Prostituição e mercantilização do corpo da mulher – quem ganha com isso?

O tema da prostituição é uma questão polêmica, que traz para o debate político os valores morais e conservadores burgueses que sustentam a sociedade capitalista. Também nos coloca o paradoxo de sermos contrárias à mercantilização do corpo da mulher e ao mesmo tempo em que entendemos o fato de que as mulheres pobres em situação de prostituição trabalham em condições muito precárias. O que se pretende nesse artigo é pautar o debate atual sobre a regulamentação e descriminalização da prostituição em uma perspectiva classista.

Tráfico de mulheres e turismo sexual vinculado ao turismo esportivo

O Projeto de Lei 4.211/2012, de autoria do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), que pretende regulamentar a prostituição enquanto profissão e o seu local de exercício às vésperas da Copa de 2014 a ser realizada no Brasil, vai ao encontro de uma demanda da FIFA que tem pressionado os países sede dos jogos da Copa para a sua regulamentação ou descriminalização, visando o turismo sexual vinculado ao turismo esportivo.

O aumento do turismo sexual promovido pela liberação da prática sexual profissionalizada tem se tornando uma das maiores preocupações das organizações sociais e internacionais, já que o tráfico internacional de pessoas figura como a terceira prática ilícita mais lucrativa do mundo, perdendo apenas para o tráfico de armas e drogas. A Alemanha, país sede da Copa de 2002, foi considerada pelo Escritório das Nações sobre Drogas e Crime como um dos principais destinos de vítimas do tráfico de pessoas.

Mais de 40 milhões de pessoas no mundo se prostituem atualmente, segundo um estudo da fundação francesa Scelles, que luta contra a exploração sexual. A grande maioria (75%) são mulheres com idades entre 13 e 25 anos (BBC Brasil, 18.01.2012). Neste número, se incluem dois milhões de crianças que são exploradas sexualmente. O estudo ainda indica que 90% das prostitutas estão ligadas a cafetões.

Sabemos que a prostituição está associada à pobreza e, na maioria das vezes, a prostituição não é uma escolha profissional ou uma vocação, e sim, uma forma de comercialização do corpo pela falta de oportunidades, por isso, essa questão está diretamente relacionada à desigualdade social no país e à questão de gênero. Quem realmente lucra com este comércio são os cafetões e aqueles que administram o tráfico de mulheres e o turismo sexual.

No Brasil, as vítimas da exploração sexual são, principalmente, originárias de regiões pobres do norte do país, como Amazonas, Roraima e Amapá. As meninas das comunidades ribeirinhas são mais facilmente aliciadas devido às condições precárias de vida. Nessa região o governo é conivente com o tráfico de meninas. Na Bolívia, desaparecem muitas mulheres por ano, entre 12 e 20 anos, e vêm principalmente para o Peru e para o Brasil. O relatório de 2010 do Departamento de Estado dos Estados Unidos (país cuja polícia maltrata e prende prostitutas, cafetões e usuários) cita o Brasil como fonte de mulheres para a prostituição forçada, no país e no exterior. Há muitas formas de aliciamento, alguns até com consentimento da família.

Não é raro universitárias de instituições privadas e mesmo públicas se prostituirem para pagar o curso ou mesmo se manter estudando, mesmos estes casos acabam por reforçar que a prostituição está ligada a fatores econômicos e financeiros e não a uma justificável “vocação”, pois no fundo estas buscam garantir outra profissão “respeitável”.

Prostituição no Brasil é uma atividade profissional reconhecida pelo Ministério do Trabalho com classificação na CBO (Classificação Brasileira de Ocupações) e não possui restrições legais enquanto praticada por adultos. Se prostituir no Brasil não é crime, o que é expressamente proibido em lei é agenciar ou administrar a prostituição ou ter um local destinado a esta atividade.

Lei Gabriela Leite que visa a regulamentação de bordéis no Brasil

Este projeto de lei foi apresentado no final do ano passado, sem qualquer discussão com o conjunto d@s militantes do partido, inclusive o setorial de mulheres do PSOL. Essa proposta não é uma novidade, pois em 2003 o então deputado federal Fernando Gabeira do PV apresentou a PL 98/2003 que objetivava a legalização da comercialização do sexo. Em 2004 o deputado Eduardo Valverde (RO) apresentou proposta semelhante, que também foi arquivada pela Mesa Diretora da Câmara. O projeto visa legalizar o que hoje é proibido: administrar a prostituição e permitir casas de prostituição.

É sabido que a mulher é o principal sujeito desse projeto (a maioria desses profissionais são do sexo feminino), apesar de não ser restringir a elas. @s transexes e travestis também estão inserid@s.

A Lei Gabriela Leite homenageia uma ex-prostituta brasileira, da década de 1970, fundadora da ONG Davida e da grife de roupa Daspu, e que afirma que para ela a prostituição foi uma vocação. Por este critério, também poderia se chamar de Lei Bruna Surfistinha, garota rica que virou garota de programa e então escritora, pois ambas, apesar de famosas, não representam a trajetória da maioria das profissionais.

O projeto do Jean, somente dialoga com as profissionais que optaram livremente por esta profissão, que são minoria, e com os empresários do sexo, que, protegidos pela lei, lucrarão ainda mais com esta exploração e não com a grande maioria de pessoas que viram na prostituição a única forma de subsistência.

A legalização da prostituição no mundo…

O projeto baseou-se na legislação alemã. Na Alemanha, apesar da lei ter autorizado a prática da oferta de serviços sexuais, proíbe o anúncio da prostituição, pois considera imoral este tipo de propaganda. A concorrência entre as prostitutas e cafetões na Alemanha formou um verdadeiro ‘apartheid moral’ nas cidades. As prostitutas mais jovens têm espaço garantido nas casas de prostituição, as mais velhas, por não serem contratadas por estes empresários do sexo, acabam ficando nas ruas, onde existem regras próprias, rígidas e cruéis que a lei não resolveu.

A segregação moral, espacial e trabalhista continua existindo mesmo após a aprovação da lei. A legalização permitiu que a indústria do sexo não tivesse grandes problemas para traficar para a Alemanha. Nada menos que 40 mil mulheres, importadas da Europa central e do leste, para abastecer um gigantesco complexo ligado à prostituição.

Foi construída uma megacasa de prostituição, ao lado do principal estádio do país, com capacidade para 650 homens usufruírem de seus serviços simultaneamente, durante a copa do mundo. Vemos que o capitalismo se utiliza da legalização da prostituição, uma lei supostamente feita para proteger as profissionais do sexo, para potencializar seus lucros, explorando o corpo da mulher.

Já na Copa do Mundo na África do Sul, a prostituição não era legalizada, mas este país já fazia parte da rota de tráfico de mulheres, o que o tornava atrativo para ser sede de tais jogos. São traficadas nesse país mulheres tailandesas, russas, búlgaras e moçambicanas; as nigerianas passam pela África do Sul para depois serem vendidas na Alemanha, Itália e Canadá; as sul-africanas são levadas por Hong Kong e Macau.

Na Europa, em muitos países, o proxenetismo (prática de terceiros que obtêm benefícios econômicos por meio da prostituição) é crime com pena de 1 a 10 anos de prisão (Bósnia, Herzegovina, Bélgica, Armênia, Andora, entre outros). Nos países onde a atividade é considerada legal, ora essa inserção profissional ocorre de maneira segregada e precária, ora a legalização não tem trazido o reconhecimento profissional e social que se deseja.

A tarefa da esquerda e do movimento de mulheres!

A esquerda como um todo deve empenhar-se em por fim a todas as formas de marginalização e exploração do ser humano.

Na Alemanha em 1920, Lênin já observava que as prostitutas “são lançadas a prisão por infrações a qualquer regulamento da polícia referente à sua triste profissão” e que, por isso, eram duplamente vitimas da sociedade burguesa, do maldito sistema de propriedade e do moralismo hipócrita.

Observava ainda que ao tratar de reconduzir a prostituta ao trabalho produtivo, de indicar-lhe um lugar na economia social, era uma coisa complicada e dificilmente realizável no estado e economia. Em seus debates com a feminista Clara Zetkin, deixou claro que as prostitutas não representavam uma categoria especial que necessitavam de atenção exclusiva, mas fazem parte de um cenário mais amplo onde está colocada a exploração e opressão da mulher como sujeito social. Perceber isto é incluí-las também no ideal de transformação da sociedade capitalista e de sua moral burguesa para uma sociedade socialista onde o corpo não será mais uma mercadoria a ser explorada comercialmente.

Temos clareza que no marco da democracia burguesa, as leis, por si só, não são garantias de direitos sociais, em especial para a classe trabalhadora. Em alguns casos as leis servem para normatizar a dominação do capital e naturaliza-la, formalmente. Neste sentido, o próprio projeto de lei já é um limitador, ao estipular que sob a gerencia de um cafetão a mulher poderá dispor apenas de 50% dos seus serviços prestados. Isto significa aumentar o número de programas para continuar a garantir os seus vencimentos anteriores.

A mercantilização do corpo é uma das formas mais bárbaras de opressão. Permitir em lei que o cafetão fique com metade do valor é legalizar a barbárie. A legalização de casas de prostituição não ajudará as mulheres prostitutas, como não tem ajudado nos países capitalistas desenvolvidos, tampouco garantirão a segurança social das mesmas. O ideal seria focar em projetos sociais que possam retirar a mulher deste círculo vicioso e não perpetuar esta condição do ponto de vista legal. Mesmo numa sociedade capitalista baseada no lucro individual, não é tarefa dos socialistas levantar a bandeira da legalização de prostíbulos e facilitar a vida dos “prostituidores”. Não somos contra prostitutas, mas sim contra a prostituição e a comercialização do corpo.

Surge a pergunta obvia: Quem essa lei irá favorecer? A indústria sexual ou @s prostitut@s?

Nós nos negamos a fechar os olhos diante das condições precárias de vida dessas mulheres regadas a violência que sofrem diariamente. Defendemos que estas mulheres sejam respeitadas, e lutaremos pela sua segurança e melhores condições de vida.

Somos solidárias às/aos prostitut@s, profissionais do sexo, garot@s de programa, acompanhantes de luxo ou como acharem melhor se autodenominarem, e @s chamamos a construir uma sociedade livre da opressão e exploração.

Em um mundo sem a exploração do homem pelo homem não existirá a exploração comercial do corpo. Dispor do próprio corpo da maneira como bem entender sempre será uma bandeira das feministas e socialistas, desde que não esteja ligado a necessidade econômica.

Esse debate enfrenta desafios importantes no que diz respeito à tentativa de desmarginalização social que essas mulheres sofrem. O combate à intensificação da comercialização do corpo e tráfico de mulheres deve começar desde já, mas somente uma sociedade socialista poderá superá-lo. Não devemos apresentar falsas soluções. Nos marcos da economia capitalista este debate não avança, a não ser uma clara posição de extinção da prostituição e melhores condições de trabalho para todos os trabalhadores e trabalhadoras.

Por ora, não há como ser favorável a este projeto de lei que vai na contramão da luta contra a mercantilização do corpo, que banaliza e naturaliza a prostituição. Não há como ser favorável a prostituição! Chamamos o Jean para debater conosco, com a sociedade e com o movimento feminista. “Os pássaros que mal saíram do ovo das concepções burguesas crêem-se sempre terrivelmente inteligentes.” Os trabalhadores e trabalhadoras necessitam mudar o sistema e não adaptar-se a ele.

“Nada deve parecer impossível de mudar”

Lívia Cassemiro, professora de História

Natália Coelho, assistente Social, pós-graduanda em Política e Planejamento Urbano e integrante do Setorial de Mulheres do PSOL/RJ

Kátia Sales, integrante do Coletivo Nacional de Mulheres do PSOL e da Executiva Nacional do Movimento Mulheres em Luta