Rojava: Não à invasão turca!

Uma nova fase da guerra na Síria está  começando agora, após o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, ter anunciado que as tropas turcas estão prontas para atacar e ocupar a região curda de Rojava, no norte da Síria. A primeira leva  de tropas, acompanhada de ataques aéreos generalizados, atravessou a fronteira, deixando a população da região num estado de “grande pânico”. Isto acontece apenas três dias depois de Donald Trump, num telefonema a Erdogan, ter prometido que as tropas dos EUA seriam retiradas do nordeste da Síria.

As tropas turcas, tendo já invadido Afrin, a província ocidental geograficamente isolada da região curda em 2018, receberam praticamente luz verde para tomar o controle de Rojava durante o telefonema de Trump.

Isto marca o início da próxima fase da guerra entre potências mundiais e regionais, que está sendo travada em território sírio e a um custo terrível para o povo sírio.

O resultado é incerto. Erdogan utilizará a esmagadora superioridade  do exército turco, mas tem provado repetidamente ser um estrategista desastroso. As Unidades de Defesa do Povo Curdo (YPG) e as Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ), que atualmente controlam Rojava, não têm potencial militar para se oporem aos tanques e a Força Aérea turca. O seu heroísmo comprovado, motivado pela defesa de seu território, não será suficiente para resistir ao poder de fogo da Turquia. Mas, apesar disso, Erdogan não será capaz de “pacificar” a região. Mesmo que ele consiga vitórias sangrentas desde o início, não será capaz de impor o seu domínio sem uma violência contínua. As unidades curdas, como em Afrin, continuarão a conduzir uma guerra de guerrilha.

À medida que a resistência no sudeste da Turquia, norte do Iraque e norte da Síria aumentar, a zona de guerra se expandirá. Quanto mais tempo durar a oposição à invasão e os subsequentes combates de guerrilha, mais forte será o impacto do conflito curdo na própria Turquia. O recentemente perturbado equilíbrio de poder dentro da Síria se tornará mais confuso. Ao expor suas razões para a retirada das tropas americanas, o governo dos EUA diz que elas não são mais necessárias porque o califado do “estado islâmico” foi derrotado. Mas foram as forças curdas que derrotaram o EI no território. Milhares de militantes islâmicos e seus familiares estão atualmente em campos de internação curdos. A invasão turca irá libertá-los.

Uma derrota para as forças curdas criará instantaneamente um vácuo, no qual as forças islamistas reacionárias serão capazes de penetrar. O regime de Erdogan utilizou diretamente no passado forças do EI  para aterrorizar a população. Agora, milícias islâmicas estão destacadas em Afrin como forças terrestres sob o controle do exército turco. Mas, quer Erdogan se apoie diretamente nos islamitas ou tente mantê-los sob controle, eles irão se reagrupar com o objetivo de destruir o Curdistão.

Se a Turquia cumprir a sua promessa de transferir muitos refugiados sírios – na sua maioria de origem árabe – da Turquia para as zonas curdas, isso irá preparar o terreno para novas expulsões étnicas e massacres. A estas vítimas da guerra estão sendo oferecidas uma nova “casa”, da qual outros devem ser primeiramente expulsos. Isto permitirá que milícias islâmicas e gangsteres de todos os tipos assumam o controle da redistribuição de áreas de influência e rotas comerciais. Nesta base, o EI ou uma nova organização que pode surgir, pode até ser capaz de relançar uma ofensiva contra o regime de Assad.

Ao mesmo tempo, não se pode descartar que o regime de Assad irá explorar a invasão turca e usar suas tropas contra a região curda para matar dois coelhos com uma só pedra, acelerando a derrubada do controle curdo, ao mesmo tempo em que garante que os combatentes do EI capturados pelos curdos sejam retirados da equação, massacrando-os ou aprisionando-os.

Os líderes europeus também estão implicados

Há alguns dias, o presidente federal da Alemanha, Steinmeier, visitou a Turquia. Embora ele provavelmente tenha expressado suas “preocupações” ou “apreensões” sobre uma invasão turca do norte da Síria, ele não tentou barrar Erdogan ou ameaçar tomar qualquer ação. O governo federal alemão também deu uma luz verde implícita com seus avisos públicos, mas sem mostrar os dentes. Se as tropas turcas invadirem Rojava, eles o farão com a ajuda de tecnologia alemã, tanques, caminhões e armas automáticas produzidas sob licença. Os aviões Tornado alemães pilotados por pilotos da Força Aérea alemã operam a partir do aeroporto militar turco de Incirlik. Eles monitoram a situação na fronteira e assim salvaguardam as operações turcas, já que sua inteligência é coletada para ser usada “contra outros atores”, “contra o EI” e “contra o terrorismo”. A Turquia é, evidentemente, um parceiro da NATO. 

Embora os curdos que vivem na Europa participem ativamente em protestos contra os ataques à sua região, muitas vezes descobrem que não têm um apoio mais amplo, por exemplo, contra o próprio regime de Erdogan. Mas se este aspecto, o do envolvimento das potências europeias e das empresas de armamento, fosse realçado, e as pessoas percebessem quanto lucro estava a ser obtido com a morte de pessoas na Síria, a base dos protestos poderia ser aumentada. Se essas corajosas organizações curdas, que já estão dispostas a se posicionarem na Europa, fizessem um apelo aberto às organizações de esquerda, aos sindicatos e aos movimentos sociais, poderiam obter um apoio mais amplo.

Durante a batalha por Kobane em 2014/15, embora as unidades curdas do YPG e YPJ estivessem altamente motivadas e determinadas, o apoio aéreo dos EUA foi fundamental para garantir seu sucesso. Ao cooperar com o imperialismo dos EUA desta forma, o movimento curdo ganhou vantagem tática, mas acabou em um beco sem saída estratégico. Fê-lo à custa de perder parte do seu maior ativo, a sua posição de princípio de lutar por uma Síria multiétnica, multi-religiosa e democrática, renunciando a ganhos territoriais e à opressão.

Resposta dos EUA

A declaração de Trump sobre a retirada das tropas norte-americanas foi um choque não só para o povo curdo, mas também encontrou muita resistência dentro dos EUA, mesmo dentro do partido republicano. Os críticos a descrevem como um presente para a Rússia e o Irã, uma vez que irá reforçar a sua aliança com Assad. Sugere-se agora que uma parte da liderança curda está olhando para a Rússia para intermediar algum tipo de acordo com Assad, o que significaria sacrificar a autonomia curda para impedir novas invasões turcas.

Mas nem as potências regionais, os imperialistas norte-americanos ou a Rússia de Putin podem ser verdadeiros aliados. Para o imperialismo dos EUA, sua aliança com os curdos era apenas uma medida tática, não para interesses estratégicos. Como resultado, ficou claro que, mais cedo ou mais tarde, esse apoio às unidades YPG/YPJ seria abandonado para servir aos interesses globais e de longo prazo do imperialismo dos EUA. No final, os curdos só podem garantir seus direitos democráticos lutando em aliança com os oprimidos e explorados de outras nações da região por interesses comuns e, mais importante ainda, contra os poderes capitalistas que não estão preparados a garantir seus direitos políticos e econômicos.

No entanto, anos de conflito sectário e guerra significaram que as divisões nacionais e religiosas são muito amplas. É necessário iniciar o trabalho muito difícil e por vezes politicamente sensível para ultrapassar estas divisões e construir uma verdadeira força multi-étnica na região.

A marcha conjunta da YPG e as forças norte-americanas para conquista da cidade sunita de Raqqa não ajudou a avançar nesta tarefa estratégica chave, e sim marcou um retrocesso ao movimento curdo. De um ponto de vista militar, poderia possivelmente ser argumentado que era necessário tomar o controle de certas áreas habitadas por árabes para criar uma zona defensiva em torno de Rojava. Mas Raqqa, uma cidade claramente sunita árabe, está longe das áreas curdas. Parte da população queria o fim do terrorismo do EI – o que poderia ter lançado as bases para uma certa unidade com a população curda. Em vez disso, muitos civis morreram durante o bombardeamento da cidade pelos EUA. Novas feridas foram rasgadas, novo ódio semeado. Existe agora o perigo de, ao contrário de 2014, as unidades YPG e YPJ não serem vistas como uma força de libertação, mas uma das milícias etnicamente definidas na guerra síria, que está pronta a aliar-se a quaisquer outras forças em seu próprio interesse e, nesse processo, assumir a responsabilidade por mais mortes e terror no país.

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