Votar nulo no 2° turno e construir um ‘3° turno’ das lutas
Os resultados do primeiro turno das eleições de 2006 refletem as contradições do momento atual do ponto de vista dos trabalhadores e da esquerda socialista. Apesar de todas as dificuldades no processo de tomada de consciência e relação de forças na sociedade geradas pela perda do PT como instrumento de transformação social, a esquerda socialista mostrou vitalidade no processo eleitoral.
A simples existência da Frente de Esquerda e de uma expressiva candidatura presidencial oposta tanto ao atual governo como à direita mais tradicional já representou um passo significativo para a recomposição da esquerda socialista brasileira. Mesmo com os limites e contradições surgidas desse processo, a candidatura de Heloísa Helena, junto com muitas candidaturas nos estados, cumpriu esse papel. Os quase sete milhões de votos de Heloísa foram conquistados contra enormes obstáculos e dificuldades, mas mostraram que a esquerda não morreu com o PT e continuará sendo um fator importante no cenário nacional.
Nós do Socialismo Revolucionário (SR), tendência do PSOL, nos orgulhamos de ter feito parte dessa grande batalha. Desde a fundação do partido até o dia da boca de urna, passando pelo esforço da legalização, da construção dos Núcleos, fomentando o debate interno e o funcionamento das instâncias, nos engajamos no projeto de reconstrução da esquerda socialista no Brasil representado pelo PSOL.
Ainda assim, é conhecida a posição do SR defendendo uma outra linha de campanha, com outro eixo programático e outra concepção e funcionamento para o PSOL nesse período.
Entendemos que o partido pagou o preço da não clarificação política que a realização de seu primeiro congresso ainda esse ano, mesmo que parcialmente, poderia proporcionar. Reforçou-se a tendência a um retrocesso político e organizativo do PSOL em relação ao seu projeto original de partido socialista amplo, democrático e militante. O processo eleitoral, nos marcos do regime político burguês, exerceu uma pressão poderosa na direção de nos transformar em algo parecido a uma mera legenda eleitoral. Nem mesmo os eixos programáticos da Conferência Nacional, com todos os seus limites, serviram de base para a campanha presidencial. É preciso continuar a luta para barrar esse retrocesso e retomar o projeto original do PSOL.
O segundo turno nos coloca diante uma série de questões que serão fundamentais para aquilo que pode se configurar como um ‘terceiro turno’, aquele que será disputado nas ruas, nas greves, ocupações e mobilizações contra o futuro governo, seja ele qual for. Da posição que o PSOL assumir também poderemos deduzir relevantes conseqüências para a próxima etapa na construção do partido e da recomposição social e política da esquerda brasileira.
Lula não é um mal menor
Não há como optar por qualquer dos candidatos que disputam o segundo turno para todos aqueles que vão lutar contra a terceira etapa da reforma neoliberal da previdência, contra a reforma trabalhista e sindical, contra a prorrogação da DRU e os cortes nos gastos com educação, saúde, etc, somente para pagar a dívida aos especuladores, sacrificando assim o crescimento e a verdadeira distribuição de renda.
Ainda assim, uma parcela significativa dos trabalhadores e mesmo de ativistas dos movimentos sociais está pensando em tapar o nariz e votar em Lula como o “mal menor”. Agindo assim, pensam que poderão barrar a direita mais tradicional e, de alguma forma, criar obstáculos às políticas neoliberais.
Podemos até entender que uma parcela dos trabalhadores pense assim uma vez que a experiência terrível do governo FHC e mesmo do governo Alckmin em São Paulo ainda estão muito vivas na consciência de milhões. Porém, não podemos concordar com essa visão e temos o dever de explicar que um novo governo de Lula será tão nefasto quanto o de Alckmin e que não podemos colaborar de nenhuma forma com qualquer um dos dois.
Lula utilizou seu passado de esquerda como o principal mecanismo para conter as lutas sociais e aplicar uma política cuja essência beneficia o grande capital, em especial o financeiro. Mas, a máscara de esquerda de Lula já vinha caindo há muito na lama podre da corrupção e do neoliberalismo de seu governo. A crise do mensalão de 2005 ajudou a impedir que o governo avançasse mais na reforma trabalhista, por exemplo. Um voto em Lula hoje, supostamente para barrar a direita, só serviria para recuperar, mesmo que parcialmente, as falsas credenciais de esquerda desse governo. Isso será usado contra nós novamente nos próximos quatro anos.
No segundo turno, onde não existe uma real alternativa de esquerda, nosso objetivo só pode ser o de denunciar ambas as candidaturas, explicando o que já fizeram e o que pretendem fazer. Junto com isso, precisamos defender o voto nulo como posição política legítima e vinculada a um plano de ação para resistir aos ataques e a um programa alternativo anti-capitalista e socialista.
Mesmo sabendo que Alckmin não representa qualquer alternativa, todo o contrário, a simples realização de um segundo turno, já representou um forte elemento de derrota que enfraquece Lula e o PT. Não seria aceitável que colaboremos para tentar recuperá-los do tombo que tiveram. Vão usar isso contra nós no futuro.
Além do mais, é o próprio PT que traz a direita mais carcomida para dentro de seu governo. Foi assim no primeiro mandato e será ainda pior se houver um segundo. Nas mesas de negócios da grande burguesia já se discute até como promover uma reorganização política da classe dominante que possa até levar a uma aproximação entre o PT e parte do próprio PSDB! Na verdade, são dois lados da mesma moeda neoliberal.
Se FHC promoveu a nefasta ‘privataria’ entregando estatais aos interesses privados em troca de moedas podres e favorecimento de certos grupos, Lula sequer questionou esses procedimentos e forneceu um atestado de idoneidade a FHC, pois faria o mesmo. Na verdade, fez muito parecido ao aprovar as PPPs (Parcerias público-privadas, o modo petista de privatizar), manter os leilões da Petrobrás, transferir recursos públicos para os donos de faculdades privadas.
Nem sequer em relação à política de relações internacionais pode-se dizer que Lula representa um progresso. O pupilo de Bush mantém tropas no Haiti reprimindo a população e garantindo os interesses do imperialismo, enquanto os EUA ficam livres para cuidar do Iraque e do Afeganistão. Lula joga um papel claro no sentido de buscar a todo custo segurar os processos de radicalização das lutas na América Latina, como no caso da Bolívia e Venezuela.
Do outro lado, Geraldo Alckmin e a coligação PSDB/PFL representam o que há de mais podre na classe dominante brasileira. Não possuem nenhuma autoridade para denunciar a corrupção de hoje se foram eles mesmos os criadores dos esquemas que o governo Lula apenas recebeu de herança e manipulou a seu favor. Os presidentes do PSDB e do PT, Azeredo e Genoíno, caíram pela mesma razão. Estão juntos tanto na corrupção como no neoliberalismo.
A forte denúncia de Alckmin e sua política contrária aos interesses do povo precisa ser acompanhada da denúncia do próprio Lula como um irmão, talvez não idêntico, mas que deixou claro que hoje tem correndo em suas veias o mesmo sangue.
Exigências a Lula?
A preocupação em abrir um diálogo com o expressivo setor dos trabalhadores e mesmo dos ativistas dos movimentos sociais tem levado um conjunto de companheiros e companheiras a defender uma política de exigências à Lula. Uma parte desses militantes até acredita que seria possível assim incidir sobre o futuro governo contendo sua faceta mais neoliberal. A maioria, porém, apenas deseja dessa forma encontrar um método pedagógico para explicar porque não podemos apoiar Lula.
Ambas as visões estão equivocadas em nossa opinião. A idéia de que o governo Lula, atual ou futuro, seria um governo em disputa já foi negada pela realidade concreta. Lula aprofundou as políticas neoliberais de FHC e seus métodos corruptos de atuação. Aqueles dirigentes da esquerda petista que insistiam na idéia de um governo em disputa fracassaram completamente, perderam seu espaço no partido, descaracterizaram-se totalmente e, em sua maioria, acabaram adaptando-se à lógica viciada do partido. O que havia de melhor entre os quadros da esquerda petista já rompeu com esse partido e aderiu ao PSOL.
O problema com a posição daqueles que querem fazer exigências a Lula apenas para provar que ele não aceitará é que acabariam fomentando ilusões nas possibilidades de disputa da candidatura Lula ou de seu novo governo. A campanha de Lula não fala explicitamente em reforma da previdência e diz que sua reforma trabalhista será em benefício dos trabalhadores. Temos que desmascarar as verdadeiras intenções de Lula não com base no que dizem, mas com base no que já fizeram e deverão continuar a fazer.
Achamos que é correta a preocupação do diálogo com a base social que ainda tem alguma ilusão em Lula. Mas, da mesma forma que rejeitamos a idéia de que o governo Lula estava em disputa e enfrentamos todo o risco de isolamento quando decidimos formar o PSOL, também agora temos que manter a coerência. Se, em parte, nadamos contra a correnteza agora, no futuro poderemos ganhar o apoio daqueles que sentirão na carne que estávamos corretos.
Somente as lutas poderão barrar a direita
O grande desafio da esquerda socialista no próximo período é construir a unidade dos sindicalistas combativos, dos ativistas de luta do movimento estudantil, popular, camponês e de todos os atingidos pelas políticas neoliberais e a crise capitalista e organizar um grande movimento unitário contra as reformas e os ataques dos patrões e governos.
É nesse terreno que poderemos efetivamente barrar a direita, seja ela tucana ou petista. Nossa posição no segundo turno deve estar a serviço da organização dessa resistência. Devemos seguir o exemplo da heróica greve dos bancários, generalizar e unificar as lutas em torno de nossas reivindicações e ligando-as a uma alternativa anti-capitalista e socialista.
A convocação de um grande Encontro Nacional dos Trabalhadores em 2007 e a construção de um plano unitário de ação para a resistência são tarefas vitais para todos os militantes do PSOL.
Da mesma forma, devemos buscar construir uma Frente de Esquerda também nas lutas e não apenas nas eleições.
Fomentar o debate pela base e reconstituir as instâncias do partido
Diante da urgência de uma definição que oriente a base social do PSOL em relação ao segundo turno e nos coloque como sujeito ativo na conjuntura, é fundamental que o partido tome posição.
Ao mesmo tempo, é preciso investir na reconstituição das instâncias do partido, semi-dissolvidas pela pressão eleitoral. Essa é uma das tarefas fundamentais do próximo período e vale para a Executiva e o Diretório Nacional, mas também para as instâncias de base, os Núcleos, as Comissões de juventude, mulheres, as Plenárias, etc.
A resolução de 03/10 adotada em nome da Executiva Nacional, em termos de conteúdo, adota uma linha correta quando rejeita o apoio a qualquer dos candidatos, Lula ou Alckmin. Mesmo não defendendo o voto nulo de forma explícita, a denúncia de ambos os candidatos joga um papel progressivo para a manutenção de um perfil coerente para o PSOL.
No entanto, do ponto de vista do método e funcionamento do partido, algumas observações são necessárias. Em primeiro lugar, esclarecemos que, mesmo tendo representação na Executiva Nacional do PSOL, não fomos convocados e, portanto, não participamos das discussões e da tomada de decisão. Queremos aqui, portanto, reafirmar nossa posição.
Sempre defendemos que os parlamentares e figuras públicas do PSOL tivessem seu posicionamento público controlado pela base do partido. Ao mesmo tempo, entendemos que, como partido em construção e com a pluralidade de visões internas, não se poderia neste momento exigir total centralização. Ainda assim, algum grau de controle é necessário mesmo na fase atual do partido. Afinal, a postura de um parlamentar na imprensa ou mesmo no voto no parlamento acaba aparecendo como a posição do partido como um todo.
Isso fica ainda mais grave em questões vitais como esta do segundo turno das eleições presidenciais. Seria extremamente negativo e desagregador para o partido que parlamentares do PSOL aparecessem publicamente declarando apoio, mesmo crítico, a Lula.
No entanto, é fundamental que haja um debate efetivo na base do partido sobre esta questão. Tanto no passado, como agora, não temos visto nenhuma disposição de promover esse debate por parte das maiores correntes e da maioria da direção do PSOL. Precisamos reconstruir as instâncias e abrir o espaço para o amplo debate na base sobre o balanço do processo eleitoral e as tarefas do próximo período. Assim, poderemos tirar também um saldo positivo em termos de construção e organização, os elementos chave para enfrentar os desafios que teremos daqui pra frente.