Eleições, o socialismo e as armadilhas do debate sobre identidade
As eleições são um momento fundamental para fazer a disputa de projeto de sociedade que queremos. Ao mesmo tempo, tomamos ciência dos limites impostos pelo sistema e que as mudanças profundas só serão possíveis através da luta do povo trabalhador. Por isso, nossa participação nas eleições tem que estar a serviço das lutas sociais da nossa classe, em toda sua diversidade.
A campanha eleitoral é um espaço oportuno para defender nossas posições, ao mesmo tempo em que testamos nossa capacidade de fazer este diálogo de modo massivo, sem abrir mão de elementos centrais para a construção da nossa luta.
Neste cenário, e num contexto de pandemia, onde o capitalismo “ficou nu”, elementos como o racismo estrutural e o machismo ficam ainda mais evidentes, mostrando como o sistema capitalista penaliza ainda mais setores específicos da nossa classe. Neste sentido, sacar as armadilhas da identidade é central. Ela se revela quando a opressão é entendida de modo descolado do capitalismo, como se fosse possível estabelecer alianças com o setor que nos explora. Revela, também, o quanto a esquerda precisa encarar este debate e fugir de uma pressão branca e dominante para compreender as relações de poder.
Dois eventos nos impõe a necessidade de encarar este debate: (1) o financiamento de campanhas da negritude; (2) como mostrar a unidade da luta contra as opressões e a luta anticapitalista.
Os elementos factuais do debate
Um elemento importante do debate é o recebimento de financiamento para a campanha a vereador de Weslley Teixeira (PSOL-Duque de Caxias), vinda de personalidades ricas interessadas em eleger candidatos que eles consideram importante alcançar espaço no cenário político. Um desses colaboradores é Armínio Fraga, economista e megainvestidor no mercado financeiro, além de presidente do BC no governo Fernando Henrique e formulador do programa econômico de Aécio Neves. Outro desses colaboradores é o cineasta Walter Salles Junior, um dos donos do Itaú/Unibanco. Outro elemento é a declaração do ex-parlamentar Milton Temer criticando, em sua rede social, uma fala de Renata Souza. Temer, importante figura da esquerda nacional, criticou uma declaração em que ela fala que sua candidatura expressa a luta do povo preto, classificando tal fala como “identitarismo”.
Vivemos uma conjuntura política nacional e estadual muito complexa e difícil. As políticas antipopulares e de exclusão do governo Bolsonaro somam-se à corrupção e desgoverno de Wilson Witzel/Cláudio Castro, ambos filhos do bolsonarismo. Foram eleitos na aba dos votos bolsonaristas, comprometidos com suas políticas sanguinárias e privatizantes. Assim, depois de anos de desgoverno de Cabral/Pezão, o RJ é um estado praticamente falido econômica, política e socialmente. E mais: com uma crise fiscal sem precedentes, com uma polícia corrupta e assassina de negros jovens periféricos, com boa parte de seu território dominado por milícias, que participam intensamente do processo eleitoral, e mais do que isso, com o estado de maior atuação política de Bolsonaro e sua família, é forçoso reconhecer que a situação política do RJ é muito grave. Mas mesmo em meio a essa situação, é preciso agir com princípios, não com achismos ou ideias que não confrontem o sistema econômico e o sistema de opressões existentes.
É também nesse contexto difícil e complexo que a deputada federal Talíria Petrone está sendo ameaçada de morte e tendo que recorrer à ONU para buscar sua segurança pessoal. Talíria Petrone foi vereadora em Niterói e agora é deputada federal, tendo sua atuação combativa sempre despertado o ódio de classe e toda sorte de preconceitos. Isso se manifestou, de forma mais intensa, nas seis ameaças de morte que já sofreu em sua trajetória! É importante pontuar o fato de que a ex-vereadora Marielle Franco, mulher, lésbica, preta e parlamentar de luta anticapitalista, tenha sido alvo desse ódio, e que, infelizmente, foi levado até as últimas consequências.
Salientamos a decisão da Direção Nacional do PSOL de destinar verbas maiores para candidaturas de mulheres, negros e negras, indígenas, quilombolas, LGBTs, pessoas com deficiência em relação a candidatos homens brancos coloca o partido na vanguarda desse processo de busca de uma maior representatividade. Coloca também a responsabilidade de, nas diversas instâncias partidárias dos diversos municípios do país, em que haja PSOL nas eleições, a busca por uma redistribuição correta e justa dessas verbas para as candidaturas do partido, respeitando e praticando as decisões da direção nacional do PSOL. Rejeitamos veementemente os municípios que descumprem estas resoluções, pois isso está na contramão das decisões coletivas.
Cabem as seguintes indagações: O fato de ser negro, morador da favela ou periferia em Duque de Caxias, dá ao jovem candidato a prerrogativa de aceitar essa doação? Será que essa doação é tão espontânea a ponto de não exercer influência em um possível mandato ou mesmo em sua atuação política posterior à eleição? Até que ponto a aceitação desses valores contraria princípios como o estatuto do PSOL e, mais importante do que regras internas, contraria a própria concepção de agir com independência de classe nas mais diversas situações?
Sabemos da dificuldade da situação, mas em política é preciso agir com base em princípios. E nesse caso, e em qualquer outro que seja similar, com independência de classe. O PSOL deve deixar evidente, tanto interna como externamente, sua opção de ser um partido que valha a pena lutar e agir por princípios. A viabilidade eleitoral de Weslley Teixeira, sem sombra de dúvidas muito maior com essa doação, não deve ser razão para aceitar esse canto da sereia. A nosso ver, isso descaracteriza a candidatura de Weslley e sua trajetória política, que sempre foi de luta anticapitalista e antirracista. Não conseguirá fazer isso tendo provado desse manjar da classe dominante, pois a cobrança virá! Não podemos ter ilusão de classes de que em um determinado momento, a classe dominante possa ser “iluminada” a fazer concessões e desejar, em troca de nada, a eleição de candidatos pretos e periféricos! É óbvio que é muito importante ter um mandato de um jovem negro, periférico, que também encarna uma luta progressista em igrejas evangélicas e em Duque de Caxias; porém, é preciso que esse mandato tenha compromissos com os trabalhadores e isso não combina com as doações de empresários.
Temos que aprender com o processo histórico que levou partidos de esquerda, muitos com raízes bem mais fortes na nossa classe do que o PSOL conseguiu acumular até agora, a se degenerar. O PT, por exemplo, nasceu com fortes raízes nos movimentos e periferias, e seu processo de se tornar parte da institucionalidade levou anos, não foi um raio no céu azul. Os representantes da classe dominante podem fazer esse jogo pensando a longo prazo, oferecendo cargos, financiamento, alianças e aos poucos normalizando esse tipo de conduta que levou à conciliação de classes do PT, porque eles têm tempo. No final das contas, o sistema já é deles. Somos nós que queremos reverter as regrar e virar o jogo. Os erros que cometermos, mesmo que possam parecer menores hoje, levarão a consequências nefastas no futuro, se não os corrigimos.
Não é o caso de “demonizar” Weslley Teixeira. Porém, é uma situação que devemos aprender, tirar lições e seguir o rumo das lutas. A nosso ver, o candidato deva buscar a devolução desse dinheiro e o PSOL municipal deve buscar a distribuição dessas verbas de acordo com a decisão tomada em nível nacional. Isso é, em termos absolutos, bem inferior monetariamente ao que ele receberia dessas doações, mas será um compromisso de fidelidade partidária e à luta anticapitalista e antirracista que todo candidato do PSOL precisa dar em todos os momentos. O fato de Marcelo Freixo e Luciana Genro já terem recebido verbas de empresas ou de empresários, não dá margem para que outros candidatos aceitem; os dois erraram. Na nossa interpretação feriram o estatuto do partido que condena recebimento de empresários e banqueiros, de modo direto ou indireto.
Entretanto, se “passar pano” para qualquer ação de forma acrítica, desde que o agente seja negra ou negro, é algo muito ruim, também é ruim achar que qualquer menção à favela ou ao povo preto seja em si sinal de “identitarismo”. É importante ratificar a importância da candidatura de Renata Souza: mulher negra, de luta, favelada e da Maré. Isso, para o PSOL-RJ, é muito importante politicamente, até para sair da pecha de partido de Zona Sul carioca, forma com que, em muitas ocasiões, é atacado. Sem deixar de considerar a capilaridade eleitoral de Marcelo Freixo em uma disputa municipal, ter Renata Souza como nossa representante ao executivo do Rio é muito especial, pelo mandato de luta que ela exerce. Assim, o discurso de Renata não foi excludente e sim representativo de suas convicções e trajetórias. Iluminar o setor da classe que vive em condições de maior vulnerabilidade é possibilitar também a compreensão de que a luta anticapitalista e antirracista são faces da mesma moeda.
E não só na capital o PSOL se faz representar por uma mulher para a disputa do executivo municipal. Também em Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Campos, Queimados, Belford Roxo, Volta Redonda, ou seja, em algumas das principais cidades do estado e, em alguns desses casos, com mulheres pretas. Isso mostra que a representatividade é algo muito importante para referendar o PSOL como instrumento de luta anticapitalista e de que negros e negras têm espaço dentro do partido. Isso não se faz com declarações autoproclamatórias, mas com decisões e princípios sendo ratificados cotidianamente.
Encarar o debate político, com a profundidade que ele nos demanda nesta conjuntura
O esforço aqui foi o de justamente apresentar alguns elementos caros ao debate, ao nosso ver. A pressão identitarista e não classista está presente nesta conjuntura e no debate eleitoral. Contudo, devemos olhar para cada situação, discutir caso a caso, sem medo de enfrentar o debate na perspectiva socialista de projeto. Fugir da armadilha é nossa tarefa neste momento.
A LSR (Liberdade Socialismo Revolução), seção brasileira da Alternativa Socialista Internacional e tendência interna do PSOL, é uma organização política que se guia pela luta socialista e contra todas as opressões. Compreendemos que tais lutas devam estar casadas, pois não é possível lutar contra o capitalismo sem deixar de combater as opressões. Muito pelo contrário, essas são lutas centrais, representativas das classes exploradas e que impulsionam, se bem entendidas, a luta anticapitalista. Da mesma forma, não é possível vislumbrar o fim dessas opressões sem lutar contra o sistema capitalista, pois esse sistema se alimenta da opressão contra populações específicas com o fim de gerar disputas e divisões entre os grupos explorados e oprimidos, agindo em favor de sua dominação.
O capitalismo é um sistema de exploração sobre os trabalhadores de maneira geral, mas com certeza, as populações que sofrem opressões sentem, com ainda maior crueldade, a política de exclusão e de discriminação. Seja em diferenças salariais, carência de políticas públicas, criminalização intensa, pelo baixo acesso aos meios de consumo, a população negra brasileira, principalmente de mulheres, é marcada, historicamente, por um peso de violência sobre si muito mais forte.
Não é com lutas isoladas de grupos específicos, voltadas basicamente para si próprios, que todo esse processo histórico será confrontado; do mesmo modo também não é com discurso exclusivamente classista, sem perceber a composição social dos trabalhadores e sem entender as relações complexas de exploração e opressão na história brasileira que aplicaremos, com correção e com eficácia, uma teoria política revolucionária e socialista no ambiente em que atuamos. E é esse o nosso desafio!A LSR acredita e segue lutando para levar adiante uma dupla tarefa: combatermos Bolsonaro e a direita reacionária, e também fortalecer a esquerda socialista revolucionária, buscando a hegemonia dos trabalhadores nesse processo. A conjunção dessas lutas, anticapitalista e anti-opressões, é fundamental para o alcance desses objetivos. Nós convidamos a todos os lutadores socialistas a se juntarem a nós!