Resenha: Martin Éden

Martin Éden , de Jack London. Ed. Nova Alexandria, 2003, 375 págs

 

Jack London é um dos escritores norte-americanos mais conhecidos. Suas histórias empolgaram gerações de jovens em todo mundo, especialmente as duas mais famosas, O Chamado Selvagem e Caninos Brancos.

Por causa disto, London é erroneamente mais conhecido como um mero escritor de aventuras. Isso não é exato. Autodidata e com uma vida repleta de aventuras, do Alasca aos mares do sul, ele escreveu mais de 40 livros, entre romances, contos e reportagens. Apesar de ser um individualista dos mais puros, ao longo de sua ida tomou contato com os movimentos socialistas, o que o levou a escrever livros de militância social, como O Tacão de Ferro.

Martin Éden, publicado recentemente pela editora Nova Alexandria, é considerado sua obra mais importante. Com fortes tons autobiográficos, ela narra a história do marinheiro Martin Éden, que se apaixona por uma moça de classe média, Ruth. Decidido a ascender socialmente para poder se casar com ela, e dotado de uma enorme curiosidade pelo saber, que identifica ser parte de uma existência superior a qual pertence sua noiva, decide se tornar um intelectual. Chega a estudar 19 horas por dia, enfrentando a incompreensão da família e de sua própria amada, que gostaria que ele se dedicasse a uma carreira convencional, como advogado.

Depois de já ter acumulado um nível extraordinário de conhecimentos, Martin passa a escrever contos e romances que manda para as revistas literárias, que, com exceção de um ou outro, os rejeita. Só interrompe seu trabalho intelectual quando já não tem mais dinheiro e é obrigado a se empregar numa lavanderia. Lá o regime de trabalho é opressivo e estafante, o que leva Martin à falta de interesse pelos livros e à bebida. Ele então sai do serviço e volta a escrever. Para sobreviver, escreve também folhetins e literatura barata para vender a revistas populares.

Sua força de vontade o faz continuar no seu objetivo, mas fica desanimado com a falta de compreensão de Ruth. Percebe que o meio em que ela vive é repleto de convencionalismos falsos, preocupação com as aparências e vazia de vida intelectual. Martin não consegue se conciliar com este modo de vida, é um espírito livre, percebe que seus estudos o elevaram intelectualmente acima desta pequena burguesia medíocre e o fazem desprezar seus preconceitos: “O realismo é necessário à minha natureza e o espírito burguês odeia o realismo. A burguesia é covarde. Receia a vida.”

Martin se diz um discípulo de Nietzsche, um individualista que professa o credo dos fortes: “Não havia dúvida de que o mundo pertencia aos fortes”, “Os homens verdadeiramente nobres estavam acima da piedade e da compaixão. Piedade e compaixão haviam-se gerado nos barracões subterrâneos dos escravos e nada mais eram do que a agonia e o suor de uma multidão de fracos e miseráveis.” Esta crença vinha da consciência da sua própria superioridade intelectual.

É com estas convicções que ele vai a uma assembléia operária e refuta os socialistas. Nesta assembléia havia um repórter que, não sabendo acompanhar a discussão, e não entendendo os argumentos utilizados, no dia seguinte escreve um artigo sensacionalista colocando Martin como o líder de um grupo de socialistas raivosos. Martin o agride e ele escreve outro artigo mentiroso. A família e vizinhos de Martin se voltam contra ele, e os pais de Ruth a obrigam a romper o noivado.

Martin fica arrasado com estes ataques e incompreensão de suas idéias, e ainda mais por ver na sua amada toda a superficialidade burguesa que ele detestava: “Fora uma Ruth idealizada que amara, uma criatura etérea por ele próprio criada, espírito brilhante e luminoso de seus poemas de amor. A verdadeira Ruth burguesa, com todos os seus defeitos burgueses, com todas as irremediáveis arestas de uma psicologia burguesa – essa ele nunca amara.”

Martin faz mais uma tentativa de publicar seus trabalhos e consegue. De repente, ele se torna um sucesso de publico e crítica, todos querem adquirir seus escritos e ele se torna rico. Mas esse sucesso se torna mais uma frustração para ele: o público só está interessado em alguma novidade, os críticos são incapazes de entende-lo e tecem apenas comentários vulgares. Sua obra literária, no qual ele pôs toda a sua alma e o amor pela vida, é apenas um modismo que a industria cultural oferece ao grande público.

As portas da alta sociedade agora se abrem para ele. A sua família, que antes o chamava de vagabundo por não procurar um emprego, agora o adula. Os burgueses obtusos que não entendiam seus pontos de vista e pensam apenas por imitação, o convidam agora para jantares e a ingressar em clubes privados. Ruth tenta reatar o noivado, agora que ele conta com a aprovação de todos. Mas Martin não aceita.

Pode-se dizer que Martin agora é um vencedor. Consegue ascender na escala social por seu próprio esforço e mérito e se torna rico e prestigiado, mas para ele esta fama não tem sentido algum. A vida intelectual e a pureza de sentimentos que ele imaginava existir nas esferas superiores não existem. O amor que sentia por um ser que só existia em sua imaginação não resistiu à prova da realidade.

Tenta se reaproximar dos seus velhos amigos da classe operária, mas um abismo se interpõe entre eles, devido aos estudos de Martin. Ele perde então todo o entusiasmo em continuar escrevendo, sua vida se torna um tremendo vazio. O violento tédio que se apossa de sua existência o leva a um trágico fim.

Um romance extraordinário e cheio de vigor, é ainda hoje uma denuncia eloqüente da industria cultural e das falsas convenções que tornam célebres escritores medíocres, na canonização que impede qualquer espaço para as novidades. O ataque que fez Martin às autoridades universitárias ainda hoje tem validade: “Sua missão consiste em pegar todos os jovens que freqüentam a universidade e eliminar-lhes do cérebro qualquer luminosa originalidade que por acaso lá se albergue, e, em lugar dela, pôr-lhes o selo do convencionalismo.”

Apesar de ser Martin um individualista, a sua própria história é uma refutação de sua crença. O argumento de que o mundo pertence aos fortes é desmentido pelo tempo que passou na lavanderia, onde o trabalho esmaga a vontade e a iniciativa, por mais que a pessoa seja forte. Tudo isso é escrito por alguém que conheceu o processo desumano da maquina industrial. London aqui faz um ajuste de contas com seu antigo mestre Nietzsche, de um modo sutil e com seu estilo sempre vivo e apaixonante. O livro inteiro é uma reflexão sobre a divisão entre trabalho intelectual e manual, a busca de valores verdadeiros em uma sociedade sem valores e a solidão e incompreensão sofrida pelos que não se submetem à mediocridade estabelecida.

Para quem nunca leu um livro de London, Martin Éden é uma excelente introdução, e possivelmente o fará querer ler mais.