Uma análise da situação na Venezuela
No dia 12 de fevereiro (o “12F”), três pessoas – dois manifestantes da direita e um apoiador do governo – foram mortos em Caracas, e mais dezenas foram feridos ou detidos nos protestos e manifestações que aconteceram ao redor da Venezuela. Nos dias seguintes, já foram mais três mortes.
Muitas imagens vem surgindo nas redes sociais nos últimos dias, supostamente mostrando agentes do SEBIN (Serviço Bolivariano de Inteligência, a agência de segurança da Venezuela) como sendo os responsáveis por essas mortes. Existem muitos rumores sobre “agentes provocadores” e “infiltrados” nos protestos.
Nos dias após o 12F, houve protestos grandes e pequenos, chamados tanto pelo governo quanto pela direita. Marchas de apoiadores do governo e da oposição direitista são comuns no país, entretanto, a violência gerada pela direita reacionária nos últimos protestos marca o início de mais uma fase crucial para os trabalhadores e os pobres no processo bolivariano.
Maduro chamou os protestos de “um golpe em andamento”, e muitos da esquerda traçaram um paralelo entre as manifestações atuais e os eventos que levaram ao golpe contra Chávez em 2002. Um mandado foi expedido contra Leopoldo Lopez, líder reacionário envolvido no golpe de 2002, e o próprio se entregou à polícia no dia 18. Entretanto, a direita tem tentado vender os protestos como uma luta pela “liberdade” contra uma “ditadura” que causa todos os problemas do mundo, incluindo inflação, crime e corrupção.
Certos líderes da direita dizem que estes são protestos “populares” que representam a maioria dos venezuelanos. Alguns setores da esquerda até disseram que os protestos são representativos do “descontentamento geral” que existe em todos os setores da sociedade. Um grupo foi até mais longe, e fez um chamado por uma frente unida de todos os setores para lutar juntos por um governo dos trabalhadores – aparentemente alheio ao fato de que as duas classes lutam por motivos completamente diferentes.
No último ano, houve vários protestos exigindo direitos trabalhistas, direito à moradia ou combate ao crime, por exemplo. Também houve ocupações de fábricas por trabalhadores, e operários pedindo ao governo para intervir, nacionalizando essas indústrias e colocando-as sob o controle democrático dos trabalhadores. O CIT e a Socialismo Revolucionário relataram sobre várias dessas situações. Mas aqueles protestos e seus participantes diferem muito das manifestações dos últimos dias.
Também existem diferentes opiniões dentro da esquerda, tanto na Venezuela quanto internacionalmente, sobre qual posição os socialistas revolucionários devem tomar e o que fazer para combater mais uma ameaça da direita.
Outro golpe?
Durante um pronunciamento na TV no dia 16 de fevereiro, Maduro disse que existem dois setores distintos da direita: um que esconde seu apoio aos protestos e tenta se apresentar como “democrático”, e outro que chama abertamente por um golpe, com apoio dos EUA.
Ainda que exista quase nenhuma dúvida sobre o papel do imperialismo norte-americano, há grandes diferenças entre os acontecimentos atuais e o que houve em 2002, particularmente em relação à direita e seus apoiadores, e também ao papel dos militares.
Após anos de derrotas eleitorais, depois das falhas das táticas reacionárias de golpe e sabotagem econômica, a direita levou anos para se reorganizar. Em 2012, pela primeira vez, conseguiram se “unir” para escolher um candidato de consenso, Henrique Capriles Radonski, para disputar as eleições presidenciais contra Chávez. Os direitistas deixaram para trás a idéia de golpe e passaram a abordar as questões que afetam diretamente a classe trabalhadora e que não foram resolvidas pelo governo chavista, como a falta de moradia, o aumento do crime e a crise econômica.
Apesar de terem perdido as eleições, a direita conseguiu seis milhões de votos e anunciou que iria continuar lutando “democraticamente” por todos os venezuelanos. As eleições seguintes, em abril de 2013, após a morte de Hugo Chávez, tiveram uma diferença de apenas 200 mil votos entre Capriles e Maduro. O resultado foi contestado pela direita, e as táticas empregadas pelos diversos grupos começaram a deixar claro as diferenças dentro da coalizão de oposição, a “Mesa da Unidade Democrática”. De um lado ficou o “democrático” Capriles e, do outro, os mais reacionários: Leopoldo Lopez e Maria Carolina Machado.
A diferença entre esses dois grupos foi se mostrando mais clara nas últimas semanas e meses, e tanto Lopez e Machado fizeram chamados para diversos atos, culminando no 12F. Eles chamaram a manifestação de “A Saída” (no sentido de “saída do regime chavista”). Enquanto isso, os direitistas “mais democráticos” escreviam editoriais nos jornais sob seu controle, alertando que essas ações iriam resultar no fim da direita novamente e que as lições de 2002 precisariam ser levadas em consideração.
No último período, a direita moderada tem se preocupado em se distanciar dos protestos que foram iniciados por pequenos grupos de estudantes, nos quais prédios públicos foram atingidos. Ironicamente, esses grupos fizeram esses protestos em seus próprios bairros, irritando quase que exclusivamente sua própria classe… Muitos disseram que esses atos de violência foram obra de “infiltrados”, mas levando em consideração que esses protestos ocorreram ao longo de cinco noites consecutivas, seria ingênuo achar que “infiltrados” seriam capazes de continuar se organizando repetidamente numa situação dessas.
Mas até mesmo os protestos diários de centenas de estudantes, como aqueles que aconteceram na praça principal do bairro de classe média alta de Altamira, em Caracas, não encontraram apoio da população dos bairros ao redor. Enquanto o protesto bloqueava a avenida principal, que também é uma das mais importantes vias da cidade, as pessoas continuavam a ir ao trabalho, almoçar, seguiam suas vidas e ignoravam a manifestação. Enquanto a marcha direitista por “paz” e pela libertação de estudantes detidos atraíram milhares de pessoas, o apoio à direita reacionária é mais limitado. Isso é completamente diferente das demonstrações e atos massivos que a direita organizou logo antes do golpe de 2002. Naquela época, um ato na praça de Altamira teria uma grande participação.
Obviamente, essa situação é volátil, e devemos estar cientes disso. A prisão de Lopez, por exemplo, ou a repressão às manifestações de estudantes que acontecem à noite, podem levar mais simpatizantes da direita a apoiarem medidas mais reacionárias. É possível que aconteçam mais protestos, mas é mais provável que eles continuem concentrados nesses mesmos bairros – que, coincidentemente, são governados no nível local e no nível estadual pela direita.
Outra distinção importante que devemos fazer em relação ao golpe de 2002 é o papel dos militares. Em 2002, uma parcela do exército apoiava a direita mas, desde então, o chavismo conseguiu consolidar o apoio dos militares por diversos meios. No momento, eles em sua maioria apoiam o governo, e é pouco provável que deserções seriam toleradas.
Protestos, descontentamento e a questão de classe
Não é segredo que existe um grande descontentamento na sociedade por uma gama de questões, como a crise econômica, falta de moradia e aumento do crime. Nós concordamos com essa insatisfação, mas a diferença como essas questões são sentidas pelas diferentes classes na sociedade e suas subseqüentes demandas não poderiam ser mais distintas. O impacto da crise econômica no país, por exemplo, é muito maior na classe trabalhadora do que na classe média alta e na burguesia.
Como sempre aconteceu na história, são os pobres e os trabalhadores os mais prejudicados pela crise econômica. A maior parte dos venezuelanos hoje passam sufoco para chegar ao fim do mês. O salário mínimo subiu anualmente (45% só em 2013), mas não conseguiu acompanhar a inflação (que foi, oficialmente, de 56% no último ano). A inflação atinge o preço de tudo, de papel higiênico a uniformes escolares. E o aumento é bem maior nos bens de consumo e nos alimentos que não têm preço tabelado pelo Estado (ou seja, a maior parte dos alimentos não-essenciais).
Durante o governo Chávez, houve várias reformas impulsionadas pela base que causaram uma queda enorme na extrema pobreza. Entretanto, o chavismo, por razões que já explicamos em outros artigos, não realizou uma ruptura com o sistema capitalista. Por conta disso, as reformas ficaram muito vulneráveis, o que é um problema para um país que depende em alto grau do dinheiro gerado pela venda de petróleo.
Por conta da crise econômica global, em 2009, o preço do petróleo nos mercados internacionais caiu quase pela metade, o que levou a cortes nas reformas. Isso atingiu em cheio os mais pobres, que sofreram com reduções nos programas sociais e de saúde.
Hoje, são os pobres que formam fila desde a madrugada, dia após dia, para conseguir atendimento médico gratuito. Enquanto isso, nos bairros mais ricos de Caracas (governados por conselhos distritais dominados pela direita), as pessoas fazem fila com seus bichinhos de estimação para utilizarem um serviço gratuito de veterinário…
São os estudantes pobres, das escolas públicas, que sofrem com a falta de professores. E são esses estudantes que continuam sofrendo com falta de acesso às universidades públicas. A Venezuela tem a maior taxa de gravidez na adolescência na América Latina, e são as garotas pobres dos “barrios” e das áreas rurais que têm as maiores chances de engravidar e abandonar a escola. Também são as meninas que, mais freqüentemente, vivem em moradias precárias e pouco seguras, enquanto aguardam uma casa pelos programas de moradia.
Os trabalhadores e os pobres formam a maioria dos venezuelanos e, apesar do apoio ao governo ter diminuído por conta desses problemas, eles também sabem que um retorno aos governos de direita não iria melhorar sua situação.
O processo bolivariano marcou na classe trabalhadora a idéia de que retornar ao passado – ou seja, retornar a um governo da direita – não irá ajudar em nada. Os slogans “no volverán” e “Chávez vive, la revolución sigue” estão sempre presentes nas manifestações populares. Para muitos, isso significa que a direita nunca irá trazer soluções para seus problemas e a solução é a revolução socialista. Ainda que as definições de “revolução” e “socialismo” sejam confusas para muitos, as demandas das massas são certas. O que falta é uma organização para levar adiante essas exigências.
Existem setores mais avançados dos trabalhadores, que corretamente protestam contra a burocracia, a corrupção, contra os elementos pró-burguesia no governo, contra a repressão às greves e aos direitos dos trabalhadores e contra as contradições inerentes do chavismo. Ainda que as demandas especificas variem, a maior parte desses trabalhadores concordam com certos elementos: controle e gestão das fábricas pelos operários, representação legítima dos trabalhadores no governo e o direito dos sindicatos para se organizar e fazer greves.
A minoria que protestou na última semana, obviamente não tem as mesmas demandas e interesses que os trabalhadores, nem sofre com os mesmos problemas do dia-a-dia que a maioria dos venezuelanos. As imagens das manifestações, com estudantes participando e gritando, poderiam ser confundidas com fotos da Grécia ou da Espanha, países onde a juventude participa ativamente da luta contra os programas de austeridade dos capitalistas. Entretanto, esses estudantes que participam dos protestos na Venezuela não estão sofrendo com 60% de desemprego, cortes na educação ou ameaça de uma vida de pobreza. Esses estudantes são parte da juventude abastada da Venezuela. Eles freqüentam as melhores escolas particulares do país, as melhores faculdades particulares, têm o carro e a moto do ano e, freqüentemente, viajam ao exterior nas férias.
Nas redes sociais, têm circulado vários “documentários” ensinando “como lutar contra uma ditadura”, dando exemplos históricos da luta contra Pinochet e outros ditadores brutais. Muitos dos slogans desses vídeos falam sobre “lutar pela liberdade”. Entretanto, que “liberdade” é essa que eles esperam alcançar pela direita? Os manifestantes rejeitam o socialismo e acreditam que é a democracia burguesa que irá trazer “liberdade”.
A Venezuela é um dos países com maior taxas de criminalidade no mundo, e os manifestantes chamam atenção para isso. Essa questão que eles levantam é justa, e é uma bandeira também da classe trabalhadora. Entretanto, para resolver de verdade a questão do crime, precisamos lutar contra as desigualdades inerentes ao sistema capitalista. A criminalidade não será resolvida com um novo governo de direita, da mesma maneira que não será resolvida sob um governo que continua a não atingir as raízes do problema.
A idéia de que esses dois campos (os pobres da Venezuela de um lado e, do outro, os manifestantes que lutam contra o chavismo e a favor do capitalismo) enfrentam os mesmos problemas, têm as mesmas demandas ou irão se unir é absurda e demonstra uma completa falta de conhecimento sobre a análise marxista da sociedade de classes.
Qualquer espécie de golpe não receberá apoio da maior parte dos venezuelanos, e não será tolerada pelas razões que citamos. Se houver uma ameaça da direita, a consciência de classe irá levar os pobres e a classe trabalhadora às ruas para apoiar o governo, se não houver uma outra alternativa.
A questão-chave para nós, socialistas revolucionários, assim, é como intervir nessa situação para fazer avançar um programa de luta por um socialismo revolucionário e democrático, e não deixar que o movimento fique a lutar simplesmente pelo chavismo ou pela conciliação de classes.
Comícios pela paz
Tanto direita quanto governo têm convocado manifestações “pela paz”. Maduro até mesmo convidou Capriles para uma conversa sobre os protestos e para encontrar uma saída. Essa tentativa de conciliação não é nenhuma novidade no chavismo.
Após a tentativa de golpe de 2002, Hugo Chávez, em um discurso transmitido pela TV, pediu ao povo para voltar para suas casas. Ao invés de, por exemplo, convocar a formação de comitês populares e de trabalhadores para investigar o golpe da direita, ele disse que os venezuelanos precisavam “trabalhar juntos e esquecer”. Em várias situações, a pressão das bases forçou o chavismo a radicalizar-se, mas sempre tomando medidas para buscar alianças com certos setores da burguesia.
Após a eleição de Maduro em abril de 2012, ele não propôs que trabalhadores e pobres discutissem como mudar a sociedade. Ele, ao invés disso, se encontrou com o chefe da família Mendoza. Os Mendoza são uma das mais poderosas famílias da Venezuela, donos do Grupo Polar, que produz e importa alimentos, entre outros itens. Maduro realizou um acordo em que a Polar não seria incomodada pelo governo e continuaria a fazer dinheiro. Em troca, o grupo iria aumentar a produção de alimentos e teria importações facilitadas com o auxílio do governo, e até mesmo ganharia algumas fábricas que foram expropriadas de outros grupos.
Os “comícios pela paz” são, assim, meios do governo buscar apoio dos diferentes setores da sociedade e, dessa forma, não ser pressionado a buscar ações radicais que ele não quer realmente implementar. Em muitas vezes, como vimos, o governo irá atender às demandas que vêm de baixo. Mas toda essa pressão das bases não conseguiu que o governo nacionalizasse o setor bancário, por exemplo, ou implementasse uma economia planificada.
Perspectivas
O que irá acontecer na Venezuela amanhã ou semana que vem permanece em aberto. A situação está correndo e o resultado depende de vários fatores. A continuação da repressão policial nos protestos poderá resultar em maior apoio a medidas mais radicais pela direita.
No dia seguinte ao 12F, Maduro disse que todo protesto que acontecesse sem permissão seria considerado ilegal e poderia ser reprimido pela polícia. Nós devemos nos opor a qualquer medida que o governo tome contra o direito de protestar – afinal, essas mesmas medidas de repressão já foram e poderão ser usadas novamente contra a classe trabalhadora.
O que precisamos para parar a direita é um movimento de massas das classes trabalhadoras e dos pobres, unidos em um programa de luta pelo socialismo. Um movimento desses poderia também ganhar o apoio de setores da classe média que, historicamente, também cumprem um papel importante nos processos revolucionários.
Um chamado por uma frente unida de esquerda como primeiro passo para esse movimento é algo muito importante. Uma frente unida, além de unir as demandas dos pobres e dos trabalhadores, através de um debate nacional, poderia também avançar um programa de mudança revolucionária.
Tal programa deve abordar os passos necessários para o fim do capitalismo e a implementação de uma economia planificada, incluindo a completa nacionalização do setor bancário e dos grandes grupos que controlam a economia sob controle e gestão democráticos dos trabalhadores, e todo o poder para os conselhos comunitários eleitos democraticamente pelo povo. Todos os políticos eleitos deverão ganhar o salário de um trabalhador, e estarão sujeitos a possibilidade de revogar seus mandatos. E educação e saúde de qualidade e gratuitos para todos!
O retorno da direita na Venezuela seria uma derrota para os socialistas de todo o mundo. Os trabalhadores e os pobres irão responder aos chamados para defender o governo, se necessário. Para os revolucionários, a tarefa é lutar diariamente por um programa classista que consiga avançar além disso.