Um mundo de crise e polarização

Crescente ameaça da direita e novas oportunidades para uma esquerda radical

Assim como no Brasil, a crise mundial do capitalismo que eclodiu em 2007-08 abriu um período marcado por crise política e grande volatilidade. Eventos como a vitória de Trump nos EUA e a votação pela saída da Grã-Bretanha da União Europeia são exemplos disso. Há uma leitura presente na esquerda de que esses acontecimentos, e outros, confirmam um cenário de uma “onda conservadora” pelo mundo, que também explica a situação atual no Brasil. Porém, essa é uma leitura unilateral do cenário.

Para quem está engajado na luta pela construção de uma alternativa socialista, é fundamental ter uma leitura equilibrada da situação, levando em conta também uma crescente radicalização das lutas no mundo – lutas que incluem a classe trabalhadora voltando a usar ferramentas históricas como a greve geral e a busca por alternativas, que abrem espaço para uma nova esquerda.

Os exemplos e lições desse processo ao redor do mundo trazem elementos importantes para fazer uma leitura mais aprofundada sobre a situação brasileira.

A queda do stalinismo em 1989-91 abriu o caminho para uma ofensiva neoliberal avassaladora, fortalecida pela guinada à direita dos antigos partidos de trabalhadores, que passaram de tímidos defensores de melhorias por dentro do sistema a campeões das contrarreformas neoliberais. Os ataques aos direitos dos trabalhadores, junto ao processo migratório de grande parte da produção industrial para China e o sudeste asiático, enfraqueceram os sindicatos e a resistência dos trabalhadores. Nesse cenário, a onda de propaganda da classe dominante pelo mundo sobre a “morte do socialismo” teve efeito e levou a um retrocesso na consciência sobre a possibilidade de existir uma alternativa ao sistema capitalista atual.

O ponto alto do neoliberalismo passou rapidamente, já que se mostrou incapaz de trazer qualquer melhoria para a maioria da população. Já no final dos anos 1990, vimos uma crescente resistência, como o movimento “antiglobalização”, os Fóruns Sociais Mundiais e, aqui na América Latina, o surgimento dos governos “bolivarianos” na Venezuela, Bolívia e Equador, ou mesmo a eleição de Lula em 2002.

Retomada da consciência socialista

Porém, o processo de retomada de uma consciência socialista, que não só reage às injustiças, mas que também acredita em uma alternativa ao sistema, tem sido mais lenta. O recuo da esquerda revolucionária, onde mesmo a esquerda anti-stalinista foi afetada pelo retrocesso na consciência e a fragilidade das novas alternativas de esquerda têm contribuído para essa lentidão.

Porém, a crise de 2007-08 marcou um novo ponto de inflexão importante, que ajudou a acelerar esse processo, mesmo que continue cheio de contradições. Não foi simplesmente uma nova crise cíclica, conjuntural, mas uma das mais profundas crises da história do capitalismo, que aprofundou também uma tendência de crise política.

Crise no sistema político

Em vários países vemos exemplos do desmoronamento do antigo sistema político. Nos EUA, as pesquisas apontam para mais de 60% da população dizendo que é necessário um terceiro partido. Na Bélgica, o país ficou por 589 dias sem conseguir formar governo em 2010-11. Na Espanha, após as eleições de 2015, o bipartidarismo, que reinava desde os anos 1970, deu lugar a dois novos partidos (Podemos, de esquerda, e Cidadãos, de direita) e foi necessária uma nova eleição e golpe interno no PSOE (socialdemocrata), antes de ser possível formar um novo governo. Na Grécia, o PASOK (socialdemocrata) quase desapareceu e deu lugar ao Syriza.

Existe uma crescente raiva contra o establishment e revolta contra os antigos partidos do poder. Nessa situação, surgem novas alternativas, nos marcos de uma crescente polarização social. Muitas vezes se aposta em figuras novas, que aparentam vir de fora do sistema: a catástrofe ambulante Trump, nos EUA; o comediante Beppe Grillo, na Itália; ou agora Macron, na França. Dória, eleito prefeito em São Paulo no primeiro turno, usou a mesma imagem.

Aonde há alternativas claras de esquerda, uma saída radical vem também ganhando apoio. Porém, onde ainda não surgiu uma alternativa de esquerda que consiga canalizar essa ira, uma direita racista vem crescendo também. Em boa parte dos países da Europa, observamos partidos racistas, de extrema direita e reacionários entre os três maiores partidos. Algumas vezes até saindo em primeiro lugar nas eleições, como na Suíça, ou até mesmo formando governos, como na Hungria.

Onda racista na Europa?

Mas, existe mesmo uma “onda racista” na Europa? Tirar essa conclusão hoje seria um exagero. Mesmo assim, não podemos baixar a guarda diante da ameaça que existe, sim, da extrema direita.

Os partidos racistas têm crescido, principalmente, por conta da política onde os principais partidos, incluindo a “esquerda” socialdemocrata, pregam “solidariedade”, mas aplicam ataques aos trabalhadores, além de tornar cada vez mais difícil para refugiados entrarem na Europa, o que facilita aos racistas transformarem imigrantes em bodes expiatórios.

Em geral, é uma minoria que tem opiniões racistas. A maioria que vota nesses partidos o faz como uma maneira de protestar. Por isso, o apoio a esses partidos é volátil. O partido racista UKIP, por exemplo, caiu de 22% para 5% nas últimas eleições municipais na Grã-Bretanha. Uma grande parte dos eleitores do partido Aurora Dourada, abertamente nazista, na Grécia, dizem ter o Syriza como segunda opção. Vários desses partidos racistas, mesmo os que têm raízes em movimentos fascistas, tentam adotar uma postura mais moderada, para conseguir atrair votos. Marine Le Pen chegou a expulsar o próprio pai, Jean-Marie Le Pen, fundador de sua Frente Nacional, para amenizar o perfil do partido e mesclou retórica racista com defesa dos “direitos sociais” do “povo” (francês, é claro), contra o neoliberalismo.

A grande onda de refugiados para a Europa em 2015 levou a uma enorme mobilização de solidariedade com os refugiados em vários países. Dezenas de milhares de voluntários abriram suas casas, organizaram doações de alimentos e abrigos para os recém chegados, mostrando que o racismo tem ainda uma fraca base. Isso não significa que não é possível o crescimento de um sentimento xenofóbico mais profundo, se essa solidariedade não vier acompanhada de argumentos contra a política anti-imigrantes implementada por quase todos os governos da Europa, em diferentes graus.

Brexit – uma revolta contra a elite

A vitória do Brexit na Grã-Bretanha tem sido vista por muitos como uma confirmação dessa onda conservadora, e até nacionalista. Há sim uma direita nacionalista que é contra a União Europeia (UE), com argumentos de direita. Porém, a UE não tem nada de um projeto “internacionalista”, “pela paz”, etc. Desde o início, tem sido um projeto da classe dominante europeia se juntar para não sucumbir à concorrência dos EUA e Ásia (primeiro Japão e, agora, China). A UE tem sido uma ferramenta poderosa para impor uma política neoliberal e atacar os direitos dos trabalhadores em todo o continente. Isso ficou ainda mais evidente com a última crise e os pacotes de ataques brutais impostos pela UE sobre a Grécia.

O debate antes do plebiscito sobre o Brexit ficou distorcido pelo fato de que a principal figura da esquerda, Jeremy Corbyn, em tentativa de chegar a uma trégua com a direita do partido trabalhista Labour, abandonou sua posição histórica de oposição à UE e fez uma tímida campanha pela permanência na União. Assim, a direção “oficial” da campanha pelo Brexit ficou nas mãos de figuras como o líder do partido racista UKIP. Mesmo assim, muitos sindicatos e ativistas da esquerda fizeram uma campanha por uma saída à esquerda da UE, por uma alternativa realmente internacionalista, mesmo entendendo que muitos iriam votar a favor da permanência por medo do nacionalismo.

Uma análise mais profunda do resultado mostra que a votação não foi vitória de um nacionalismo propriamente dito. Mesmo se uma minoria racista tenha se sentido fortalecida e tenha havido um certo aumento de ataques xenófobos, a votação expressou principalmente uma revolta contra a elite no país. O efeito político não foi de fortalecimento da direita. O UKIP não cresceu e seu líder renunciou. Cameron, líder do partido conservador Tories, também renunciou e quem assumiu não foi o “Trump britânico”, Boris Johnson, mas a Theresa May. E dentro do Labour, vimos a enorme mobilização para defender Jeremy Corbyn da tentativa de golpe por parte da direita partidária.

O influxo de mais de 200 mil novos filiados atraídos pelo discurso radical de Corbyn, que tornou o Labour o maior partido da Europa Ocidental, mostra também que a vitória do Brexit não foi uma avalanche reacionária.

Mas a derrota do Labour nas eleições municipais e a grande vantagem de Theresa May nas pesquisas para as eleições gerais em junho não mostram o avanço conservador? Novamente, a situação é bem mais complexa que isso.

Toda a elite contra Corbyn

A classe dominante e a imprensa britânica têm lançado uma gigante campanha contra Corbyn desde que ele inesperadamente foi eleito líder do Labour em 2015, temendo que ele ganhasse as eleições. Nisso tiveram ávido apoio da direita do Labour. O ex-premier Tony Blair chegou a defender que as pessoas deveriam votar nos liberais ou Tories na próxima eleição, contra o próprio partido. Essa direita do partido representa o processo de aburguesamento da socialdemocracia – Tony Blair foi o principal aliado de Bush na guerra no Iraque.

Seu governo não revogou nenhuma legislação que retira direito dos sindicatos, nenhuma privatização ou qualquer outro ataque implementado pelos governos conservadores. E ainda hoje a direita do Labour, que tem a maioria dos vereadores do partido nos municípios, aplica todos os cortes nos serviços públicos exigidos pelo governo conservador.

De fato, desde que Corbyn foi eleito à liderança do partido, há uma guerra civil dentro do Labour. Mas a postura do Corbyn é de não travar uma luta para derrotar essa direita. Suas concessões e tentativas de acordo só enfraquecem suas posições e dão argumento para a campanha na mídia que o coloca como líder “fraco” e inapto a governar. Theresa May chamou eleições antecipadas para tirar proveito dessa situação e é possível que ela ganhe. Mas, com uma campanha radical e com mobilização de massas, é possível que Corbyn reverta o quadro. Com a primeira semana de campanha e a publicação de um manifesto eleitoral com posições bem à esquerda, Corbyn já diminuiu a grande vantagem dos Tories.

De esquerda, radical e de massas

E é essa a grande lição das campanhas do Syriza, Podemos, Sanders e Mélonchon. É possível ganhar apoio para uma alternativa de esquerda, mas só quando uma campanha é vista como algo realmente radical, e com mobilização de massas.

A campanha de Sanders atraiu milhões, com comícios que juntavam dezenas de milhares, com uma mensagem radical de “revolução política contra a classe de bilionários”. Entre os jovens ele teve grande apoio e muitos concordam com a ideia de que ele conseguiria derrotar Trump, diferente de Clinton, algo confirmado pelas pesquisas. Infelizmente Sanders não foi consequente em sua “revolução política” e não rompeu com os democratas, um dos dois partidos do poder das grandes empresas.

Da mesma forma que tais alternativas de esquerda podem canalizar as insatisfações e levar a luta dos trabalhadores a um salto qualitativo, os vacilos da esquerda, pelo sectarismo ou pelo oportunismo, também podem implicar em um fortalecimento da direita. Na França pudemos observar isso recentemente.

Mélonchon poderia ter ido ao segundo turno

A eleição na França ocorrida em maio deste ano é outro exemplo de que o cenário de revolta contra a elite não necessariamente tende à direita. Novamente há aqueles que veem um exemplo do avanço conservador, com um segundo turno entre o bancário Macron e a racista Le Pen.

Primeiro, é sim uma confirmação da revolta contra a antiga elite. Pela primeira vez desde os tempos de Charles de Gaulle, nenhum candidato da direita tradicional (“republicanos”) ou da “esquerda” tradicional (Partido Socialista) conseguiu chegar ao segundo turno. Porém, a grande surpresa da campanha eleitoral não foi Le Pen, que chegou e tem apoio maior nas pesquisas, mas o avanço do Mélonchon que, com um programa radical, de aumentar impostos para os ricos, sair da OTAN, investir em energia 100% renovável, reduzir a jornada de trabalho e aumentar o salário mínimo, etc. conseguiu mobilizar grandes multidões aos seus comícios. Entre os jovens, Mélonchon foi o mais votado, com 30%.

E ele poderia ter ido ao segundo turno. Os resultados finais oficiais mostram que com os votos das duas outras candidaturas de esquerda, NPA e LO, Mélonchon teria superado Le Pen por 8 mil votos! Infelizmente, esses dois grupos mantiveram suas candidaturas para marcar posição, mesmo com uma minúscula expressão (1,1% e 0,6% dos votos). Imaginem um cenário no Brasil onde um candidato do PSOL tem a possibilidade de superar Bolsonaro e ir para o segundo turno contra Dória ou Marina. A diferença para o cenário político é como o dia e a noite.

A luta vai retornar rapidamente na França. Macron se diz “nem esquerda, nem direita”, mas seu programa é claramente de ataques aos trabalhadores. Ele fez parte do governo do ex-presidente Hollande e foi o arquiteto por trás da contrarreforma trabalhista. Ele é bancário e trabalhou para o histórico banco Rothschild, defende grandes cortes no setor público, incluindo demissão de 120 mil funcionários públicos, retirada da jornada de 35 horas e novos ataques ao direitos trabalhistas.

Unir a luta com uma alternativa política

O grande desafio e a grande lição de todos esses exemplos é a necessidade de construir um movimento que esteja enraizado nas lutas, mas também uma alternativa política em forma de um partido armado com um programa socialista e preparado pra ir até as últimas consequências. Até agora não vimos nenhum exemplo que em grande escala consiga juntar os dois.

Bernie Sanders poderia ter utilizado sua campanha para lançar um novo partido de trabalhadores e romper com os Democratas, o “cemitério dos movimentos sociais”, como é chamado, mas não o fez.

Na França, vimos várias ondas de lutas, como em 2002 e 2006, mas sem uma alternativa política surgindo baseado nesses movimentos. O movimento “França Insubmissa” de Mélonchon buscou força da resistência contra aos ataques aos direitos trabalhistas do ano passado para ter potencial para avançar, mas ainda falta uma base forte nos sindicatos.

Na Grécia, a luta contra os ataques do governo, a partir da política de austeridade imposta pela União Europeia, começou como uma luta sindical.

Chegaram a ser realizadas mais de 30 greves gerais, mas a direção burocratizada dos sindicatos não tinha uma estratégia para derrubar o governo. Primeiro, quando era “seu” governo, do PASOK, mas que o mercado financeiro derrubou. Mas mesmo com o governo de direita as greves gerais convocadas tinham muito mais o caráter de válvula de escape e protestos simbólicos.

Tragédia grega

No começo, o Syriza mantinha os 5% de apoio nas pesquisas, e sem base nos sindicatos. Esgotada a luta sindical, os trabalhadores voltaram para a via política e conseguiram eleger o governo do Syriza. Mas a versão moderna da tragédia grega foi que o governo liderado por Tsipras recuou diante da pressão da União Europeia e continuou com a implementação das medidas de austeridade, mesmo após a grande vitória do “Oxi” (não) ao pacote de cortes.

Não foi só na Grécia, mas também na Espanha, Portugal, Bélgica, Nigéria e na Índia, vimos como trabalhadores realizaram poderosas greves gerais, marcando o retorno da classe trabalhadora como fator fundamental no cenário de lutas, mesmo que ainda com uma limitada expressão política. Porém, todos esses exemplos já dados mostram que há um espaço importante para a esquerda e isso requer que ela aprenda com os acertos e erros.

O Comitê por uma Internacional dos Trabalhadores tem conseguido, mesmo que ainda em pequena escala, mostrar a possibilidade de construir essa alternativa socialista baseada na luta da base. Nos EUA, elegemos a primeira vereadora socialista em Seattle, Kshama Sawant, em 100 anos. Foi uma simbiose da luta por 15 dólares por hora de salário mínimo, e tem continuado junto com o movimento ganhando vitórias importantes, na luta por moradia e outros temas.

Na Irlanda, o Socialist Party, sessão do CIT, tomou a iniciativa de uma campanha de boicote a tentativa de implementar uma taxa d’água, que conseguiu impedir esse ataque, com uma grande maioria da população se recusando a pagar. Baseado nessa luta crescemos de 1 para 3 deputados e fomos “premiados” por isso pela elite com a tentativa de criminalizar essa luta e nossos representantes com o julgamento de Jobstown, que ocorre nesse momento. Mas o fato é que a aliança de esquerda do Socialist Party com outros grupos de esquerda agora tem 6 deputados e chegando a 10% nas pesquisas, o dobro do Labour irlandês.

Classe dominante em crise

Lenin, que liderou a Revolução Russa que completa 100 anos, colocava que a primeira condição para que se abra uma crise revolucionária é uma crise da própria classe dominante, que se encontra incapaz de governar como antes. Essa crise já está presente hoje. A votação pela saída da Grã-Bretanha da União Europeia é uma derrota para o principal projeto da classe dominante no continente. O governo de Trump é um fator para desestabilizar o mundo inteiro, causando crises dentro da classe dominante. A demissão do chefe do FBI, James Comey, e a entrega de informações de inteligência para o governo russo abriu uma nova crise. Já se discute a possibilidade de um impeachment de Trump.

Vivemos um mundo marcado pela instabilidade e crise, com mudanças bruscas. Uma leitura equivocada da conjuntura, falta de flexibilidade tática, junto à falta de ousadia programática por parte da esquerda pode levar a perda de oportunidades. Há grandes riscos na situação, mas também grandes oportunidades, um período de corrida entre a revolução e a contrarrevolução.