Educação a contragolpes
No dia 26/09/2016, milhares de estudantes se manifestaram politicamente na Avenida Paulista contra a reforma nacional do Ensino Médio, imposta pelo Ministério da Educação. Resistiam às medidas da gestão Mendonça Filho (DEM) do MEC, que, como parte do governo golpista do PMDB, promove um ataque à educação pública marcado pelo autoritarismo e agilidade.
Com a cínica justificativa de combate à evasão, adequação do ensino às necessidades dos alunos e flexibilização curricular, promovem o desmonte do Ensino Médio brasileiro. Mas o que está em jogo é o esvaziamento curricular do EM. A Base Nacional Curricular Comum (BNCC), o currículo com todas as disciplinas obrigatórias como conhecemos, será mantido apenas no primeiro ano, e nos demais a formação se limitará apenas a um rol restrito de disciplinas.
Itinerário
O processo todo é incrivelmente rápido, no dia 27/07/16 o MEC publiciza, na voz de sua secretária geral, Maria Helena Guimarães Castro (que inclusive participou da coordenação de campanha de Aécio Neves para a presidência em 2014), a Portaria 790, em que defende a “flexibilização” do currículo (leia-se a extinção de disciplinas), texto prontamente defendido pela Folha de SP (conferir editorial: EM flexível 06/08/16). No artigo 3 da Portaria lê-se “A proposta de reforma do Ensino Médio terá por diretriz a diversificação da sua oferta, possibilitando aos jovens diferentes percursos acadêmicos e profissionalizantes de formação”. Mendonça Filho dá sinais de articulação com Rodrigo Maia, seu correligionário e presidente da Câmara dos Deputados para acelerar o processo de implementação. No dia 15/09/16, o ministro participa do Seminário Internacional Gestão Escolar, organizado pelo Instituto Unibanco e Folha, com apoio do Insper (instituição empresarial de ensino superior), e afirma que a reforma do ensino médio é prioridade e deve ser aprovada até o final do ano. Sem esboçar nenhum tipo de consulta, nem à população e nem mesmo à própria categoria profissional; sem debate e análise pedagógica da questão, um pequeno comitê de gestores golpistas da educação nacional encaminha e publica no dia 22/09/16 a MP 476.
A MP 476
A lei declara a implementação do Ensino Médio Integral, como se aumentando a carga horária de 800h para 1400h anuais, estivesse preocupada com a edificação do EM. De fato, a MP corta conteúdos e disciplinas. No Art. 36, lê-se:
“Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos específicos, a serem definidos pelos sistemas de ensino, com ênfase nas seguintes áreas de conhecimento ou de atuação profissional:
I – linguagens;
II – matemática;
III – ciências da natureza;
IV – ciências humanas; e
V – formação técnica e profissional.
§ 1o Os sistemas de ensino poderão compor os seus currículos com base em mais de uma área prevista nos incisos I a V do caput.
Em artigo do jornal Esquerda Diário destaca-se bem que os sistemas de ensino poderão, mas não deverão compor currículo com mais de uma área prevista nos itens de I a V. Isso simplesmente tira quaisquer garantias que estudantes terão mesmo a chance de escolher a característica de sua formação, revelando a mentira das defesas do MEC.
Além disso, o texto da MP trás no § 6º que a carga horária destinada ao cumprimento da BNCC não poderá ser superior a 1200h da carga horária total do EM, ou seja, menos que um ano, já que a carga anual passa a 1400h. O texto também afirma que Temas Transversais poderão compor, que disciplinas de arte e educação física são obrigatórias da Educação Infantil e no Ensino Fundamental, deixando simplesmente não mencionada a obrigatoriedade no EM.
O que está por trás dessas medidas é a composição de uma nova fonte de força de trabalho semi-precarizada e de baixa remuneração, com uma educação de caráter tecnicista e específica, sem nenhuma garantia de formação ampliada para a classe trabalhadora. Com uma educação que separa ainda mais a formação geral da técnica, aprofunda-se a divisão do trabalho entre concepção e execução, fortalecendo e naturalizando relações capitalistas de produção.
Disputa política e ideológica
Como de praxe, a mídia burguesa se apressa em disputar a opinião das pessoas. A capa da Revista Veja do dia 25/09/16 é: “Reviravolta na escola: o governo lança uma medida provisória que sepulta o modelo falido do ensino médio e põe no lugar um sistema mais flexível e mais atraente para os estudantes“. Faz uma eloquente defesa do ponto de vista da gestão golpista, distorcendo a verdade e enganando as pessoas.
A Folha de SP publica no dia 26/09/16 uma coluna de Aécio Neves defendendo a reforma. Ele diz:
Ao apresentar um plano de reforma do ensino médio, o governo acerta diante da gravidade da crise da educação no país. A iniciativa ataca um dos pontos nevrálgicos do sistema educacional. Se a educação brasileira, de modo geral, clama por uma transformação capaz de alinhá-la às exigências do século 21, nada é mais urgente do que estancar a sangria que acomete o ensino médio.
E finaliza a coluna com o cinismo que lhe é característico, “A proposta apresentada pelo governo é um passo corajoso para virar o jogo. O Brasil precisa e os jovens merecem”.
O fato de eles terem grandes meios de comunicação a seu dispor é preocupante e temos que dar atenção ao jornalismo parcial de esquerda, participar da disputa pela explicação verdadeira das “tenebrosas transações” pelas quais passa o país. Atentemos também às ruas e aos movimentos organizados. A luta educa, forma politicamente, e é nela que o combate ideológico ganha sentido. Temos que unir os movimentos de defesa da educação e ir às ruas. Militantes têm se educado nos contragolpes.
Inimigos de ontem e hoje
José Renato Nalini, secretário da educação do governo do estado de São Paulo, alia-se a Mendonça Filho e vai aproveitar-se da situação e acelerar a reforma do EM almejada pelo governo tucano desde o ano passado. Em entrevista ao Estado de SP (24/09/16), quando questionado sobre como as escolas estaduais atenderão a esse novo modelo de currículo flexível, afirma:
Isso está em aberto, vamos começar a discutir. Dá para usar todo o equipamento, não só o nosso. Podemos usar equipamentos do município, porque os dois planos, tanto nacional quanto estadual (de educação), incentivam a parceria. Vamos poder usar recurso (espaço) de escolas privadas. O Sistema S (formado por Senai e Sesc, entre outros), então, vamos aproveitar tudo. Nada indica que tenhamos de deixar o aluno no mesmo espaço físico. Vamos poder ter uma logística de reunir aqueles que escolheram uma determinada área e colocar em outro prédio os que escolheram outra.
Os planos de privatização da educação pública paulista são explícitos, desde seu texto “A sociedade órfã” até hoje. Nessa mesma entrevista, lê-se “O secretário da Educação de São Paulo afirmou que deve usar espaços de escolas privadas para adotar o currículo flexível no Estado previsto pela Medida Provisória que muda o ensino médio no País”. Então, o quadro que se apresenta é de aliança entre os governos federal e estadual para atacar a educação pública, em uma defesa explícita e declarada das parcerias com o setor privado como e da privatização como solução para as mazelas da educação pública.
Planos nacionais para a educação
Essa reforma, que pode ser melhor descrita como desmonte ou destruição, ocorre no contexto da PL 241/2016, que retira a garantia de um gasto federal mínimo com educação. Isso torna o quadro ainda mais preocupante, pois a previsão é de redução e congelamento dos investimentos públicos em educação por vinte anos! Se as condições da educação pública já estavam precárias, estamos prestes a perder a garantia de gasto mínimo com educação vinculado ao PIB. Sem essa garantia, fica ainda mais difícil prever como será o funcionamento da escola pública, mas podemos imaginar que cada vez menos pessoas terão acesso à educação pública. E considerando todos os acenos à privatização, o que pode estar acontecendo agora é o começo do fim da escola pública, pois com o desmonte e precarização extremas, a privatização aparecerá como saída salvadora.
A educação pública de 1964 a 1985 e suas continuidades
A ditadura civil-militar que ocorreu no Brasil (1964-1985) voltou-se para o contexto educacional visando utilizá-lo como instrumento para satisfazer à demanda das indústrias por força de trabalho, cujo interesse era promover a aceleração de seu desenvolvimento. A escola era o lugar ideal para a formação de mão-de-obra necessária, para tanto, não fazia sentido uma educação pública voltada ao desenvolvimento intelectual, apropriação de conhecimentos historicamente sistematizados ou à formação do pensamento crítico, essas diretrizes poderiam ser perigosas, afinal um povo instruído é difícil de controlar; e controle, violência e repressão eram a base desse regime.
A educação adquire um caráter tecnicista, inspirada nos princípios da racionalidade, eficiência e produtividade, objetivando neutralidade científica, agindo convenientemente a serviço do Estado. Para tais reformas na organização do ensino, o MEC firmou exatos doze acordos com agência educacional americana (acordo MEC-USAID) que compunham suas ações assentadas em três pilares ideológicos: educação e desenvolvimento, educação e segurança e educação e comunidade. Práticas aplicadas sob o autoritarismo da ditadura, para a domesticação dos filhos da classe operária.
Nessa concepção tecnicista de educação, o professor é mais um técnico na formação de seus alunos em escolas que se tornaram centros de formação profissional. As mudanças no currículo educacional consistiram na abolição das disciplinas de sociologia, filosofia e psicologia (2° grau); e na união de história e geografia, que originam estudos sociais (1° grau). O currículo foi pensado em duas partes: educação generalista e formação profissional, esta última programada conforme região e com três sugestões econômicas: primárias-agropecuária, secundária-industrial e terciária-serviços. Houve um esvaziamento do sentido e função da escola, de forma acentuada nesse período sombrio da educação brasileira sob o julgo da ditadura. Período esse que infelizmente volta à pauta, por meio do governo golpista e seus asseclas.
Não por acaso, ou coincidência, é explicita a semelhança dos modelos educacionais implantados pela ditadura, com os que, em outra roupagem, o governo golpista visa aplicar ao Ensino Médio. O objetivo é o mesmo dos anos de chumbo, arriscamos dizer, até mais pretenciosos: precarizar ainda mais a escola pública e seus trabalhadores, impor uma formação acrítica sobre a realidade, implementar um ensino tecnicista que visa mera formação de mão-de-obra, um ensino fragmentado, que não promova questionamentos nem organizações estudantis. Em suma, é uma educação para o trabalho precarizado, cerceando ainda mais as possibilidades de transformação da sociedade pela classe trabalhadora, uma educação que sustente a ordem vigente e a ideologia neoliberal.
A contemporaneidade das palavras de Paulo Freire se fazem imprescindíveis no contexto político em que vivemos: “Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”.