As mentiras por trás da reforma da previdência
A intenção é retirar direitos, baixar impostos para as empresas e criar mercado lucrativo aos bancos
A contrarreforma da previdência é um dos mais graves ataques aos direitos dos trabalhadores dos últimos tempos. Se passar, vai significar uma perda de renda de centenas de bilhões de reais nas próximas décadas, especialmente dos trabalhadores mais pobres. Derrubar essa reforma é a tarefa central dos movimentos sindicais e sociais, junto com à esquerda como um todo.
A “reforma”, que tramita sob o nome PEC 06/2019, é baseada em duas mentiras grosseiras. A primeira, que é uma reforma para acabar com privilégios, quando na verdade calcula-se que 80% do que vai ser economizado virá de quem ganha até 2 salários mínimos de benefícios.
A segunda, que a reforma é para evitar um colapso fiscal, que o Brasil “quebre”. Além de cálculos que distorcem a realidade, a proposta de implementar um novo sistema de previdência, o de capitalização, é que levará a um gigantesco rombo que custará décadas para pagar, como mostra o exemplo chileno.
As mudanças propostas pelo relator da Comissão Especial, Samuel Moreira (PSDB-SP), retira ou ameniza várias dos piores ataques: BPC, aposentadoria rural, abono salarial, etc. Isso é fruto das lutas até agora, mas o centro da reforma permanece a mesma: quem tem salário baixo vai ter que trabalhar e mesmo assim ter aposentadoria menor.
“Combater privilégios” tirando dos mais pobres
É uma mentira cínica dizer que a reforma da previdência do governo combate privilégios. Na verdade, cerca de 80% dos R$ 1,237 trilhões de reais da proposta original que supostamente seria economizado com a reforma viria de quem ganha até 2 salários mínimos de benefício.
Várias das propostas visavam reduzir o valor dos repasses para abaixo do salário mínimo. Isso vale para o BPC, pensão por morte e aposentadoria por incapacidade permanente. A proposta do governo também retirava a garantia de ajuste dos benefícios pela inflação, condenando uma parcela cada vez maior a receber somente um salário mínimo. Essas propostas foram retiradas pelo relator.
Mas foram mantidas as propostas de aumentar o tempo de contribuição e piorar o cálculo do benefício (a aposentadoria será calculada em cima da média de todos os salários, onde no sistema atual é desconsiderado os 20% mais baixos).
Muitos nem vão nem se qualificar com as regras novas, que aumentam o tempo de contribuição mínimo para 20 anos. Dado o grande grau de informalidade, já hoje muitos têm dificuldade de comprovar 15 anos. Isso vale especialmente para quem tem os salários mais baixos, já que passam grande parte da sua vida em períodos de desemprego e bicos informais.
Mulheres mais afetadas
As mulheres vão ser as mais afetadas por essa reforma. O tempo diferenciado de contribuição e de idade mínima, é um mínimo de compensação pela dupla jornada que recai sobre elas. O governo propõe igualar o tempo de contribuição e idade mínima vai ser igualado ao dos homens para trabalhadoras rurais e professoras, e na regra geral a idade mínima vai subir de 60 para 62 para mulheres, permanecendo em 65 anos para os homens. O relator retirou a proposta da aposentadoria rural e manteve uma menor diferenciação da idade mínima para professoras, de 57 anos ao invés de 60. O tempo mínimo de contribuição para mulheres foi também reduzido para 15 anos na proposta do relator.
As mulheres têm salário mais baixo, sofrem mais com a informalidade, assim, passam muitas vezes anos de suas vidas sem remuneração como donas de casa cuidando de filhos, dependendo mais de benefícios como BPC e pensões. Em 2017, segundo o IBGE, 4,3 milhões das 6,2 milhões das empregadas domésticas trabalhavam sem carteira assinada.
No sistema geral do setor privado (RGPS), o valor médio pago pelo INSS em dezembro de 2018 em aposentadorias foi de 1.487 reais e em aposentadorias rurais 953 reais. Dois terços dos benefícios pagos pelo INSS equivalem a um salário mínimo.
O tempo de contribuição para obter 100% da média salarial vai subir para 40 anos, igual para homens e mulheres, algo que poucos irão alcançar. Para dar um exemplo do efeito dessas regras, um trabalhador que se aposenta com 65 anos e 20 anos de contribuição e com média salarial de R$ 2.241 mil reais, recebe hoje 90% da média, ou R$ 2.017. Com a reforma, ele perderia 43% desse valor, recebendo R$ 1.140 reais!
Para tentar justificar a “caça aos privilégios”, se evoca a figura dos servidores públicos com aposentadorias altas. Mas a partir de 2013 não há mais distinção dos tetos do Regime Geral e do regime do funcionalismo público, que hoje é de R$ 5.839,45 para ambos.
Privilégios intactos
A proposta de reforma também deixa os verdadeiros privilégios das forças armadas intactos. Em 2017, o Regime Próprio de Previdência Social dos militares da União gastou 12 vezes mais que arrecadou, gerando um déficit de R$ 37,7 bilhões! A proposta de ajustes, que foi apresentada por fora do pacote geral, tirava com uma mão para devolver com a outra.
Na verdade essa reforma é principalmente um ataque aos mais pobres, reduzir a aposentadoria de quem ganha nem dois salários mínimos não é “combater privilégios”.
Apesar dos recuos do relator, há propostas de atingem os mais vulneráveis que já passaram. A MP871, com o título “Combate a irregularidades em benefícios previdenciários”, que já foi votada no congresso, estabelece, por exemplo, que as famílias de detentos só terão acesso ao auxílio reclusão de um salário mínimo se o detento tiver contribuído ao INSS por 24 meses! Longe se ser proposta de “combate a irregularidades”, é uma dupla criminalização dos mais pobres.
A mesma MP também dificulta o acesso à aposentadoria rural. Muitos têm dificuldade de comprovar seu tempo de contribuição, apesar de 78,2% dos homens e 70,2% das mulheres em atividades rurais começarem a trabalhar antes dos 15 anos de idade. Agora será mais difícil com a nova regra da MP, onde não será mais aceita a autodeclaração através dos sindicatos rurais. Agora o trabalhador rural terá que se inscrever no CNIS (Cadastro Nacional de Informações Sociais). Essa proposta vai valer a partir que 50% tiver se inscrito no cadastro. Quer dizer, perder um pouco menos da metade daqueles que tem cobertura no campo é aceitável! Além disso o relator manteve a proposta da PEC que estabelece uma contribuição mínima por família de R$ 600 reais.
A reforma terá um enorme efeito principalmente nas pequenas cidades de regiões pobres. A maior fonte de renda de 70% (3.875) dos 5.566 municípios brasileiros são os benefícios pagos pela Previdência Social. Os cortes nesses benefícios vão aumentar a pobreza no campo e pequenas cidades, dessa forma aumentará o êxodo rural e fluxo para grandes cidades.
O mito fiscal
Apesar dos conflitos que existe entre o governo Bolsonaro e uma boa parte dos representantes da burguesia no congresso e na mídia, há um consenso entre eles que é fundamental implementar a reforma da previdência. Cada dia na mídia há matérias para dizer que a reforma é inevitável, com o argumento que o país vai quebrar sem ela.
Muitas pessoas que entendem que a reforma recairá sobre os pobres, acabam sendo levadas pela avalanche mentirosa da “previdência insustentável” e “rombo fiscal”. Mas é possível responder a essas alegações apenas mostrando os fatos.
Os números apresentados pelo governo que mostram um déficit de quase 300 bilhões de reais para esse ano, são uma distorção que não segue as normas estabelecidas pela Constituição de 1988. A Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (ANFIP) vem mostrando como esse “déficit” é fabricado, desconsiderando receitas do sistema e incluindo gastos que não fazem parte do sistema. Segundo a ANFIP, a Seguridade Social só começou a apresentar déficit em 2015, com a explosão do desemprego com a profunda crise econômica. Mesmo assim se trata de um déficit muito menor, de 57 bilhões em 2017, comparado com 292 bilhões segundo o governo.
Através da DRU (Desvinculação das Receitas da União), boa parte dos impostos criados para financiar o sistema de seguridade social (CSLL, Cofins, PIS-Pasep e recursos de loterias) tem sido desviado para o pagamento dos juros da dívida pública aos bancos. Segundo a ANFIP, entre 2005 e 2016, o valor médio de recursos desviados da Seguridade Social pela DRU foi de R$ 52 bilhões de reais por ano, totalizando R$ 629 bilhões!
Além disso, o governo Dilma desonerou a folha de pagamento de empresas, fazendo que a contribuição previdenciária caísse em alguns casos para 1% do salário, ao invés de 20%, retirando boa parte do financiamento do sistema. Em cima disso, temos um gigantesco acúmulo de dívidas de grandes empresas, que simplesmente deixam de pagar ao sistema, incentivado por uma constante política de perdoar e parcelar dívidas. São no total 491 bilhões que essas empresas devem, mas boa parte jamais será recuperado, já que são de empresas que já faliram.
Capitalização – a privatização da previdência
A proposta de implementar um sistema de capitalização mostra que essa reforma não tem como intenção sanar as contas públicas. Paulo Guedes criticou explicitamente a diminuição da economia com as propostas do relator, porque não seria mais suficiente para bancar a transição para o sistema de capitalização!
Hoje temos um sistema solidário de repartição, onde quem está trabalhando contribui para o sistema, que repassa para quem está aposentado. Através das regras do sistema você se qualifica para receber uma certa porcentagem do seu salário ao se aposentar.
A capitalização é um sistema onde cada trabalhador paga para uma própria conta, que quando se aposentar é usada para pagar a aposentadoria. Você sabe só quanto vai pagar, não quanto vai receber, já que além das suas contribuições, depende de quanto ela render e quanto o banco ou fundo que administra a conta cobrar de taxas.
A intenção de usar o sistema de capitalização são: 1 reduzir os impostos das empresas, 2) abrir um enorme mercado lucrativo para o sistema financeiro e 3) acabar com o sistema de redistribuição de renda, que diminui as desigualdades sociais.
Nos lugares em que esse sistema foi implementado, ele tem levado a um aumento de pobreza entre os idosos, com baixíssimas aposentadorias, além de enormes custos de transição. Isso por um simples fato: se quem trabalha hoje vai começar a pagar para uma conta própria, quem vai bancar o aposentado de hoje?
No Chile, o sistema de capitalização foi implementado em 1981 e até agora após quase 4 décadas o custo de transição tem sido de cerca de 136% do PIB chileno (o equivalente no Brasil, contando com o PIB de 2018, seria de 9,2 trilhões!). Enquanto no Brasil a previdência é paga por três fontes, contribuição do trabalhador, do empregador e impostos, o sistema chileno contava com contribuição só do trabalhador (até recentemente). Isso tem levado a aposentadorias baixíssimas e segundo da Fundação Sol, 91% dos aposentados no Chile recebem menos que a metade de um salário mínimo em aposentadoria.
Enriquecendo os fundos privados
Os fundos de pensão (incluindo o BTG Pactual do Paulo Guedes) feito enormes lucros com as taxas de administração. O total de fundos acumulados pelas AFPs já beira os 220 bilhões de dólares, o equivalente a 75% do PIB do Chile. 75% destes recursos estão sob controle de três empresas estadunidenses e 40% do fundos são aplicados fora do país.
Um estudo da Unafisco (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil) mostra como os fundos podem ficar com quase 40% do patrimônio acumulado pelo trabalhador após 40 anos de contribuição, se cobrado 4% de taxas de administração. Além disso, você corre o risco de perder tudo se o seu fundo falir.
Paulo Guedes tem defendido explicitamente um sistema igual ao do Chile, sem cobrança sobre as empresas. Mesmo se o sistema fosse implementado só para quem entra no mercado de trabalho hoje, como dizem, a pressão para que fosse ampliado para todos seria enorme. Quem contrataria alguém pagando 20% para previdência, se existir a opção de pagar nada?
O verdadeiro rombo fiscal
Segundo a proposta do governo, haveria um “fundo solidário” para garantir que todos irão ganhar no mínimo um salário mínimo. Mas de onde viria esse dinheiro? Se for para desonerar os patrões, os recursos teria que vir de impostos que recairiam sobre os trabalhadores ou pagos através de cortes nos gastos sociais.
Uma projeção inicial do governo no Brasil aponta para uma gasto de transição de R$ 985 bilhões em 20 anos, enquanto a Unafisco estima que o gasto em 20 anos deve chegar a R$ 3,4 trilhões, para ultrapassar R$ 8 trilhões em 30 anos! Na Argentina, o custo foi inicialmente estimado estimado a 0,2% do PIB anualmente, o resultado real foi de 3,6%, 18 vezes maior!
O relator retirou a capitalização da proposta, mas o governo ainda não desistiu da ideia.
Questão demográfica e a precarização
Um dos principais argumentos usados para mexer na previdência é o fato que a população está ficando mais velha. Só que há grandes diferenças de expectativa de vida entre as regiões mais ricas e mais pobres. Em Santa Catarina a expectativa de vida é 8,5 anos maior do que no Maranhão.
Porém, o grande problema hoje no Brasil é outro, é a precariedade do trabalho e o desemprego. A metade daqueles que trabalham estão na informalidade, e 37% dos que têm uma ocupação não contribuíram para a previdência no final de 2018, segundo o DIESSE. E esse governo só tem propostas para aumentar a precariedade do trabalho, o que vai enfraquecer ainda mais o sistema.
Romper com o sistema
Essa reforma não vai resolver o problema, esse também não é o interesse do governo. Eles estão contentes em manter uma situação de crise permanente, para justificar novos ataques. Por isso um tema central do pacote é de tirar a regulamentação da previdência da Constituição. Assim ficará mais fácil implementar novas contrarreformas, já que só será necessário maioria simples no congresso. O relator manteve vários medidas que poderão ser alteradas mudança na constituição, como o tempo de contribuição.
A reforma da previdência reflete a falência do sistema capitalista no Brasil, que depois de dois anos de profunda crise 2015-2016, estamos no terceiro ano de estagnação, com crescimento perto do zero. Mas a crise é obviamente relativa, ela atinge as finanças públicas e os trabalhadores, mas não os ricos e grandes empresas, especialmente os bancos. Os bancos fizeram no ano passado os maiores lucros desde a implementação do plano real em 1994, totalizando 98,5 bilhões de reais.
A crise mundial que começou 2007-2008 se mostrou ser de longo prazo e a linha da classe dominante é atacar todos os direitos conquistados historicamente para garantir os lucros e riquezas da elite. Por isso tivemos aqui no Brasil uma política de cortes que vem já do governo Dilma, seguido pelo governo Temer com a reforma trabalhista e congelamento dos gastos públicos por 20 anos. Agora o governo Bolsonaro tenta implementar essa previdenciária, para ser seguida de mais uma reforma trabalhista.
Saída pela esquerda
Contra tudo isso temos que colocar um programa que mostre uma saída pela esquerda. O primeiro passo seria acabar com o desvio dos recursos da previdência, acabando com a DRU e as desonerações, além de cobrar as dívidas bilionárias das grandes empresas sonegadoras ao sistema previdenciário. Ao invés de uma reforma que retira direitos dos trabalhadores, defendemos uma reforma tributária que taxaria os lucros das grandes empresas e as fortunas, junto com uma auditoria da dívida pública, suspendendo o pagamento da grande parte da dívida que é fraudulenta e funciona como um sistema de transição de renda para os bancos e mais ricos.
Mas existe uma grão de verdade quando o establishment fala que nem essa previdência que paga baixas aposentadorias é sustentável sob o atual sistema. Esse é o limite do capitalismo. É um sistema onde não há limite nenhum para quão rico um homem pode ser, onde 5 homens têm uma riqueza que equivale os 110 milhões mais pobres do país. O sistema não consegue garantir as mínimas condições de vida para a vasta maioria que criam essas riquezas. Por isso uma luta contra a reforma da previdência só será consequente se formos preparados para desafiar a ditadura das grandes empresas e do sistema financeiro com uma alternativa socialista.