CIT: Teses sobre América Latina

Documento votado na reunião do Comitê Executivo Internacional do CIT, realizada entre  27/11 e 02/12 de 2017.

Em sua reunião de dezembro de 2016, o Comitê Executivo Internacional do CIT ratificou a visão de que o período de relativa estabilidade política e econômica na América Latina havia chegado ao seu final. Isso se deu como reflexo da crise internacional e das contradições do próprio capitalismo dependente e periférico dos países latinoamericanos. Um novo período marcado por grande instabilidade e turbulências sociais e políticas abriu-se no subcontinente.

O novo cenário explicitou o esgotamento das alternativas políticas autointituladas “progressistas” que haviam, desde o início do século, capitalizado a insatisfação popular com o neoliberalismo. No contexto do boom das commodities, parte do “progressismo” latinoamericano, como no caso dos governos de Lula (PT) no Brasil, pôde apostar em um pacto social onde limitadas concessões aos de baixo garantiam a manutenção dos altíssimos privilégios dos de cima.

Em outros países, onde o processo foi mais polarizado e radicalizado, como na Venezuela, a renda do petróleo pôde ser utilizada para uma redistribuição maior da riqueza e reformas sociais foram implementadas. Em nenhum dos casos houve uma ruptura com o sistema capitalista.

O agravamento da crise capitalista enfraqueceu ambas as vertentes do “progressismo” latinoamericano e levou o núcleo duro das classes dominantes e do imperialismo a romper com a política de conciliação de classes e promover uma contraofensiva impondo novos e duros ataques aos trabalhadores e ao povo.

Diante do desgaste do “progressismo” latinoamericano e na ausência de novas alternativas de esquerda mais consequentes e com peso de massas, a direita ressurgiu na região com mais peso e força. Novos governos de uma direita abertamente neoliberal se constituíram, como os de Maurício Macri na Argentina, Michel Temer no Brasil, Pedro Pablo Kuczynski no Peru, etc. Na Venezuela, a direita conquistou a maioria da Assembleia Nacional e usou essa base para avançar em seu projeto reacionário.

Mas, como apontamos antes, mesmo essa direita enfrenta grandes dificuldades para consolidar seu poder e suas políticas. Há na América Latina hoje uma crise generalizada de representação política o que leva a uma divisão na própria burguesia. Isso se dá também no contexto de uma importante resistência de massas diante dos novos ataques aos direitos sociais e políticos dos trabalhadores, povos indígenas, mulheres, jovens e demais setores oprimidos, impostos por esses governos.

O ano de 2017 viu aprofundarem-se essas contradições e essa dinâmica deve continuar no próximo período. A América Latina vive uma conjunção de crise econômica e política de proporções históricas.

De um lado, esgotaram-se os modelos econômicos baseados largamente na exportação de produtos primários e aumento do consumo interno via crédito. De outro, o neoliberalismo duro e puro que tenta se reavivar só tem servido para aprofundar os problemas e contradições em nome do lucro fácil de um punhado de capitalistas.

Do ponto de vista político, os modelos de dominação adotados nesse período também deram claros sinais de esgotamento. Isso vale tanto para os governos “progressistas”, como também para os governos explicitamente de direita que sobreviveram nesse período, como é o caso do governo de Peña Nieto (PRI) no México.

De forma geral, a região vive um impasse em que o velho agoniza, mas o novo ainda não conseguiu nascer. Um contexto como esse abre caminho para todo tipo de “fenômenos mórbidos” (parafraseando Antonio Gramsci), incluindo retrocessos políticos, econômicos e sociais graves.

Longe de estabilizar a situação, a ascensão de novos governos de direita em países como Argentina e Brasil, apenas polarizou mais o cenário político provocando forte resposta dos trabalhadores e do povo. Foi assim com a maior greve geral da história recente do Brasil no dia 28 de abril. Isso se deu também com as grandes mobilizações na Argentina contra as políticas de Macri e a maior mobilização de trabalhadores desde o fim da ditadura no Chile contra o sistema de fundos de pensão privados (AFP), uma luta na qual nossos camaradas jogaram um papel central.

Mas, como as velhas direções sindicais e políticas dos trabalhadores não apresentam um caminho alternativo consequente, muitos ataques foram implementados contra direitos sociais e políticos. O vazio político existente pode ser ocupado por forças reacionárias travestidas de novas ou mesmo por velhas referências apoiadas na tese do mal menor ou menos pior.

A construção do novo na América Latina, capaz de barrar o caminho do retrocesso mórbido, só poderá se dar sob a forma de uma recomposição política e organizativa da esquerda socialista, baseada nas lições dos erros e fracassos do período anterior e numa clara perspectiva anticapitalista e socialista. Contribuir para esse processo é uma tarefa central do CIT na América Latina.

Crise econômica e desigualdade social

Os países latinoamericanos aprofundaram sua dependência da exportação de produtos primários no período anterior e foram duramente afetados pelo fim do boom das commodities e desaceleração do crescimento chinês. O pequeno aumento no comércio mundial e nos preços das matérias-primas em 2017 deve resultar em um crescimento ligeiramente maior das economias na região. A CEPAL estima em 1,2% o crescimento do PIB na América Latina e Caribe e o dobro disso em 2018.

Brasil e Venezuela continuam a figurar entre os países com pior desempenho. No caso brasileiro, depois de três anos de recessão, entre 2014 e 2016, e uma queda acumulada no PIB de 8,6%, as estimativas mais otimistas apontam um crescimento da ordem de 0,7% em 2017. Isso significa apenas que, depois da mais longa recessão desde 1980, o país parou de piorar. Não há nenhuma garantia de que se inicie uma dinâmica de crescimento sólido. O crescimento frágil observado veio principalmente da exportação agrícolas e não há perspectiva de crescimento do consumo interno. Os investimentos ainda estão paralisados. O incerto cenário político das eleições de 2018 complicam ainda mais a situação.

Na lenta e débil recuperação atual, quem mais se beneficia ainda são os mais ricos. O rendimento médio dos mais pobres continua a cair. O desemprego permanece em torno de 12 a 13% e os níveis enormes de subemprego e precarização extrema atinge a grande maioria dos trabalhadores.

No setor público, a situação é de estrangulamento fiscal que tem levado inúmeros estados e municípios a não pagar salários e aposentadorias de seus servidores públicos. Hospitais e escolas vivem uma situação de total sucateamento mesmo em estados centrais como no caso do Rio de Janeiro. Sem recursos do governo federal, 8.239 obras estão paralisadas em quase 4 mil municípios do país.

O cenário de baixo crescimento, associado a juros reais altos e queda nas receitas, fez com que o déficit público permanecesse em alta crescente mesmo com a ascensão de Michel Temer ao poder através de uma manobra golpista justificada em nome da responsabilidade fiscal. Do final de 2014 a julho de 2017, a dívida pública bruta saltou de 56,3% para 73,8% do PIB e pode chegar 80% em 2018. Pelo menos ⅓ dessa dívida pública é vinculada à taxa de juros básica do Banco Central e tem prazos mais curtos.

Se a dívida pública brasileira é uma bomba-relógio em potencial, no caso da Venezuela a situação já começa a atingir uma situação extrema. A Venezuela continua em uma situação de semi-colapso econômico com uma expectativa de nova queda de 8% do PIB em 2017, segundo estimativas da CEPAL. Ao todo são quatro anos de retração econômica acumulando uma queda de 36% do PIB.

Depois de enormes esforços para garantir o pagamento pontual da dívida externa aos credores internacionais, com custos enormes para o próprio povo venezuelano, incluindo o desabastecimento, o governo de Nicolás Maduro está buscando reestruturar a dívida de forma negociada com os credores.

A situação venezuelana ficou muito pior depois das sanções impostas pelos governo Trump, o que já levou a uma situação de default parcial da dívida. O governo venezuelano ganhou tempo ao renegociar com a Rússia uma parcela de 3 bilhões de dólares. Tentará fazer o mesmo com a China. Mas, a ameaça de um default generalizado se mantém e, uma vez concretizada, poderá levar a uma situação ainda mais crítica nas relações do governo venezuelano com o Imperialismo. A Venezuela possui ativos no exterior, incluindo uma filial da estatal petroleira PDVSA nos EUA, que poderiam sofrer sanções mais severas.

Não existe saída para a economia venezuelana do ponto de vista dos trabalhadores e do povo sem passar pela adoção de medidas que rompam com a lógica de acumulação do grande capital no país e na região. Uma moratória soberana das dívidas junto com a nacionalização dos bancos por parte de um governo dos trabalhadores, que utilizasse os recursos para garantir abastecimento, alimentos e remédios para a população, poderia conseguir forte apoio ativo dos trabalhadores venezuelanos e também em toda a América Latina. Isso abriria caminho para uma nova etapa de radicalização e ofensiva dos trabalhadores em toda a região.

O México tem muitas especificidades em relação à maioria dos países da América do Sul. O país sofreu com a queda nos preços e volume das exportações de commodities, mas não da mesma forma que os países mais ao sul. Um pequeno aumento das exportações de petróleo ajudou a economia do país neste ano, mas o grande fator que definirá os rumos da economia mexicana é o andamento das relações com os EUA e o futuro do NAFTA/TLCAN. As ameaças de Trump no início de sua gestão geraram grandes turbulências no México, mas houve pouca concretização desse risco até agora. A economia mexicana ainda vive uma situação de estagnação ou baixo crescimento, sem gerar empregos ou melhorar as condições de vida do seu povo.

O terremoto que atingiu o sudeste do país e a região da Cidade do México em setembro deixou evidente a falência do Estado e a lógica perversa do capitalismo mexicano. A solidariedade e assistência aos atingidos veio dos jovens, trabalhadores e mulheres comuns, diante da inação do governo a serviço dos empresários. Há 32 anos, o terrível terremoto de 1985 representou um divisor de águas na história mexicana e abriu uma nova etapa na luta de classes no país. Há elementos disso também na situação atual.

Contrarreformas, ataques e resistência

Em todos os países latinoamericanos os governos enfrentam a crise retirando direitos dos trabalhadores e do povo. Em praticamente todas as situações esses governos tem se enfrentado com forte resistência popular que, por sua vez, tem sido limitada pelo papel das velhas direções sindicais e políticas dos trabalhadores.

O seguro social e a previdência, em especial, têm sido um ponto chave da luta de classes por todo o continente, iniciando um movimento de massas histórico no Chile, e também está no centro da agenda política dos governos neoliberais da Argentina, Brasil e México.

No Brasil, Temer conseguiu aprovar uma emenda constitucional que congela os gastos públicos por vinte anos. Além disso, aprovou uma contrarreforma da legislação trabalhista que elimina direitos fundamentais conquistados pelo movimento dos trabalhadores desde os anos 1930. É o fato de ter conseguido aprovar essas medidas no Congresso que explica que o governo mais impopular do mundo (apenas 3% de apoio) consiga manter-se. Temer é um instrumento da grande burguesia para fazer o trabalho sujo e depois ser descartado.

Por outro lado, graças à mobilização popular e a permanente crise do governo, com Temer envolvido explicitamente em escândalos de corrupção, o presidente ainda não tem os votos necessários para aprovar uma de suas principais metas, a contrarreforma da previdência social. Se não conseguir votar essa contrarreforma esse ano, é quase impossível que consiga fazê-lo no ano eleitoral de 2018.

Sem a contrarreforma da previdência, a própria emenda constitucional que congela os gastos fica em grande parte inviabilizada, abrindo a possibilidade de que o movimento dos trabalhadores derrube esse ataque brutal no futuro.

Na Argentina, Macri promoveu tarifaços, cortes nos gastos e ataques a direitos, mas teve que ir muito mais lentamente na direção das contrarreformas que pretendia diante da mobilização e insatisfação popular. Depois de obter uma importante vitória nas eleições legislativas de outubro, o governo tenta retomar a ofensiva com um pacote de contrarreformas neoliberais, incluindo um ataque duro aos aposentados e pensionistas e uma contrarreforma trabalhista. Apesar do papel de freio da burocracia sindical, já existem iniciativas de resistência e os embates serão inevitáveis.

O governo de Bachelet no Chile não conseguiu promover maiores retrocessos e teve que adotar uma retórica mais condizente com a vontade das ruas, em particular no que se refere à educação e o sistema de aposentadorias e pensões, dois dos temas que mais mobilizaram os trabalhadores e a juventude chilenos no último período. Mas, o governo de Bachelet manteve uma lógica neoliberal e não atendeu nenhuma das demandas efetivas da população mobilizada em torno a esses temas, gerando enorme desgaste.

No México, o governo Peña Nieto avança com a política privatista no setor elétrico e de petróleo além dos ataques à educação pública, apesar da resistência dos trabalhadores.

A crise e os ataques atingem de forma mais dura os setores historicamente oprimidos, como no caso das mulheres. Em todos os países onde há ataques e retirada de direitos, há também mobilizações das mulheres. Foi assim com a campanha ‘Ni una a menos’ que integrou mulheres de vários países da América Latina. A luta contra o feminicídio produziu manifestações de massas, assim como a luta pelo direito ao aborto e contra o retrocesso na legislação já conquistada.

Esse cenário de crise econômica e desigualdade faz aumentar os elementos de barbárie social. Mesmo representando apenas 8% da população global, a América Latina responde por 33% dos homicídios do mundo. Quatorze dos vinte municípios com maiores taxas de homicídios estão na região.

Outra marca da situação latinoamericana é a gravidade das consequências do modelo agro-extrativista exportador sobre o meio ambiente e as comunidades originárias. Em praticamente todos os países, vemos retrocessos nessas áreas. O extermínio de povos indígenas, o avanço do capital sobre os territórios, a destruição do meio ambiente, são todos resultantes do caráter dependente do capitalismo latinoamericano.

No Brasil, o governo Temer baixou um decreto extinguindo uma reserva natural (RENCA) que cobre uma área de 47 mil quilômetros quadrados em plena área não devastada da Amazônia. Tudo isso para beneficiar empresas privadas de mineração. Como consequência das enormes repercussões negativas de sua ação, foi obrigado a recuar e retirar o decreto. Mas, o problema permanece. Em 2016, o desmatamento da Amazônia cresceu 30%, com quase 8 mil quilômetros quadrados de florestas derrubadas. Essa tendência permanece.

Os governos considerados “progressistas” também se apoiaram em uma concepção agro-extrativista para seu modelo econômico. Foram os governos do PT no Brasil que construíram as usinas de Belo Monte, Santo Antonio e Jirau em plena Amazônia com tantos danos ao meio ambiente, aos povos originários e aos direitos trabalhistas.

Nos dias de hoje, o caso mais marcante é o da Venezuela com o Arco Mineiro do Orinoco, uma área de 112 mil quilômetros quadrados praticamente entregue a 150 multinacionais de 35 países para explorar centenas de milhares de toneladas de minerais por até 40 anos. Com essa política do governo Maduro, são gigantescos os danos ao meio ambiente e à soberania nacional venezuelana, além dos direitos sociais numa área enorme do país.

As ruas e as urnas

Na América Latina, durante esse ano, centenas de milhares de trabalhadores, jovens, mulheres, indígenas tomaram as ruas, fizeram greves, ocupações e todo tipo de lutas em defesa de seus direitos ameaçados pelos novos e velhos governos. Em muitas situações, apesar da demonstração de força, essas lutas não resultaram em vitórias claras. Parte dessas derrotas reflete o fato de que as velhas direções dos trabalhadores insistem em priorizar a disputa eleitoral com políticas conciliatórias em lugar da luta direta.

Entre 2018 e 2019, 14 dos 21 países da América Latina realizarão eleições presidenciais. Entre as mais importantes e que definirão o panorama político geral da região estão as eleições chilenas, cujo segundo turno acontece em dezembro desse ano, a brasileira, venezuelana, mexicana e colombiana em 2018 e a argentina em 2019.

Em países como Brasil e Argentina, o Lulismo e o Kirchnerismo, destituídos do poder político que exerceram por mais de uma década, apostam todas as fichas no terreno eleitoral. Ambos também temem um ascenso da luta de massas que escape ao seu controle e possa causar problemas para seu projeto de retomar o poder em um contexto mais estável.

No caso argentino, a vitória dos aliados de Macri nas eleições regionais de outubro deixou claro o fracasso desse projeto. Essa vitória será utilizada numa nova onda de ataques contra os trabalhadores. Mesmo eleita senadora pela província de Buenos Aires, Cristina Kirchner teve menos votos que o candidato de Macri, Esteban Bullrich, e isso repercute no cenário das eleições presidenciais de 2019.

Nas eleições de outubro, a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT) obteve um resultado expressivo, particularmente se levarmos em conta o cenário difícil de polarização entre o kirchnerismo e o macrismo. Foram 1,5 milhão de votos para candidaturas claramente de esquerda em todo o país. Ao todo, 40 parlamentares de distintos níveis e regiões foram eleitos. Mesmo não sendo um crescimento tão grande em comparação com eleições passadas, o resultado coloca a FIT definitivamente no cenário político argentino.

Ainda assim, a FIT funciona mais como uma frente eleitoral, com presença limitada enquanto Frente no cotidiano das lutas dos trabalhadores.

Chile

O segundo turno das eleições presidenciais chilenas, que acontece em 17 de dezembro, será disputado entre o ex-presidente Sebastián Piñera, explicitamente de direita, e o candidato apoiado pelo atual governo, o senador Alejandro Guillier. Piñera chega com mais votos aos segundo turno e pode voltar ao poder no que seria mais um episódio em que um governo supostamente “progressista” (a coalização Nova Maioria de Bachelet chegou a incorporar o PC chileno) adota políticas de direita, desgasta-se e assim abre caminho para o retorno da direita explícita.

Porém, contrariando todas as pesquisas e as avaliações dominantes na mídia burguesa, o resultado do primeiro turno das eleições deixa claro o espaço que existe para uma alternativa de esquerda que se coloque contra a Nueva Maioria, de um lado, e a direita explícita de outro. A Frente Ampla, encabeçada pela candidata presidencial Beatriz Sánchez, obteve surpreendentes 20% dos votos (1,3 milhão), apenas 2% a menos que o segundo colocado, Alejandro Guillier e tornou-se a terceira força política do país.

O próprio Piñera, que muitos não descartavam vencer a eleição definitivamente no primeiro turno, obteve uma votação muito abaixo do esperado. Foram 36% dos votos contra 22% de Guillier. Pinera chega ao segundo turno, portanto, muito mais fraco do que se esperava.

Ao contrário de um simples “giro à direita” representado pela volta de Piñera ou os quase 8% dos votos obtidos pela candidatura de extrema direita de Kast, a marca das eleições chilenas é o evidente questionamento à ordem política expresso nos votos da Frente Ampla, de um lado, e nos altos índices de abstenção (apenas 49% dos eleitores foram votar), de outro.

O grande desafio hoje é conseguir ocupar de forma consequente o espaço à esquerda existente. A Frente Ampla é uma aliança de partidos e organizações de esquerda muito heterogênea, incluindo reformistas moderados, autonomistas e a esquerda propriamente socialista. As primárias para a escolha da candidatura presidencial da Frente Ampla resultou na vitória da candidata mais moderada, Beatriz Sánchez, contra o candidato mais à esquerda, Alberto Mayol. Em relação ao segundo turno, defendemos que a Frente Ampla deveria agir como a verdadeira oposição, não entrar no governo ou negociar um programa de governo. Chamamos a um voto contra Piñera, o bilionário direitista. Ao mesmo tempo, não podemos simplesmente chamar votos para Guillier, já que ele representa a continuidade dos governos neoliberais anteriores, recusando-se a aceitar as demandas das massas, como: fim da previdência privada (AFP), cancelar as dívidas estudantis, o CAE (crédito com garantias estatais aos bancos) e pôr fim à privatização do sistema de saúde e às abusivas instituições de saúde privadas ISAPRES.

De qualquer forma, a Frente Ampla é resultado direto do ascenso das lutas da juventude e dos trabalhadores chilenos nos últimos anos, incluindo a luta contra o sistema educacional e de previdência social herdados do pinochetismo. Nosso companheiros no Chile, além de participarem como protagonistas na luta por “No + AFP”, foram parte ativa dos debates em torno da Frente Ampla, sempre defendendo um programa baseado na independência de classe dos trabalhadores e no socialismo.

Na Colômbia, em 2018 teremos as primeiras eleições depois dos acordos entre o governo e as FARCs, hoje organizadas como partido legal e renomeadas como “Fuerza Alternativa Revolucionaria del Común”. As eleições legislativas serão realizadas em março de 2018 e o primeiro turno das presidenciais será em maio. A nova FARC deve ter seu dirigente principal Timochenko como candidato presidencial.

Apesar disso, já existe uma crise na implementação dos acordos de paz. Ainda existem mais de mil ex-combatentes que seguem presos, apesar da anistia decretada, e muitos outros tem sofrido represálias e ataques. Somente esse ano, foram registrados 130 assassinatos de líderes de movimentos sociais na Colômbia.

Brasil – riscos, incertezas e oportunidades para 2018

No Brasil, a direção Lulista da maior central sindical do país (CUT) e de grande parte dos movimentos sociais (União Nacional dos Estudantes, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, etc.) aderiu ou capitulou ao projeto prioritário do PT que é eleger Lula nas eleições de 2018. Em nome desse projeto, o próprio Lula desestimulou a luta pelo “Fora Temer” e iniciou um processo de repactuação com setores golpistas do PMDB e outros políticos tradicionais.

O quadro das eleições de 2018 no Brasil ainda está completamente aberto. A crise de representação política, agravada com as investigações de corrupção no âmbito da Operação Lava Jato, a maior iniciativa de investigação e punição de casos de corrupção da história do país, torna o cenário totalmente volátil.

A candidatura Lula tem hoje maioria contundente (oscilando em torno de 35% no primeiro turno) nas pesquisas de opinião em relação a todos os possíveis adversários. Diante da enorme insatisfação popular com Temer, Lula parece ser para muitos a única resposta possível contra esses setores hoje no poder. Isso acontece principalmente depois que uma parcela considerável dos trabalhadores frustrou-se com as derrotas da luta direta durante o ano.

O segundo colocado hoje, com cerca de 13% das intenções de votos, é Jair Bolsonaro, um populista de extrema-direita, militar da reserva e defensor da ditadura e de toda a pauta reacionária na questão dos direitos humanos, ostensivamente anti-feminista, LGBTfóbico, etc. Bolsonaro cresceu no vácuo da insatisfação popular, principalmente das classes médias mais conservadoras, com a política tradicional e a busca de uma saída dura e firme contra o caos atual, a corrupção generalizada e o que identificam como a ameaça da volta do “comunismo”!

A direita tradicional, principalmente o PSDB, está profundamente dividida e nenhum de seus candidatos demonstra bom desempenho eleitoral nesse momento. Nem mesmo a “novidade” representada pelo recém eleito prefeito de São Paulo, João Dória, um empresário que foi eleito por ser visto como alguém de fora do sistema político, parece estar decolando. Dória entrou em conflito com seu mentor, o governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, na disputa para ser o candidato presidencial do PSDB. A queda no apoio a Dória, seja como prefeito seja como candidato a presidente, pode colocar em xeque sua candidatura, mas a disputa interna segue.

O cenário de um segundo turno entre Lula e Bolsonaro aterroriza setores da burguesia brasileira. Lula aposta, com razoável razão, que, nessa situação, uma parte considerável da burguesia teria que voltar a optar por ele diante da incerteza trazida por um aventureiro extremista como Bolsonaro.

Bolsonaro, por sua vez, mesmo mantendo a retórica anti-comunista e, em alguns componentes, proto-fascista, vem tentando buscar aceitação dos setores mais sérios da grande burguesia para credenciar-se como um anti-Lula que não vai oferecer riscos à classe dominante. Ele passou a adotar uma postura mais liberal do ponto de vista econômico, o que é contraditório com sua retórica em defesa da ditadura instalada a partir de 1964 na medida em que os militares brasileiros foram muito mais estatistas e nacionalistas do que seus similares na América do Sul.

Apesar de todo o seu esforço, é muito improvável a unidade da burguesia brasileira em torno de Bolsonaro. Por isso, se nenhum candidato do PSDB mostrar viabilidade eleitoral, não se pode descartar que a burguesia brasileira, utilizando o grande poder do monopólio da mídia, construa uma figura alternativa mais confiável.

Se os resultados da economia não fossem tão ruins, esse nome poderia ser o do ministro da fazenda Henrique Meirelles, uma verdadeira unanimidade nas elites dominantes e até mesmo entre políticos do PT. Meirelles foi presidente do Banco Central durante os governos de Lula e era seu nome para ministro da fazenda de Dilma Rousseff.

Um nome oriundo do poder judiciário, como o ex-ministro do Superior Tribunal Federal Joaquim Barbosa, também poderia cumprir esse papel. Não se descarta que esse nome surja do meio artístico televisivo, como no caso do apresentador de TV, Luciano Huck.

Mas, a candidatura de Lula à presidência está ameaçada pelas condenações que o ex-presidente já recebeu da Justiça no âmbito da Operação Lava Jato. Um dos objetivos fundamentais do setor da burguesia que opera através da Lava Jato é retirar Lula da disputa. Ao mesmo tempo, setores da classe dominante sabem que essa medida arbitrária, poderia provocar uma situação ainda mais polarizada e radicalizada.

Sem Lula na disputa, o cenário se modifica radicalmente. Nessa situação, existe até mesmo a possibilidade de que uma alternativa de esquerda, organizada em torno do PSOL, possa crescer e ocupar parte do vazio deixado.

Reorganização da esquerda brasileira

Se Lula não for candidato, as chances de que o principal dirigente do mais dinâmico movimento social brasileiro hoje, o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), Guilherme Boulos, se apresente como candidato presidencial, aumentam muito.

Boulos é uma figura que, embora mantenha uma relação prioritária com o PSOL (apoiou a candidata presidencial do partido nas últimas eleições), é bem aceita em setores da base social de Lula e do PT. Sua postura é de balanço crítico das gestões do PT e seu projeto de conciliação de classes e manutenção da lógica neoliberal. Mas, combina essa postura com uma defesa enfática da unidade de ação contra Temer e os ataques em curso.

O projeto político de Boulos e da direção do MTST é o de promover um processo de reorganização da esquerda brasileira nos moldes do que se deu com o Podemos do Estado Espanhol, com quem mantém relações políticas próximas. Uma candidatura presidencial estaria a serviço desse projeto. Para isso, ele se filiaria ao PSOL e a partir do PSOL se construiria uma aliança mais ampla de movimentos, ativistas e partidos de esquerda.

Seu projeto é o de superar o Lulismo e o PT pela esquerda, mas também significa ir além do PSOL como o partido existe hoje. Se isso significa ampliar a base social do PSOL e vinculá-lo de forma mais direta às lutas sociais em curso, como as protagonizadas pelo MTST, isso seria excelente. Mas, existe ainda o risco de que nesse processo se incorporem setores oportunistas que se desgarrem do PT e pressionem o PSOL a posições mais moderadas e de capitulação ao Lulismo.

Na opinião de Boulos não faria sentido manter uma candidatura presidencial num cenário em que Lula também disputasse e canalizasse para si todo o voto mais crítico a Temer, como a opção menos pior. Nesse cenário, Boulos não se apresentaria e poderia apoiar uma candidatura do PSOL no primeiro turno. No segundo turno, se houver, haverá uma enorme pressão pelo voto crítico em Lula contra um adversário da direita.

O PT e Lula também tentam influenciar e utilizar o MTST e a figura de Boulos como um elemento de renovação em seu campo político tão desgastado, burocratizado e longe das bases sociais que um dia deram origem ao PT. Apesar disso, o que vale ainda para Lula e o PT são os acordos de cúpula para governar o capitalismo melhor que os capitalistas tradicionais. O PT não tirou nenhuma lição política de sua queda do governo. Para além de uma retórica um pouco mais combativa de um partido que hoje é de oposição, continua defendendo a mesma política adotada no governo.

O fato de Boulos colocar-se publicamente mais próximo de Lula do que se poderia esperar, faz com que setores da esquerda socialista (de dentro e de fora do PSOL) caiam numa caracterização simplista de que ele é parte consciente do projeto Lulista. Esses setores, adotando uma postura ultraesquerdista, entendem a aproximação do PSOL com Boulos como a grande ameaça contra o partido e o risco de sua dissolução no petismo renovado. O risco e a ameaça de capitulação ao Lulismo sempre existiu e existirá no que se refere ao setor majoritário do PSOL. Mas, a melhor política nesse contexto é defender a aproximação do PSOL com o setor mais dinâmico do movimento de massas hoje no Brasil e ao mesmo tempo lutar por uma programa e uma estratégia socialistas nesse processo de reorganização.

A Frente Povo Sem Medo, uma frente de lutas liderada pelo MTST, realizou um amplo ciclo de debates programáticos através de plenárias e consulta via internet em todo o país. Mais de 200 mil pessoas participaram pela plataforma virtual. Apesar de muito heterogênea em sua composição (os debates incluíam desde o PSOL, movimentos independentes até o PT, embora este não tenha jogado peso), o resultado final deve apontar para um programa que reúna as principais demandas dos movimentos sociais de todo o país articulados em torno de uma linha geral em defesa de reformas populares radicais e que aposte na luta de classes como caminho para conquistá-los.

O prazo máximo para uma definição sobre a candidatura de Boulos será o final de março de 2018. O PSOL estará realizando seu Congresso Nacional no início de dezembro e a posição majoritária deve ser a de aguardar para tomar uma decisão até março. A LSR está defendendo que o partido defina a política e o programa para as eleições de 2018 de forma democrática em seu Congresso (que também está marcado por várias irregularidades). Defendemos que se mantenham as discussões com Boulos, mas que o partido também defina um nome alternativo em seu Congresso para que, no caso da desistência da candidatura de Boulos, a definição dessa alternativa não seja tomada por uma pequena cúpula partidária sem discussão.

Venezuela – a polarização continua

Na Venezuela, a vitória eleitoral de Chávez abriu um profundo processo revolucionário. Duas décadas depois, o capitalismo ainda se mantém, com a manutenção de uma economia e Estado capitalista. Isso tem sido acompanhado pelo desenvolvimento de uma burocracia que usa um discurso socialista, mas cada vez mais tende a se tornar independente das massas, acumula privilégios e funde seus interesses com setores da burguesia.

Sob Maduro esse processo tomou um salto qualitativo. O governo ainda fala de socialismo, mas busca gerir o capitalismo em aliança com imperialistas chineses e russos. Como parte desse objetivo, insiste em buscar acordos com setores da burguesia. Isso, num contexto que inclui a queda da renda do petróleo, significa medidas como corte de alguns itens sociais, aumento de preços, redução de milhares de empregos em companhias públicas ou no “Arco Mineira”. O resultado tem sido o enfraquecimento do apoio ao PSUV e o avanço da direita, que ganhou as eleições legislativas de 2015 e foi capaz de organizar mobilizações de massas em setembro-outubro de 2016 e abril-junho de 2017.

O objetivo dessa última ofensiva, que causou mais de 100 mortes, era forçar um golpe de Estado e tomar o poder. Maduro e a burocracia não responderam mobilizando as massas, mas com medidas bonapartistas, dando mais e mais poder politico e econômico aos líderes militares e desenvolvendo medidas clientelistas paralelas para conter o descontentamento social e fortalecer seu controle burocrático sobre o movimento.

A convocação da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) foi parte dessa estratégia. Buscava romper o bloqueio do poder legislativo pelo MUD e legitimar um novo órgão eleito democraticamente, mas estreitamente sob controle da burocracia. A resposta inicial das massas foi muito fria. Tudo mudou com as ações das gangues fascistas, como linchamento e queima de vários ativistas, as ameaças do imperialismo americano e o boicote das eleições pela MUD. Isso levou milhões de pessoas, incluindo setores que tinham caído na apatia, a participar de modo massivo. Um setor muito amplo fez isso apoiando candidatos que eram “chavistas críticos”. Apenas as pressões da burocracia (em alguns casos até mesmo fraude) e a divisão interna entre essas candidaturas dissidentes impediu a vitória de várias delas.

A derrota do plano contrarrevolucionário de tomar o poder abriu uma nova fase na luta de classes. A MUD está dividida e em crise. Ela sofreu com o aumento da abstenção em seus redutos tradicionais e perdeu as eleições regionais em outubro. Isso pode se repetir nas municipais de dezembro. É interessante que a vitória eleitoral do PSUV (18 de 23 governadores) também foi acompanhada do aumento do desconforto e divisões internas, acusações recíprocas de corrupção entre setores da burocracia e importante votação para candidatos críticos. Caracas é um caso paradigmático. As pesquisas davam apoio massivo à candidatura do antigo ministro Eduardo Saman, visto pela base como mais à esquerda e crítico à burocracia se comparado com o candidato apoiado pelo PSUV e o governo.

Embora a capacidade de mobilização e apoio eleitoral da direita hoje sejam muito fracos, a continuidade do desastre econômico gera condições para ela recuperar sua iniciativa. Isso empurra setores das bases chavistas e camadas de trabalhadores, apesar das enormes dificuldades para a atividade política criadas pelo colapso econômico e pelas manobras, coerção e repressão da burocracia, a continuarem buscando uma alternativa. A tarefa dos marxistas é intervir neste movimento defendendo uma frente única da esquerda crítica do chavismo com um programa revolucionário que unifique e mobilize os trabalhadores e pobres para combater a ameaça contrarrevolucionária da MUD, mas também para organizar a luta contra a burocracia e conquistar todo o poder político e econômico para os trabalhadores, abrindo o caminho para a transformação socialista da Venezuela e de toda a América Latina.

México

Em um contexto em que governos tidos como “progressistas” ou de centro-esquerda estão sendo substituídos por alternativas de direita, a situação do México pode caminhar no sentido oposto. O governo neoliberal de Peña Nieto do PRI tem pouco apoio e a insatisfação é generalizada. De outro lado, o partido Morena de Andres Manoel Lopes Obrador (AMLO) tem crescido e aparece como possibilidade concreta de vitória nas eleições de 2018.

As eleições locais de junho desse ano demonstraram que há um forte sentimento por mudanças, apesar dos limites das alternativas de esquerda e das fraudes que são parte estrutural do sistema político mexicano. No estado do México, o PRI perdeu quase a metade dos votos que obteve nas eleições anteriores. As demais alternativas de direita como o PAN e o próprio PRD, que aliou-se com a direita em muitas regiões, não se saíram muito melhor. O Morena tornou-se a primeira força política na região metropolitana e se credencia para a disputa de 2018.

Quanto mais crescem as chances de AMLO, mais se constata um giro à direita em suas posições e nas posições de seu partido Morena. AMLO está reproduzindo o que fez Lula na campanha que o elegeu em 2002, buscando acalmar os mercados de investidores e a classe dominante comprometendo-se a não promover qualquer ruptura. AMLO e o Morena estão distantes das lutas de massas que se desencadearam no México, como no caso da luta dos trabalhadores em educação e outros.

Essa política moderada adotada por AMLO não vai garantir sequer que o esquema de fraudes eleitorais deixe de ser implementado. Somente com a luta de massas, uma candidatura contra as décadas de hegemonia do PRI e as políticas neoliberais do PAN poderia tornar-se viável e ser capaz de enfrentar as fraudes.

O Exército Zapatista de Libertação Nacional e o Congresso Nacional Indígena e o Conselho Indígena de Governo cumpriram a decisão tomada no ano anterior de registrar uma candidatura presidencial de uma mulher indígena. A escolha foi María de Jesús Patricio Martínez, conhecida como Marichuy. Trata-se de uma anticandidatura  e uma campanha para denunciar a situação do povo e as políticas dominantes. Mesmo sem ter grandes consequências, a candidatura do EZLN pode atrair um setor da juventude, principalmente diante do giro moderado de AMLO.

Sentido de urgência

O enfraquecimento e queda das forças políticas “progressistas” na América Latina abriu espaço para uma retomada do peso político da direita tradicional. Mas, diante do fracasso da nova direita, algumas velhas referências de esquerda conquistaram uma sobrevida apesar de serem incapazes de enfrentar os grandes desafios colocados diante dos povos latinoamericanos e de derrotar de forma contundente essa nova direita que se instalou no poder.

Como no caso brasileiro, um possível novo governo de Lula, se de fato vier a acontecer, seria incapaz de atender às demandas populares e conduziria rapidamente o país para uma situação de polarização extrema e grande instabilidade. Se nesse contexto, uma nova esquerda socialista de massas não estiver presente, grande parte dessa insatisfação pode ser canalizada por alternativas de direita não tradicional ou até de extrema direita.

Não temos tanto tempo para nos preparar para um cenário desses e para construir bases sólidas para as forças do socialismo revolucionário na América Latina. É preciso armar nossos militantes com um sentido de urgência para nosso trabalho político revolucionário.

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