Uma nova etapa da luta de classes na América Latina
A crise do lulismo e do chavismo exige a construção de uma nova esquerda socialista e revolucionária na região.
Desde a virada do século, a América Latina protagonizou alguns dos embates sociais mais duros contra o neoliberalismo em todo o mundo. Partidos e figuras autoproclamadas de esquerda alcançaram o poder em vários países dividindo-se basicamente entre duas experiências emblemáticas.
De um lado, parcelas da burguesia e do imperialismo, assim como as direções burocratizadas do movimento sindical e popular, aclamavam o modelo moderado, de conciliação de classes e continuísmo neoliberal com mais preocupação social, representado pelo “lulismo”.
De outro, uma parte substancial da esquerda olhava para Chávez e a Venezuela como alternativa mais radical e coerente com os propósitos de transformação social.
Nos dias de hoje, no entanto, ambos os modelos vivem uma profunda crise. Nessa situação, a direita mais reacionária tenta ocupar espaço. Porém, com base em um balanço crítico dessas experiências e na força da resistência dos trabalhadores e do movimento de massas é possível reconstruir a esquerda sobre um novo patamar.
Dependência de produtos primários
O fim do ciclo dos super preços dos produtos primários exportados pelos países latino-americanos, como resultado principalmente da desaceleração e crise da China, afetou duramente toda a região.
Nenhumas das experiências recentes na América Latina, nem mesmo as mais radicalizadas como a de Chávez na Venezuela, rompeu com a dependência externa e subordinação à lógica econômica capitalista internacional.
Como resultado da luta de classes, da pressão popular e dos processos políticos em países como Venezuela, Bolívia e Equador, o que fizeram os governos autodenominados “bolivarianos” foi redistribuir de forma relativamente mais justa a renda dessas exportações.
Em 2013, os produtos primários representaram 73% das exportações da América Latina para a China. Manufaturas representaram apenas 6%. Por outro lado, 92% das importações da China foram de produtos manufaturados.
Nenhum país latino-americano hoje está preparado para a nova situação de agravamento da crise capitalista. Momentaneamente, países como o México, mais atrelado à economia dos EUA do que da China, podem sofrer menos com o fim do boom das commodities. Mas, está fadado ao mesmo destino diante da fragilidade da recuperação dos EUA.
A Venezuela é o país que mais está sofrendo por duas razões fundamentais: o colapso do preço do petróleo de um lado e a estagnação de uma “revolução” que ficou no meio do caminho e acabou retrocedendo.
É verdade que a sabotagem da burguesia contra o governo venezuelano é parte da crise. Mas, esse argumento é usado pelo governo de Maduro apenas para justificar sua incapacidade de responder aos ataques e não para tirar conclusões sobre como enfrentar a burguesia.
No caso do Brasil, a base para o pacto social lulista ruiu definitivamente com a crise econômica. Com isso, a burguesia busca um instrumento mais eficaz capaz de impor ataques e derrotas aos trabalhadores. Dilma tentou convencê-los de que seu governo ainda servia para isso e baseou nisso sua estratégia contra o impeachment, promovendo retrocessos estruturais como as contrarreformas da previdência e fiscal.
Giro à direita generalizado?
Isso significa a inevitabilidade de um giro à direita generalizado na região? Se nosso critério for apenas o dos resultados eleitorais no último período, poderíamos tirar essa conclusão.
A vitória eleitoral de Mauricio Macri na Argentina representa o retorno da direita abertamente neoliberal ao poder. Na Venezuela, a vitória eleitoral da “Mesa de Unidade Democrática”, alcançando a maioria na Assembleia Nacional, também representa uma vitória emblemática da direita.
Porém, não estamos diante de uma reedição da década de 1990. Naquele período houve sim uma direitização na região e uma clara hegemonia do neoliberalismo com governos como o de FHC no Brasil, Menem na Argentina, Goni na Bolívia, Fujimori no Peru, etc.
O voto na direita em alguns países hoje é, em grande parte, um voto de protesto contra os atuais governos em um contexto de falta de alternativas pela esquerda.
Nas eleições venezuelanas, a oposição de direita cresceu em 400 mil votos e o chavismo perdeu 2 milhões em relação às eleições de 2013. Ou seja, não foi bem a direita que ganhou. Foi o chavismo que perdeu.
Foi um voto contra um chavismo degenerado, uma burocracia corrupta e uma “boliburguesia” que se contrapõe aos interesses populares.
No caso argentino, o esgotamento do modelo K, dos Kirchner, já vinha de antes. O candidato kirchnerista contra Macri, Daniel Scioli, por si só já representava um giro conservador do kirchnerismo.
Porém, nos casos de Argentina e Venezuela não existe caminho fácil para a direita neoliberal. Macri já se enfrenta com uma forte resistência a seus ataques e não haverá estabilidade em qualquer país aonde um governo abertamente de direita venha a se instalar.
Em relação à Venezuela, o cansaço popular com a degeneração do chavismo não pode ser subestimado. Mas ainda existem reservas de energia que vem de um processo extremamente importante de luta popular no país.
Ao contrário dos anos 90 onde havia uma base de apoio para as políticas de estabilização econômica, que embutiam em si as políticas neoliberais mais duras, hoje não há apoio popular a privatizações ou retirada de direitos.
Um exemplo disso é que Dilma só conseguiu vencer a direita tucana em 2014 porque adotou um discurso que denunciava os ataques neoliberais que Aécio Neves adotaria se vencesse. Grande parte da insatisfação generalizada existente hoje é resultado do fato de que Dilma está implementando a fundo esses mesmos ataques.
É claro que a manipulação midiática do tema da corrupção pode levar um setor, principalmente as classes médias, a engolir a ladainha de que privatizações e cortes nos gastos seriam parte da solução.
Mas, essa visão não está fadada a ser hegemônica. Ela pode ser contida pela resistência de massas contra esses ataques, junto com a reconstrução de um programa coerente por parte de uma esquerda socialista reconstruída sobre novas bases.
Bolívia seguirá também caminho de crise
A relativa estabilidade do governo Evo Morales na Bolívia, em comparação com Brasil e Venezuela, poderia criar certas ilusões nesse modelo. Mas, o “sucesso” de Morales é um resultado momentâneo do fato de que as principais forças oposicionistas de direita foram incorporadas ao governo e ao MAS (partido de Morales), diminuindo seu potencial desestabilizador. Mas, isso não vai durar.
Evo Morales conseguiu canalizar o processo revolucionário da guerra da água (2000) e do gás (2003 e 2005) e os duros embates de 2008, quando o país quase caiu numa guerra civil, para uma via institucional mais controlada. Combinando importantes avanços sociais com concessões às elites, Morales manteve sua base de apoio. Entre 2005 e 2014, a pobreza caiu de 53% a 29%.
O papel estabilizador de Morales aos poucos convenceu a burguesia sobre sua funcionalidade para os interesses da classe dominante.
Aos poucos, a base de sustentação do governo foi se alterando na medida em que cresciam os choques do governo com setores de sua própria base social. Em 2010, Morales tentou aumentar os preços dos combustíveis e teve que recuar diante da mobilização que provocou. Logo em seguida houve o conflito do território indígena de TIPNIS quando a base indígena organizada rompe com Morales.
Em maio e junho de 2013 aconteceram as greves gerais contra a nova lei de pensões cuja derrota afetou seriamente a Central Obrera Boliviana (COB) e acabou por fortalecer seu atrelamento ao governo. Com isso, Morales conseguiu desarticular a formação de um Partido de Trabalhadores que estava em curso e desmoralizou parte dos movimentos sociais.
Em 2014, Morales venceu sua terceira eleição consecutiva com 61% dos votos e conquistou dois terços do Congresso. Mas, o colapso nos preços do petróleo e a profunda crise da economia brasileira e argentina se farão sentir duramente na Bolívia em breve.
A recente derrota de Morales no referendo de fevereiro sobre o direito de disputar uma nova reeleição já indica um cenário de mais dificuldades para o MAS e abrirá uma nova etapa muito mais conflitiva na Bolívia.
Construir uma nova esquerda socialista
O novo ciclo latino-americano será marcado pela crise econômica, instabilidade política e inevitável reemergência das lutas sociais massivas e radicalizadas. A tarefa estratégica nesse contexto é construir uma esquerda que tenha tirado todas as lições dos erros e traições do lulismo e dos limites do chavismo.
Para isso, não basta proclamar-se como alternativa. Será necessário disputar a base social que se descola desses modelos antes hegemônicos e que, na ausência de claras alternativas, encontraram alguma sobrevida.
Isso passa por construir uma política capaz de enfrentar a direita que tenta retomar espaço. Mas, fazer isso não significa aceitar a lógica do mal menor. É preciso também contrapor à traição e degeneração das velhas alternativas de esquerda uma organização independente e um programa que ligue as aspirações concretas das massas à necessidade de ruptura com o sistema capitalista em crise.