O que está por trás da crise e do caos na Venezuela

Este artigo foi originalmente publicado em inglês, no dia 25 de julho de 2024. Portanto, antes das eleições que culminaram na atual crise venezuelana. Pelo rico resgate histórico que faz de todo o processo do chavismo, contudo, ele permanece atual, motivo pelo qual oferecemos esta tradução ao público leitor de português.

Ao passo que a Venezuela se dirige a uma eleição no dia 28 de julho o país claramente não vai bem. Uma crise econômica prolongada e medidas repressivas crescentes por parte do presidente Nicolás Maduro abriram novas oportunidades para a sua oposição de direita. As eleições foram tomadas por repentinas reviravoltas na medida em que Maduro faz concessões em um minuto e recorre à repressão no seguinte. Isto é acompanhado por decisões políticas erráticas, tal como convidar navios de guerra russos para atracarem após exercícios militares e enviar tropas para a fronteira com a Guiana.

A oposição de direita, apesar de se pretender democrática, está há muito implicada em tentativas de golpes tanto contra Maduro quanto contra seu popular predecessor Hugo Chávez. Chávez e Maduro eram, eles próprios, produtos do movimento de massas popular. Infelizmente, as medidas repressivas e ditatoriais de Maduro serviram apenas para reforçar as falsas reivindicações democráticas da oposição. Frente à repressão, ela organizou manifestações de massa comparáveis em tamanho com as que originalmente impulsionaram Chávez ao poder.

Forças pró-capitalistas aproveitaram a profunda crise econômica da Venezuela para provar o inevitável fracasso do socialismo. “E a Venezuela?” tornou-se um chavão de direita quase tão comum quanto “E a Rússia?”. A atual crise na Venezuela, contudo, não é um exemplo do fracasso do socialismo. Antes, é um exemplo do fracasso de tentar trazer o socialismo gradualmente por meio de um Estado e uma economia capitalistas. Compreender este fracasso é vital para a classe trabalhadora venezuelana e para a reconstrução de sua luta.

O legado da Revolução Bolivariana

A eleição de Hugo Chávez em 1998 foi um dos eventos políticos mais importantes de sua época. Dando-se em meio ao “fim da história” quando a restauração capitalista varria os antigos Estados stalinistas e a China, a Revolução Bolivariana de Chávez foi um dos primeiros movimentos a reavivar o interesse no socialismo. Chávez levou à frente reformas significativas, taxando e estatizando grandes empresas e construindo serviços públicos para os pobres. Isto retirou milhões da pobreza em um país há muito afligido pela desigualdade. Ela também deu partida à “onda rósea” original dos líderes populistas de esquerda da América Latina, junto com Lula no Brasil e Evo Morales na Bolívia.

Como outros líderes da onda rósea, Chávez manteve relações capitalistas ao deixar grandes setores da economia, como a produção de alimentos, sob propriedade privada. Inicialmente, ele nem sequer se definia como um socialista. Mas ele foi mais longe do que outros líderes da onda rósea no enfrentamento ao neoliberalismo na medida em que estatizou a produção de petróleo e algumas outras grandes indústrias. Ele tentou moderar os antagonismos de classe entre capitalistas e trabalhadores, chegando a utilizar o exército contra ambos em determinados momentos.

Os capitalistas revidaram

Em resposta, a classe dominante venezuelana, apoiada pelos Estados Unidos, levou à frente uma tentativa fracassada de golpe em 2002, seguida de um locaute em 2003 (falseado como uma greve pela mídia burguesa), e um referendo de revogação do mandato de Chavez em 2004, na qual a oposição de direita envolveu-se em uma grande fraude eleitoral. Estes ataques foram derrotados por levantes de massa da classe trabalhadora venezuelana. Isto impulsionou Chávez a aderir mais abertamente ao termo “socialismo”, chegando inclusive a louvar Lênin e Trotsky. 

Apesar disto, Chávez ainda adotava a abordagem reformista equivocada, rejeitada por Lênin e Trotsky, de tentar “simplesmente tomar posse da máquina de Estado montada e pô-la em movimento para os seus objetivos próprios”. Tentativas anteriores de fazer isto por líderes de esquerda testemunharam a máquina estatal derrubá-los, como no Chile em 1973. Outras lideranças de esquerda, como Lula no Brasil, cedeu ao neoliberalismo ao invés de assumir o risco de provocar a reação da classe dominante. A força do apoio popular de Chávez impediu que estes dois cenários se formassem. Mas não alterou o fato de que a abordagem de Chávez seguia inviável. 

As crises enfrentadas por Maduro, que assumiu o poder após a morte de Chávez em 2013, são consequências disto. Os problemas começaram sob Chávez, de forma que não podem ser colocados apenas sob a conta das falhas pessoais de Maduro. Enquanto os ataques da direita eram rechaçados pelas massas, Chávez construiu seu apoio sob o próprio Estado. Ele forçou mudanças constitucionais para fortalecer seu próprio poder executivo contra outros segmentos do Estado. Ele revogou a concessão de transmissão da mídia de direita Radio Caracas Televisión.

Apenas uma classe por vez pode governar a sociedade

Marxistas utilizam o termo “bonapartismo” para se referir a situações nas quais o Estado se equilibra acima das classes, na medida em que se fortalece em poder. Em última instância, um Estado bonapartista se colocará ao lado da classe dominante. Chávez e Maduro diferem-se dos Estados bonapartistas clássicos na medida em que a maior parte da classe dominante manteve-se firmemente em oposição a eles. No entanto, outro setor capitalista, denominado “boli-burguesia”, enriqueceu sobre as bases da crescente burocracia em torno de Chávez e Maduro.

Na medida em que as relações capitalistas permaneçam intactas, a corrida por lucros orientada pelo mercado irá inevitavelmente suprimir quaisquer reformas pró-trabalhadores pelas quais se possa lutar. Neste sentido, a experiência venezuelana encontra um paralelo com aquela dos Sandinistas na Nicarágua. Ambas envolveram governos populares de esquerda que conservaram as relações capitalistas. Ambos foram capazes de rechaçar a reação militar de direita, mas estagnaram no longo prazo na medida em que a fuga de capitais e a crise de lucratividade impediu que estes governos sustentassem suas reformas. Em ambos os casos as crises econômicas resultantes deram à classe dominante novas oportunidades para pregar a contra revolução em vestes democráticas.

A Venezuela foi capaz de sustentar-se inicialmente porque as vastas reservas de petróleo forneceram uma fonte de renda para continuar financiando as reformas de Chávez e Maduro. Mas em 2014, o preço do petróleo caiu dramaticamente, afastando a base econômica da Revolução Bolivariana. A crise econômica consequente viu aumentos drásticos da inflação, escassez e especulação. Em 2017, a inflação tornou-se hiperinflação, chegando a uma taxa de 130,060% em 2018.

A oposição de direita sentiu o descontentamento crescente. No início de 2014, os reacionários da linha dura Leopoldo López e María Corina Machado organizaram as manifestações do 12F, que combinaram protestos populares com ataques violentos. Apoiadores de Maduro revidaram, mas Maduro utilizou os protestos para escalar a repressão, representando as manifestações como um “golpe em andamento”. 

Nas eleições para a Assembleia Nacional de 2015, a oposição de direita saiu vitoriosa pela primeira vez desde que Chavez chegou ao poder. Na medida em que as relações se deterioraram entre a Assembleia Nacional dirigida pela direita e a presidência de Maduro, Maduro convocou uma Assembleia Constituinte para ser eleita em 2017. A oposição de direita boicotou a eleição e atacou violentamente as tentativas de realizar a votação, enquanto promoveram a Assembleia Nacional, com apoio dos Estados Unidos, como o legítimo governo venezuelano. Isto foi o que levou os Estados Unidos a estabelecerem sanções contra a Venezuela em 2017. Em 2019, o presidente da Assembleia Nacional Juan Guaidó levou à frente uma nova tentativa fracassada de golpe. Esta desmoronou mais rapidamente do que aquela de 2002, menos pelo apoio popular a Maduro, e mais pela falta de sustentação para Guaidó.

Ao fim, Guaidó liderava um governo fantasma a partir do exílio apoiado pelo imperialismo estadunidense. Na própria Venezuela, Maduro cada vez mais presidia um Estado falido, com uma economia afundada, declinando em apoio popular e com relações políticas colapsadas.

Em direção à distensão

Apesar do longo isolamento global da Venezuela, a crise atual vem após movimentos mais recentes em direção à estabilidade e distensão. Ao fim de 2022 a oposição de direita formalmente destituiu Guaidó de seu governo no exílio. Como resposta, os Estados Unidos retiraram o reconhecimento ao governo exilado e retomaram a embaixada venezuelana da oposição em fevereiro de 2023. Sem o suporte financeiro do imperialismo estadunidense, a oposição não podia mais pagar por seus advogados e, em junho de 2023, concordaram em concorrer às eleições oficiais da Venezuela.

Ignorando a oposição, o governo Biden estabeleceu negociações diretas com o governo Maduro em Barbados. Em 17 de outubro de 2023, chegou-se a um acordo segundo o qual os Estados Unidos suspenderiam as sanções à Venezuela. A sua vez, Maduro e a oposição concordariam com eleições livres e justas em 2024, e Maduro colaboraria com a repressão de Biden à imigração. Na medida em que as eleições se tornaram uma realidade, no entanto, a distensão ruiu.

Estes movimentos à distensão não foram o resultado da adesão de Biden ao socialismo, nem de Maduro aos valores da democracia burguesa liberal. Antes, foram o produto desta era de transformações. O imperialismo dos Estados Unidos, o governo Maduro e a oposição de esquerda encontram-se todos enfraquecidos. Cada força buscou explorar as fraquezas das demais. 

O fim da era neoliberal testemunhou o declínio da hegemonia global do imperialismo estadunidense. Isto deu a Maduro mais margem de manobra ao se apoiar nos imperialismos russo e chinês. Na medida em que o imperialismo dos Estados Unidos tenta conter o bloco Rússia-China através de sua estratégia de “nearshoring”, sentiu-se pressionado a fazer concessões a Maduro. Isto exacerbou-se após a invasão russa à Ucrânia em 2022, a qual cortou a maior parte do fornecimento de petróleo para o bloco alinhado aos Estados Unidos. 

A oposição de direita também encontra-se enfraquecida desde a tenativa de golpe de Guaidó em 2019. O próprio Guaidó foi crescentemente sendo visto como uma piada. Quando ele foi destituído, o governo no exílio perdeu a sua pretensa legitimidade democrática. Continuar a sustentá-lo tornou-se um fardo para o imperialismo estadunidense.

No entanto, o enfraquecimento do imperialismo dos Estados Unidos e da oposição de direita não significam um fortalecimento do governo Maduro. A crise econômica se mantém. Maduro foi capaz de domar a hiperinflação, mas sobre as bases de medidas de austeridade draconianas em conjunto com a dolarização da economia. Isto permitiu o crescimento de empresas privadas, mas às custas dos trabalhadores, especialmente do setor público. O salário mínimo mensal para um professor da escola pública gira em torno de U$ 10, enquanto professores universitários ganham entre U$ 60 e U$ 80. Isto resultou em um crescente descontentamento em meio à classe trabalhadora que apoiava Maduro. Na medida em que a oposição foi atirada na crise em 2023, a Venezuela foi sacudida por greves de professores e outros sindicatos. Isto pressionou a administração de Maduro a fazer as pazes com o imperialismo estadunidense e permitir que companhias como a Chevron escalassem massivamente suas operações no país. 

As forças que pavimentaram o caminho para a distensão em 2023 eram inerentemente instáveis. Enquanto cada parte assumiu uma postura de realizar uma diplomacia de alto risco, as coisas foram se aproximando do desmoronamento. 

Diplomacia de alto risco

Foi apenas uma semana depois de assinar o acordo de Barbados que as coisas colapsaram, quando as primárias da oposição elegeram a direitista de linha dura Maria Corina Machado como a sua candidatura presidencial. Ainda que Machado tenha sido incensada como um verdadeiro paradigma da democracia pelo imperialismo estadunidense, ela assinou o Decreto de Carmona no qual os dirigentes do golpe de 2002 tentaram dissolver o governo democraticamente eleito de Chávez. Machado já havia sido impedida de concorrer às eleições por causa disso. Apesar da absoluta hipocrisia de suas credenciais democráticas, ela é atualmente massivamente popular, especialmente como consequência do próprio declínio de Maduro. As próprias credenciais democráticas de Maduro foram colocadas em questão na medida em que ele não apenas bloqueou a candidatura de Machado, mas envolveu-se com a prisão seletiva de seus apoiadores.

Enquanto a agenda de Machado é a de um estrito alinhamento com o imperialismo dos EUA, os interesses estadunidenses de curto prazo prefeririam uma candidatura menos confrontadora. Nessa medida, a administração Biden fez o que pode para manter as coisas estáveis. Isto incluiu missões diplomáticas para a Colômbia, onde incentivaram o governante da nova onda rosa, Gustavo Petro, a pressionar tanto Maduro quanto a oposição para que chegassem a um acordo.

Ao mesmo tempo, a administração Biden repetidamente ameaçou restabelecer as sanções se a oposição fosse impedida de concorrer às eleições. Isto resultou em uma rodada de diplomacia de alto risco onde o imperialismo estadunidense fez de tudo para deixar nítida a sua seriedade em restabelecer as sanções ao mesmo tempo em que fazia o que fosse necessário para evitar realmente retomá-las. Isto incluiu tentativas de permitir com que o comércio de petróleo continuasse e reuniões secretas no México com representantes do governo venezuelano. Ainda assim, Biden retomou as sanções em abril.

Enquanto isto, tanto o governo Maduro quanto a oposição de direita envolveram-se em sua própria diplomácia arriscada. Após Machado ter sido impedida de concorrer às eleições, a oposição tentou apresentar Corina Yoris como substituta, apenas para que ela também fosse bloqueada. Em meados de abril, a oposição foi jogada em uma situação de desarticulação quando outro candidato, Manuel Rosales, anunciou a sua candidatura e não foi impedido eleitoralmente. Apoiadores leais a Machado viram Rosales como uma “oposição leal” e fantoche, projetada para desorganizar a campanha dela, enquanto os apoiadores de Rosales o viam como o único meio de fazer uma campanha legalizada. Em questão de dias, no entanto, o jogo virou quando a oposição inteira unificou-se sob uma outra candidatura, Edmundo Gonzales, um relativo desconhecido cujo qual a candidatura já estava aprovada. Com apoio tanto de Machado quanto de Rosales, a sua popularidade cresceu dramaticamente, com pesquisas apontando para uma vitória sua sobre Maduro por mais de 20 pontos de diferença. 

Da parte de Maduro, o desejo é o de demonstrar suficiente comprometimento com direitos democráticos para conseguir que as sanções sejam revertidas, enquanto simultaneamente certifique-se de que ele não perca o poder para a oposição de direita. Enquanto formalmente permite Gonzales concorrer, suas prisões seletivas sobre apoiadores da oposição continuaram. Em abril, ele convidou observadores da União Europeia para acompanhar as eleições, apenas para expulsá-los em maio. 

Este tipo de diplomacia de alto risco é habitual para o imperialismo dos EUA e para a oposição de direita. Para Maduro, é um sinal de declínio. Nos dias iniciais da Revolução Bolivariana, o governo tinha apoio de massas que poderia ser mobilizado durante as eleições sem reprimir direitos democráticos. Quando a oposição recorreu a manobras antidemocráticas, este apoio de massas foi mobilizado para resistir a elas. O definhamento deste apoio viu Maduro depender cada vez mais de valer-se do Estado para manter-se no poder. Nesta situação, independente de quem vença, a classe trabalhadora venezuelana perde.

Crise de migração

A extensão do desastre para a classe trabalhadora venezuelana é vista na crise dos refugiados. Voltando aos anos de Chávez, houve ondas de migração da Venezuela, mas ela era dominada por figuras da classe dominante que temiam o empoderamento da classe trabalhadora venezuelana. Ao longo dos últimos anos, contudo, a migração da Venezuela mudou quantitativa e qualitativamente. A partir de 2021, a taxa de migração cresceu drasticamente. A Venezuela é agora a segunda maior origem de imigrantes cruzando a fronteira entre EUA e México, ficando atrás apenas do próprio México. O caráter de classe também mudou para venezuelanos mais pobres forçados a fazer viagens perigosas para atravessar o Estreito de Darién no Panamá. 

Nos EUA, a crise da imigração deu combustível para ataques da direita contra os direitos de imigrantes partindo de figuras como Trump. Biden e os Democratas, ao invés de combater Trump neste quesito, continuaram as suas políticas anti-imigrantes. Mais recentemente, Biden assinou um bloqueio quase total para aqueles que buscam asilo. 

Imigrantes venezuelanos tornaram-se peões nas negociações sobre as sanções entre a Venezuela e os EUA. Durante os movimentos para a distensão em 2023, a administração de Biden organizou deportações diretamente para a Venezuela. Quando Biden ameaçou  restabelecer as sanções em 2024, Maduro ameaçou parar de aceitar as deportações.

Enquanto o imperialismo estadunidense se vale arrogantemente dos refugiados venezuelanos como uma moeda de troca, ele também impunha esta crise como um aviso para os pobres e oprimidos acerca dos males do socialismo. Isto é hipócrita da parte do imperialismo dos EUA, dado o papel que anos de sanções cumpriram em destruir o padrão de vida da Venezuela. Porém, isto não absolve Maduro. Para além da crise econômica, a repressão de Maduro sobre os direitos democráticos desencoraja mesmo os imigrantes da classe trabalhadora a voltarem. Uma pesquisa da Pax sapiens de outubro de 2023 demonstrou que, enquanto 58% dos imigrantes venezuelanos gostariam de retornar se a economia do país melhorasse significativamente, apenas 14% fariam isto se a melhora se desse, mas Maduro continuasse no poder.

Essequibo

A distância entre o governo de Maduro e um programa genuinamente revolucionário e da classe trabalhadora pode ser visto em sua confrontação com a Guiana sobre a região de Essequibo. Esta é uma região rica em petróleo, que remonta a dois terços da área da Guiana, mas menos de um sexto de sua população. Essequibo é disputado há muito tempo pelos dois países, embora as tensões tenham diminuído sob Chávez.

Em 03 de dezembro de 2023, no entanto, no meio da crise eleitoral, Maduro realizou um referendo para reivindicar a região. Após isto, ele enviou tropas para a fronteira e anunciou que iria permitir empresas de petróleo que tivessem sua base de operações na Venezuela explorassem o petróleo, gás e reservas minerais da região. A seu turno, a Guiana iniciou exercícios militares em conjunto com os EUA.

Os tópicos de discursos da direita pintam isto como uma agressão pura e simples da parte da Venezuela, comparando-a à invasão de Putin à Ucrânia. A linha do próprio Maduro, ecoada por alguns da esquerda, representa isto como uma medida anti-imperialista. A região foi formalmente incorporada à Guiana em 1899, quando o país ainda era uma colônia britânica, mas a Venezuela era uma república independente. Como tal, as reivindicações da Venezuela sobre Essequibo iniciaram como um enfrentamento ao imperialismo britânico. Mesmo assim, os nacionalistas venezuelanos buscaram apoio no imperialismo estadunidense, especialmente na administração Grover Cleveland, como um contraponto ao imperialismo britânico. Hoje, a Guiana está independente há mais de meio século, apesar de seu governo de direita e pró-capitalista. 

Uma explicação mais cínica da disputa aponta para a descoberta de petróleo ao longo da costa da Guiana há uma década. Logo depois, a ExxonMobil mergulhou de cabeça na região e outras companhias petrolíferas seguiram o exemplo. Ao longo dos últimos anos, a Guiana passou por um massivo boom petrolífero que enriqueceu a classe dominante do país e o capitalismo internacional, na mesma medida em que aumentou drasticamente a desigualdade. Para o imperialismo dos EUA, a Guiana oferece uma forma de continuar sua tática de nearshoring em relação ao fornecimento de petróleo sem precisar da Venezuela. Enquanto isso, a Venezuela vê os guianenses como uma ameaça à sua própria economia baseada no petróleo. 

Esta explicação econômica não está equivocada, mas é incompleta. As reivindicações nacionalistas da Venezuela sobre Essequibo têm apoio mesmo entre a oposição de direita, e o referendo serviu como uma forma de driblar o seu suporte polular. O próprio referendo teve uma aprovação de 95%, apesar de um baixo comparecimento. Isto foi acompanhado de uma campanha de prisões contra apoiadores da oposição por boicotarem o referendo. 

Se Maduro liderasse um governo genuinamente revolucionário, baseado na classe trabalhadora, ele apelaria à classe trabalhadora da Guiana contra a dominação do país pelas companhias petrolíferas. Ele também defenderia o direito à autodeterminação das populações majoritariamente indígenas de Essequibo, que nunca foram consultadas pela Venezuela ou a Guiana em qualquer disputa sobre a região. Ao lançar mão destas manobras nacionalistas, Maduro pode se entrincheirar em seu próprio poder, mas às custas da Revolução Bolivariana que reivindica defender.

Nova onda rosa

A demagogia nacionalista de Maduro é ainda mais carcomida dado o fato de que ela aparece no decorrer da segunda onda rósea no resto da América Latina. O retorno de Lula ao poder no Brasil, os sucessos do MORENA no México, a ascensão de Gustavo Petro na Colômbia, refletem novas oportunidades para uma luta internacionalista na América Latina. O caso de Petro é particularmente significativo já que a Colômbia era um bastião da reação durante a primeira onda rosa e frequentemente se chocava com a Venezuela. A nova onda rósea, como a original, e como a Revolução Bolivariana da Venezuela, compartilha as mesmas ilusões acerca do Estado capitalista. E algumas de suas figuras, como é o caso de Lula, estão muito mais atados ao capitalismo do que a sua imagem deixaria transparecer. Ainda assim, o ressurgimento da luta de classes por trás desta nova onda rósea aponta o caminho para a superação da crise venezuelana.

Diferente da onda rósea original, que se deu sob a era neoliberal, a nova se dá sob a Nova Guerra Fria e a Era da Desordem. Isto dá um caráter diferente para seus governos. A Nova Guerra Fria dá aos governantes latino americanos uma margem de manobra maior para desafiar o imperialismo estadunidense sem questionar o capitalismo ou o imperialismo em geral. Muito do radicalismo percebido em Lula enraiza-se no fato de que ele se apoia nos imperialismo da Rússia e da China, através da coalizão dos BRICS, para resistir aos EUA. Esta abordagem significou que muitos governos da nova onda rósea estão mais inclinados a defender o governo Maduro do que aqueles da primeira onda estavam inclinados a defender Chávez, mas não com base na luta de classes. 

No decorrer da crise atual, os governos da nova onda rósea no Brasil, Colômbia e México atuaram como os amigos mais respeitáveis de Maduro nas negociações diplomáticas com os EUA. Uma controvérsia em particular veio à tona em março de 2024, quando Lula descartou preocupações sobre Machado ser impedida de concorrer às eleições dizendo que, quando ele próprio foi bloqueado eleitoralmente em 2018 ao “invés de chorar, eu escolhi outro candidato e ele concorreu às eleições”. Machado respondeu denunciando que Lula estaria “validando os abusos de um autocrata”.

Esta postura da parte tanto de Maduro quanto dos governos da nova onda rósea não é a forma como se deve enfrentar o capitalismo e o imperialismo. No entanto, o movimento de massas que impulsionam esses governos ao poder de fato apontam um caminho para avançar. Um chamado internacionalista às lutas da classe trabalhadora global pode resistir às tentativas dos EUA de bloquear mudanças progressistas. E ele pode fazê-lo sem se apoiar nos imperialismos russo e chinês.

O caminho para avançar

Apesar da atual popularidade da oposição de direita, a classe trabalhadora precisa ter claro que os capitalistas não vão melhorar a democracia venezuelana. Eles apoiam privatizações, austeridade e servilismo ao imperialismo dos EUA, e estão perfeitamente inclinados a esmagar direitos democráticos quando isto lhes for conveniente. No poder, eles levarão à frente ataques ferozes contra os trabalhadores comparáveis aos realizados no Brasil sob Bolsonaro e na Argentina sob Milei.

Ao mesmo tempo, os trabalhadores também não podem apoiar Maduro. Enquanto muitas de suas medidas bonapartistas são direcionadas contra forças reacionárias alinhadas ao imperialismo dos EUA, ele também direcionou medidas repressivas contra os trabalhadores e pobres. Sobretudo, sua tentativa de apelar a diferentes poderes imperialistas e jogá-los uns contra os outros não é uma forma genuína de enfrentar o imperialismo.

O caminho para avançar é visto nos movimentos de massas que iniciaram a Revolução Bolivariana e trouxeram à tona a onda rósea original. Um movimento independente da classe trabalhadora pode enfrentar a repressão de Maduro e políticas que ataquem seus direitos, ao mesmo tempo em que resiste à ameaça representada pela direita.

A experiência da Revolução Bolivariana demonstra que nós não podemos utilizar a máquina de Estado montada para destruir o capitalismo. Mas os lados positivos da Revolução Bolivariana e das duas ondas rosas demonstram como campanhas eleitorais da esquerda podem energizar a luta de classes.

Apenas a luta de classes pode genuinamente defender os direitos democráticos ao mesmo tempo em que enfrenta o capitalismo e o imperialismo. Estatizar não apenas as companhias petrolíferas mas os centros de comando da economia e colocá-los sob o controle democrático dos trabalhadores pode permitir o planejamento econômico livre da busca de lucros para que se enfrente a pobreza. Frente às ameaças de sanções e intervenções imperialistas, a única solução é a solidariedade internacional com a classe trabalhadora na América Latina e em todo o mundo. 

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