No cinema: V de Vingança

A minissérie em quadrinhos V de Vingança de Alan Moore foi uma resposta ao período quase-fascista em que a Inglaterra vivia sob o tacão da primeira-ministra Thatcher, no final dos anos 80, que combinava o ataque aos direitos dos trabalhadores, privatização e aumento da truculência policial e vigilância contra manifestantes e grevistas.

Alan Moore é considerado por muitos como o homem que revolucionou o conceito das histórias em quadrinhos, com temáticas adultas e questionadoras, exemplificadas em sua maior obra, Watchmen, que imagina um mundo em que super-heróis existiam de verdade e alteravam o curso da história: os EUA ga­nham a guerra do Vietnã e estão muito próximos de uma guerra com a União Soviética.

V de Vingança imagina uma Inglaterra futurista onde um governo fascista chegou ao poder após uma guerra nuclear: Os EUA, África e Europa foram var­ridos do mapa, e o governo inglês, através do supercomputador Destino, manipula todas as informações e mantém uma vigilância absoluta sobre os cidadãos. Negros, asiáticos, homossexuais e militantes de esquerda foram todos presos e mandados para um campo de concentração.

Raízes na história

É então que surge uma misteriosa figura, identificada apenas com o codinome V, que usa uma máscara de Guy Fawkes, o rebelde que no século 17 tentou explodir o parla­mento inglês devido a perseguição da minoria católica. Ele passa a empreender uma cruzada com o objetivo de implodir os fundamentos do governo totalitário com a ajuda de Evey Hammond, uma órfã cujo pai foi morto pelos fascistas.

Este pequeno resumo pode parecer se tratar de mais um enredo de filme de ação, mas a história na verdade é muito mais do que isso, com discussões filosóficas e literárias sobre a questão da liberdade e controle, da origem da tirania e do direito à revolta.

O herói V é um anarquista, inspirado no Fantasma da Ópera, e, como ele, parece ser quase onisciente, sabendo de antemão quais os passos da polícia secreta do regime, e sabendo onde e como atacar. Sua identidade verdadeira nunca é revelada, apenas sabemos que foi um prisioneiro dos campos de concentração que sofreu diversas experiências genéticas. Começa sua vingança contra o regime atacando e matando os maiores representantes da mídia, da igreja, da polícia, deixando o governo de mãos atadas quando destrói o sistema de vigilância e possibilita ao povo se revoltar.

A Thatcher de ontem é o Bush de hoje

A história foi recentemente adaptada para os cinemas pelos irmãos Wachowski, criadores da trilogia Matrix, e, como a Graphic Novel foi um libelo contra Thatcher, o filme é um protesto contra a era Bush; mesmo alterando vários conceitos originais, conserva todo o impacto do original. Por isso, não é difícil entender porque tem sido alvo de ataques de órgãos da imprensa claramente de direita e reacionários.

Nos tempos de “cruzada” de Bush contra os “fanáticos terroristas”, a última coisa que poderiam aceitar é um herói subversivo que explode os símbolos de poder do estado capitalista e incita o povo a se rebelar contra seu domínio. A famigerada revista Veja, quando comentou sobre o filme, disse apenas que eram “idéias sem pé nem cabeça”. Ela não deve ter gostado especialmente quando o filme comenta sobre a manipulação da mídia sobre a população, com um V vestido com dinamite como um homem bomba, invade o canal de TV estatal, faz reféns e faz um chamado à população para se levantar contra o estado fascista no próximo 5 de novembro, aniversário da conspiração de Guy Fawkes.

Não dá para fazer uma análise detalhada sobre a Graphic Novel ou o filme aqui, todas as citações e referências que fazem (se pode inclusive fazer uma análise feminista da história: o ditador se chama Adam, ou Adão, e representa o sistema patriarcal opressor que o fascismo se assenta, além de ser uma pessoa frustrada emocionalmente. A heroína, Evey ou Eva, dá continuidade à obra de V para construir uma ordem mais libertária e justa).

Idéias não se matam

Mas uma das idéias principais da obra, que o filme mantém, é de que enquanto houver opressão e miséria haverá idéias de revolta contra a ordem estabelecida, e não há nada que os poderosos deste mundo possam fazer para extirpa-las, exemplificada na cena em que um policial tenta matar V, e este diz: “Você pretendia me matar? Não há carne ou sangue dentro deste manto para se matar. Há apenas uma idéia. Idéias são à prova de balas”.