na madrugada do dia 14 de agosto. 

Muitos desses grupos de tendências fascistas, como a ‘Unión Juvenil Cruceñista’ (de Santa Cruz) ou a ‘Resistencia Juvenil Cochala’ (de Cochabamba), são os mesmos que jogaram um papel relevante, com a conivência da polícia e exército, no clima de terror que marcou o golpe de 2019.

Depois de mais de dez dias de bloqueios de estradas, mobilizações e confrontos, um acordo envolvendo os parlamentares do MAS (‘Movimento Al Socialismo’, partido do ex-presidente Evo Morales) e as forças de direita levou a que a Assembleia Legislativa Plurinacional aprovasse, em 13 de agosto, uma lei garantindo a data de 18 de outubro como definitiva, não podendo mais ser modificada por nenhuma outra autoridade.

Diante desse cenário, em um primeiro momento a direção da COB e do Pacto de Unidade hesitaram em aceitar o acordo. Mas, por fim, acabaram decidindo pela suspensão das mobilizações mantendo-se em vigília até a data definida para as eleições. 

Setores do movimento em algumas regiões não concordaram com essa postura conciliatória das direções mais vinculadas ao MAS e Evo Morales e tentaram manter a mobilização alguns dias mais. Mas, de forma geral, o movimento acabou por refluir.

A posição conciliatória de aceitar a data proposta pelo TSE foi defendida desde o início por Evo Morales, que também rejeitou enfaticamente a demanda pela queda imediata de Jeanine Áñez. 

Racismo, repressão e pandemia

Apesar dessa postura de Evo Morales, o governo e as forças de direita, buscando desgastar o MAS, acusaram o ex-presidente de estar por trás dos protestos e de ser responsável pelo “caos social” no contexto da pandemia de Covid-19. Fizeram isso para demonizar o MAS com fins eleitorais e tenta recuperar parte do apoio perdido por Áñez entre setores de classe média.

Uma cínica campanha foi feita denunciando os bloqueios de estradas e o MAS como responsáveis pela falta de oxigênios hospitalares e outros materiais médicos em várias regiões do país e pela morte de pelo menos 30 pessoas com Covid-19. Em muitas ocasiões, porém, o governo escolheu utilizar exatamente as estradas bloqueadas para transportar oxigênio hospitalar de Santa Cruz para o resto do país quando tinha outras opções. 

A campanha racista, que caracterizava os indígenas em luta como “bestas inumanas” que estavam promovendo uma “guerra biológica” ao espalhar o vírus pelo país, serviu de base para uma feroz onda repressiva. O ministro de Governo Arturo Murillo chegou a afirmar em entrevista à CNN que “seria politicamente correto meter bala” nos manifestantes. 

Murillo tem antecedentes de repressão covarde e assassina. Tem as mãos sujas de sangue operário, indígena e popular na repressão à resistência contra o golpe de 2019, em particular nos massacres de Sacaba, na região de Cochabamba, e Senkata, em El Alto. Em ambas regiões pelo menos 33 manifestantes foram assassinados por forças do Estado. 

O que Áñez e seus cúmplices não reconhecem é que a precariedade do sistema de saúde boliviano é resultado da absoluta incapacidade desse governo em enfrentar a pandemia. É um governo que compra respiradores hospitalares que não funcionam a preços quatro vezes maiores que os de mercado ao mesmo tempo em que gasta ainda mais comprando de forma irregular cartuchos de gás lacrimogênio e outros equipamentos bélicos para serem usados contra seu próprio povo.

A grande maioria dos 36 povos indígenas bolivianos está completamente abandonada pelo governo e totalmente vulneráveis diante da pandemia e da crise social e econômica.

Jeanine Áñez se recusa a promulgar um conjunto de leis já aprovadas pela Assembleia Legislativa para enfrentar a emergência sanitária e social. Entre elas, está uma lei que garante atenção obrigatória e gratuita a pacientes com Convid-19 em hospitais privados. O objetivo do governo é garantir os enormes lucros da saúde privada com a pandemia. 

Esperando pela promulgação há também uma lei que possibilita a redução dos aluguéis em meio à quarentena e outra que impede o cancelamento de contratos por não pagamento de dívidas até o final do ano. A recusa do governo em promulgar até mesmo essas leis tímidas mostra a quem serve Jeanine Áñez.

Os trabalhadores, camponeses e povos indígenas bolivianos sofrem na carne os efeitos da pandemia e da crise econômica e social. São eles que morrem por falta de condições e medidas de prevenção e assistência médica. O número de casos de Covid-19 já ultrapassou a marca de cem mil, com mais de 4,3 mil mortos oficialmente, em um país de 11,6 milhões de habitantes. 

Mas, sabemos que esses números estão completamente subestimados. O número de corpos encontrados nas ruas e nas casas ultrapassou a marca de 400 em poucos dias do mês de julho. Segundo as próprias autoridades, mais de 85% desses casos estão relacionados à Covid-19.

Ao mesmo tempo, a fome e a piora acentuada das condições de vida em meio à crise sanitária e econômica obriga milhões de pessoas a buscar uma saída para sobreviver. Nove em cada dez bolivianos viram seus ingressos serem reduzidos durante a pandemia, sendo que quatro entre dez simplesmente deixaram de ter qualquer ingresso. 

Apesar da gravidade da situação, Jeanine Áñez foi levada ao poder por um golpe de Estado exclusivamente para garantir os interesses dos grandes capitalistas na Bolívia, abrir caminho para a exploração dos recursos naturais pelas empresas multinacionais e assegurar a manutenção do poder nas mãos das oligarquias reacionárias. 

Por isso, lutar contra esse governo assassino é parte da luta pela sobrevivência para a maioria do povo boliviano.

Golpe de estado e escalada autoritária

O golpe de novembro de 2019 foi promovido pelas elites reacionárias bolivianas e o imperialismo estadunidense. Ele colocou no poder Jeanine Áñez junto com um séquito de representantes do que há de mais podre, racista, autoritário e antipopular na sociedade boliviana.

O sentido mais profundo do que aconteceu na Bolívia em 2019 pode ser apreendido na explícita manifestação de Elon Musk, magnata dono da empresa Tesla, quando indagado no twitter se o interesse sobre o lítio boliviano não estava por trás do golpe. Ele simplesmente respondeu: “Vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso”.

O golpe foi planejado a partir da embaixada dos EUA em La Paz, com a colaboração do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro no Brasil e da OEA (Organização dos Estados Americanos) e foi executado a partir de ações de rua e ataques violentos promovidos por grupos paramilitares de extrema-direita em meio a um motim das polícias e a colaboração do exército.

Os golpistas exigiram a renúncia de Evo Morales e o não reconhecimento do resultado eleitoral de 20 de outubro de 2019 que daria ao presidente boliviano mais uma vitória já no primeiro turno de votação por uma pequena margem de votos. 

A alegação de fraude eleitoral, usada pelos golpistas, contou com a conivência da OEA que declarou identificar irregularidades na apuração dos votos. Logo em seguida, o Departamento de Estado dos EUA denunciou o governo de Evo Morales e deu carta branca para o golpe. 

Em junho desse ano, o ‘New York Times’ relatou que uma investigação independente baseada em dados obtidos pelo próprio jornal descartava os argumentos do relatório da OEA que serviu de justificativa política para o golpe.

A ação golpista contou com alguma base social entre os setores insatisfeitos principalmente das classes médias bolivianas, mas também alguns setores populares, que, como em outros países latino-americanos, foram tensionados pela propaganda da direita explorando os limites, contradições, erros e até traições dos governos ditos “progressistas” na região.

Depois de 13 anos no poder, em que pesem avanços sociais e simbólicos importantes em uma sociedade marcada historicamente pela profunda desigualdade social e racismo, Evo Morales nunca rompeu com a dinâmica do capitalismo periférico e dependente boliviano. 

O modelo agroextrativista exportador, tão danoso ao meio ambiente e aos povos originários e que reforça as relações de dependência, se manteve ainda que com uma melhor distribuição da renda obtida.

A linha política de Evo Morales sempre foi a de priorizar a conciliação com as elites dominantes ao invés de buscar impor a elas uma derrota baseada na organização e luta das massas trabalhadoras, populares, camponesas e indígenas.

Aos poucos esse processo descambou para um conflito aberto entre o governo de Morales e setores dos movimentos sociais, incluindo movimentos indígenas, cujas demandas implicavam em uma postura muito mais firme do governo contra os latifundiários, multinacionais e o grande capital em geral. 

Nesse contexto, a própria base social de Evo Morales viu-se desorganizada, confusa e sem alternativa no momento do golpe de Estado. Nem Evo Morales, nem a direção do MAS tinham uma política clara de resistência e acabaram aceitando a situação e clamando por negociações e um acordo com a direita golpista.

Isso, porém, não impediu que nas semanas seguintes ao golpe uma ampla mobilização popular acontecesse contra o novo governo “de facto”, ilegal e ilegítimo de Áñez. 

Depois de uma duríssima repressão, como no caso dos massacres de Sacaba e Senkata, e a promessa de realização de novas eleições em maio, as direções dos movimentos sociais acabaram fazendo um acordo com o governo de Áñez. Posteriormente, a expansão da pandemia deu um pretexto para que o governo avançasse em sua escalada autoritária e adiasse as eleições.

Estratégia apenas eleitoral não é suficiente

A postura de Evo Morales e da direção do MAS se resume a apostar tudo numa vitória eleitoral para voltar ao poder, mesmo em um contexto de arbítrio, repressão e clara manipulação do jogo político por parte da direita, das oligarquias e do imperialismo.

Não se pode imaginar que as oligarquias e o imperialismo tenham promovido um golpe de Estado em 2019 para depois simplesmente aceitarem devolver o poder pacificamente ao mesmo partido que derrubaram.

Um erro semelhante foi cometido por Lula e a direção do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil que, historicamente, é um país com mais estabilidade institucional do que a Bolívia. Depois do golpe parlamentar de 2016, que cassou o mandato da presidenta Dilma Rousseff do PT, a estratégia central do partido foi apostar todas as fichas na vitória de Lula nas eleições de 2018.

Apesar de toda essa confiança na solidez das “instituições democráticas” brasileiras, Lula foi perseguido politicamente, impedido de candidatar-se e acabou preso em um processo judicial repleto de irregularidades encabeçado pelo juiz Sérgio Moro. Isso abriu caminho para a ascensão à presidência do ultradireitista Jair Bolsonaro que, por sua vez, nomeou Moro como seu ministro da justiça, cumprindo um acordo feito previamente.

A preocupação principal do MAS é evitar dar pretextos para uma reação da direita, acreditando que assim serão aceitos de volta à presidência. Querem evitar que a luta direta dos trabalhadores, camponeses e indígenas possa ser utilizada pela direita como propaganda contra o candidato do MAS ou como justificativa para um golpe dentro do golpe.

Apesar da pouca confiabilidade das pesquisas, há indicações de que o candidato do MAS, Luis Arce Catacora, está à frente de seus opositores de direita e teria grandes chances em um processo eleitoral limpo. Luis Arce é um ex-ministro da economia do governo de Evo Morales e adotou um discurso moderado baseado nos avanços e na estabilidade alcançada pelo governo anterior.

Contra ele, a direita se mostra dividida. Até agora, seu principal adversário é o ex-presidente Carlos Mesa, o mesmo candidato que disputou com Evo Morales as eleições de outubro de 2019. 

Mesa, como vice-presidente do famigerado neoliberal Gonzalo Sánches de Lozada, assumiu a presidência logo que o presidente foi derrubado por um poderoso movimento de massas em meio a uma situação semi-insurrecional na chamada “guerra do gás” em outubro de 2003. O próprio Mesa foi derrubado em 2005 pelas mobilizações populares, o que acabou dando lugar à vitória eleitoral de Evo Morales em 2006.

A presidente ilegítima Jeanine Áñez também se postula como candidata presidencial e tenta a todo custo utilizar sua posição à frente do aparelho de Estado como uma forma de impulsionar sua candidatura. O dirigente ultradireitista e protofascista do Comitê Cívico Pró Santa Cruz, Luis Fernando Camacho, também é candidato representando as forças mais ultradireitistas de Santa Cruz e do oriente boliviano. 

A divisão na direita favorece os planos eleitorais do MAS. Ao mesmo tempo, dada a polarização social e política existente, a possibilidade de um segundo turno nas eleições é o mais provável e isso pode levar a algum tipo de acordo entre essas forças reacionárias contra o MAS. 

A Bolívia vive um estado de exceção depois do golpe de 2019. Todos os recursos disponíveis serão utilizados para beneficiar a direita no processo eleitoral, além das enormes possibilidades de fraude e manipulação de resultados.

Nesse momento, além de Evo Morales ter sido impedido de retornar ao país e candidatar-se ao Senado, uma nova campanha contra ele foi lançada envolvendo todo tipo de acusações, incluindo estupro e tráfico de pessoas.

O próprio candidato presidencial do MAS, Luis Arce, está respondendo vários processos judiciais que, em algum momento poderão ser usados como forma de impedi-lo de disputar, vencer ou mesmo assumir a presidência caso ganhe as eleições. 

Mesmo depois do acordo em torno da nova lei eleitoral aprovada na Assembleia Legislativa e da suspensão das mobilizações e bloqueios por parte da COB e do Pacto de Unidade, está em curso uma perseguição das lideranças e ativistas sindicais, camponeses e indígenas. Já existem 33 denúncias judiciais contra dirigentes do movimento sendo encaminhadas pelo Ministério Público boliviano.

A única possibilidade de que se possa enfrentar as manipulações e o arbítrio promovidos pelo governo e as oligarquias é com mobilização popular, é com a força das ruas. Sempre foi assim na história da Bolívia e não será diferente agora. Qualquer ilusão de que o processo eleitoral será limpo e justo e que as elites aceitarão qualquer resultado levará a mais derrotas e retrocessos.

Crise de direção do movimento de massas

As mobilizações de agosto deixaram claro que não falta energia e disposição de luta do povo boliviano contra o governo ilegítimo. A luta das últimas semanas são uma continuidade da resistência de massas que se deu contra o golpe de Estado antes da pandemia e mostra que os trabalhadores ainda não estão definitivamente derrotados.

O que faltou em ambas as situações foi uma estratégia e uma direção capazes de levar essa força e essa luta até as últimas consequências.

Mesmo depois da decisão da direção da COB e do Pacto de Unidade em suspender a luta e aceitar ao cordo em torno da nova lei eleitoral, vários setores do movimento rechaçaram a postura das direções. 

Um ‘Cabildo abierto’ (Assembleia popular envolvendo todos os setores do movimento) na cidade de El Alto, realizado logo após a aprovação da nova lei, decidiu continuar a luta e aprovou uma plataforma que incluía a derrubada imediata de Áñez e a defesa dos recursos naturais bolivianos diante dos planos de privatização do governo. Exigiram também garantias contra a perseguição aos dirigentes sindicais e populares ao mesmo tempo em que denunciavam a postura das direções nacionais.  

Em algumas regiões, os bloqueios e mobilizações seguiram por mais algum tempo. Mas, acabaram não perdurando. Muitos trabalhadores, camponeses e indígenas devem tirar conclusões sobre o papel de suas direções na luta e isso deverá alimentar um processo de reorganização sindical e popular e da esquerda boliviana. 

A luta pela imediata realização de eleições livres e democráticas não pode estar separada da luta pela derrubada imediata de Jeanine Áñez e seu governo de assassinos e lacaios do imperialismo e das oligarquias locais. 

A luta por “Fora Áñez e eleições livres e democráticas já” deveria também estar ligada às demandas mais urgentes dos trabalhadores, camponeses, indígenas e população pobre na cidade e no campo em um contexto de pandemia e profunda crise econômica e social. 

Isso significa lutar pela garantia de emprego, salário e condições de vida e de trabalho seguras, investimentos massivos nos serviços públicos, especialmente na saúde pública e estatização da saúde privada. 

Além disso, as bandeiras históricas levantadas no grande levante de outubro de 2003, a guerra do gás, não realizados pelos governos do MAS, mantém sua validade. É preciso defender a estatização dos hidrocarbonetos, de todos as riquezas naturais bolivianas e todos setores chaves da economia com controle democrático dos trabalhadores.

Não existe nenhuma chance de uma estabilização da situação boliviana diante de tamanha crise e polarização. As lutas ressurgirão, dessa vez alimentadas pela experiência e as lições das últimas semanas. 

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