Irlanda a um passo da legalização do aborto
Estivemos em abril, a convite do ROSA (Movimento Feminista Socialista da Irlanda), participando de um ato público sobre um importante acontecimento que terá o seu desfecho agora em 24 de maio. Trata-se de um plebiscito que visa validar ou remover a emenda 8 da constituição irlandesa que proíbe o aborto. Na mesma ocasião, tivemos a oportunidade de conversar com camaradas da Irlanda do Norte e perceber que esta organização das mulheres irlandesa terá reflexo positivos para muitas mulheres para além da ilha.
Se existe um sentimento que tem unificado mulheres nos últimos anos, ao redor do mundo todo, é o direito à uma vida sem violência. Quando identificamos que negar aborto seguro, que desacreditar vítimas de estupro, que pagar menos à mulher que exerce a mesma função que um homem, que não ter acesso aos direitos básicos de moradia e alimentação, são tipos de violência sofridos pelas mulheres, esse sentimento de basta fica mais potente.
Diversos movimentos de mulheres têm surgido em várias partes do mundo para denunciar este estado de coisas e tem rompido as barreiras históricas de silenciamentos forçados. Os exemplos são vários: “Fora Cunha/Primavera Feminista”, “Mulheres contra Trump”, “Me too”, “Ni una a menos”, “Time4Choice”, “I believe her”.
Um ponto que vejo como central em todas essas denúncias e reivindicações é o caráter de pertencimento e necessidade de luta que tem despertado nas ativistas a partir de uma questão que parece simples em pleno século XXI, que é o direito de decidir pelo nosso próprio corpo.
Paralelos com o Brasil
Esta abordagem do aborto na Irlanda guarda muitas semelhanças com o Brasil e com vários países da América Latina. A negação de um direito básico escancara uma sociedade altamente manipulada por interesses religiosos cujos dogmas são questionados na prática por seus seguidores. Há muitos fiéis, que continuam frequentando missas e cultos semanalmente, mas já se declararam favoráveis à revogação da oitava emenda.
Por conta disso, tanto lá como cá, lideranças católicas e protestantes tem se unido na propagação de difamação e mentiras contra as organizações que são favoráveis ao direito ao aborto e atestam a segurança do uso da pílula abortiva até 12 semana de gestação. Vi alguns cartazes contra o aborto espalhados pela capital Dublin, que chegam a ser misóginos. Há um que mostra um útero com um bebê de seis meses envolto em um cordão umbilical que forma um coração, além de pássaros e flores ao redor do feto e com a seguinte mensagem: “se matar um feto aos seis meses te incomoda, vote não”. Se mentir não é mais pecado, deveria ser ao menos considerado de mal caráter, pois 6 meses é o dobro do período que o movimento e a comunidade médica atestam como seguros, e será esse o objeto de decisão, 12 semanas.
No Brasil, Pesquisa Nacional do Aborto 2016 aponta que somente no ano de 2015, 503 mil mulheres interromperam voluntariamente a gravidez, concluindo que o “o aborto é, portanto, um fato da vida reprodutiva das mulheres brasileiras”.
Esse evento é mais comum na vida de mulheres que vivenciam maior vulnerabilidade social: 15% das mulheres negras (como eu) e indígenas já fizeram um aborto na vida, ao passo que 9% das brancas, concluindo que é principalmente para as mulheres negras e indígenas, pobres e menos escolarizadas que os efeitos punitivos do aborto resultam em prisão. Levando em consideração a subnotificação, estes dados podem ser ainda maiores. Também nos dá conta de dimensionar o número de mortes de mulheres por abortos clandestinos realizados de maneira insegura e por diversos métodos, que quando não colocam a sua vida em risco, deixam sequelas no corpo e na alma para o resto de suas vidas.
Viola a dignidade da mulher
Aqui no Brasil, em 2017, o PSOL e a ANIS (Instituto de Bioética), entraram conjuntamente com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) – a “guardiã das leis brasileiras” – com a ADPF 442/2017. Esta sigla significa Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. É uma ação que expõe uma condição de descumprimento de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, praticados por atos normativos, no caso a criminalização do aborto prevista no Código Penal que data de 1940, que na prática obriga mulheres a manterem gestações indesejadas violando o preceito da dignidade da pessoa.
Teremos uma audiência pública agora em abril, onde o Supremo ouvirá defensores de ambos os lados antes de tomar a sua decisão. Diferente da Irlanda, onde o movimento conseguiu provocar o plebiscito, no Brasil, 11 pessoas, entre eles 9 homens, vão decidir pela vida de mais de 106 milhões de mulheres.
Construção do ROSA
Essa construção do ROSA, uma iniciativa das mulheres do Socialist Party (CIT na Irlanda), vem há mais de 5 anos, iniciada com a luta que cresceu a partir da morte da jovem Savita, com complicações na gravidez que teve o aborto negado e veio a falecer em 2012, por conta dessa omissão.
Através de uma atuação ousada e ilegal, o ROSA forjou o ônibus Rosa, com trabalho de conscientização e propaganda rodando o país todo, dialogando e com apoio de médicos na prescrição do uso e envio da pílula abortiva aos lares das mulheres assistidas. Essa ousadia veio justamente dizer que a proibição não impede as mulheres de acessarem a pílula, mas elas não querem mais fazer isso sentindo-se como criminosas.
Agora é fato, se em um país da Europa essa luta é justa, nos países Latino Americanos ela se faz mais que necessária. Talvez, a resposta para nós seja aquilo que o ROSA construiu nas ruas e não apenas por cima, pela cúpula, via instituições. Qualquer concessão dos legisladores não será um ato de bondade, mas sim a pressão que vem debaixo.
Enquanto uma mulher estiver morrendo em decorrência de um direito fundamental negado em qualquer lugar do mundo, que é o direito à vida, nós estaremos morrendo junto com ela. Essa campanha pela revogação da emenda do aborto na Irlanda, tende a ser vitoriosa pelo envolvimento de mulheres, de sindicatos, de religiosos, diretores, atrizes, médicos.
A campanha é 100% financiada por meio de coletas e vaquinhas online que tem garantido a mobilização de rua com cartazes, placas, panfletos, viagens ao interior do país para um diálogo corpo a corpo com as pessoas. Isso tem feito toda a diferença. Os próximos dias serão decisivos e inspiradores. A troca de experiências nos fortalece e demonstra mais ainda a necessidade da organização das mulheres e dos trabalhadores internacionalmente.