Linchamento no Guarujá: Morre mais uma bruxa para que a “ordem social” seja mantida
Morreu Fabiane Maria de Jesus, espancada brutalmente por outros moradores do bairro em que vivia, no Guarujá, litoral de São Paulo, por ser suspeita de sequestrar crianças para a prática de magia negra. Sua bíblia vermelha foi confundida com um livro de bruxarias. Ela teve sua cabeça batida contra o chão por diversas vezes, posteriormente atropelada por uma bicicleta, foi arrastada no chão de terra, empurrada de cima de uma plataforma e golpeada na cabeça com um porrete de madeira.
Mais uma bruxa linchada, como na Inquisição. Na Idade Média, para garantir a manutenção do status quo, tantas Fabianes e Marias serviram de exemplo em grandes exibições públicas de humilhação. São xs mais oprimidxs, as mulheres, os negros, judeus, índios, imigrantes que, historicamente, levam a culpa pelas injustiças sociais e, por isso, são vítimas daqueles que são impelidos a fazer “justiça com as próprias mãos”.
Um grande sentimento de indignação tomou a população em todo país. Afinal, uma mãe de dois filhos foi assassinada erroneamente devido a boatos que alcançaram vários estados do país. Fabiane foi associada a um retrato falado que circulava na internet de uma mulher que sequestrava crianças, divulgado pela Polícia Civíl do Rio de Janeiro em 2012. Não há casos registrados de crianças sequestradas no Guarujá.
O vídeo e imagens do espancamento percorrem as redes sociais, o que gerou uma comoção desencadeada em um grande apelo para que não se espalhem mais boatos infundados na internet. Ora, mas o que disparou esse assassinato brutal foi um boato, essa é a sua real motivação? Mas se o boato fosse real, se Fabiane sequestrasse crianças efetivamente, então o linchamento deixaria de ser um crime tão brutal e perverso?
É necessário compreender quem são as vítimas dos “justiceiros”, aqueles que se propõe a fazer justiça com as próprias mãos. Hoje, são jovens negros e pobres, em sua maioria acusados de pequenos roubos; são mulheres associadas ao profano, a puta, que não pode proteger seus filhos ou faz mal aos filhos dos outros, como no caso de Fabiane. Ontem, eram as mulheres, em sua maioria, e homens que ousavam praticar uma religião distinta da dominante, o catolicismo na Idade Média e traziam inovações culturais e científicas, aquelas que praticavam o adultério e xs homossexuais. Eram os negros no sul dos Estados Unidos no período anterior às reformas dos direitos civis da década de 1960. Ou os imigrantes na Europa, acusados de roubarem o emprego dos europeus e, por isso, causarem o desemprego.
Historicamente, as opressões são usadas para dividir a classe trabalhadora e maquiar os verdadeiros responsáveis pela desigualdade e injustiças sociais. Entre os mais excluídxs no Brasil, segundo o último IDH, são as mulheres, jovens, negras, moradoras do nordeste brasileiro. Segundo a ONU, as mulheres são 70% dos mais pobres do mundo. Em pleno século XXI, as mulheres ainda são submetidas a condições de vida muito inferiores às dos homens, o que se agrava quando falamos das mulheres negras. O patriarcado legitima o alto índice de violência contra as mulheres: a cada quinze segundos, uma mulher é agredida. Um homossexual é assassinado no Brasil, por dia, por crime de ódio.
Mulheres, homossexuais, negros estão na base da pirâmide social de poder. Em seu topo, o padrão socialmente construído como hegemônico: burgueses, homens, brancos, heterossexuais. Pronto, está desenhada as relações de poder que vivemos em nosso cotidiano. Nessa relação, mais da metade da população é oprimida e humilhada, o que produz o sentimento de inferioridade e submissão. A classe trabalhadora dividida é um perigo a menos de existirem revoltas populares geradas através do sentimento de identidade coletiva.
As opressões e discriminações, criadas com base na construção de categorias impostas como inferiores, prestam mais um grande serviço ao sistema sócio-econômico que vivemos. Esconde e mascara quem são os verdadeiros responsáveis pelas injustiças sociais.
O Brasil ainda está entre os países com os maiores índices de exclusão social e de concentração de renda. Os governantes e políticos priorizam os interesses do capital financeiro, das grandes corporações, das construtoras e empreiteiras. A educação é de péssima qualidade e é por isso que as crianças ficam soltas nas ruas. Não existem creches suficientes: 85% das crianças em idade de estarem na creche não tem acesso a este serviço público. Fabiane Maria de Jesus nada teve a ver com a responsabilidade disto.
A ideia difundida de que “bandido bom é bandido morto” inclui, implicitamente, um sujeito social: o “bandido”, responsável pelo dano ao outro, roubo e lesão. Para os preconceituosos, os bandidos são os jovens negros e pobres, não os ricos e governantes que se apropriam, efetivamente, da riqueza de nosso país. Esses nunca foram linchados. Existe uma identificação de classe, na qual o perigo e a injustiça é atribuído à classe trabalhadora.
A direita e a mídia tentam associar o caso da Fabiane e de outros de linchamento às manifestações que se espalharam após junho do ano passado, justificando que a violência promovida em tais protestos perpetuaram os linchamentos. É uma tentativa descarada de criminalizar mais uma vez as lutas sociais!
Vivemos um período histórico no qual, depois de muito tempo, a classe dominante se sente efetivamente ameaçada pela força do povo organizado. Hoje, o lucro das grandes corporações são ameaçados, o Brasil já não é um país mais tão seguro para se investir. Greves de rodoviários, estradas paradas, operários paralisando obras e fábricas. Greve dos garis, professores, servidores públicos, tudo isso ameaça a estabilidade política, como vemos na queda de popularidade de Dilma e de vários outros governantes.
O aumento nos casos de linchamento em 2014 refletem uma reação de um pensamento da direita autoritária. Neste ano, vinte pessoas foram assassinadas por justiceiros. Trinta e três já foram vítimas destes, segundo a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmera Federal.
Raquel Sheherazade, apresentadora do SBT, não é uma ignorante que não sabe o que diz. Ela sabe muito bem quem está criminalizando e culpabilizando pelas mazelas sociais. Esta a serviço da criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, uma tentativa de jogar os trabalhadores uns contra os outros e justificativa para aumentar a repressão por parte do Estado. A ideia de que a violência está aumentando justifica, ou melhor, tenta justificar o exército na comunidade da Maré, no Rio de Janeiro, as leis que colocam o país em estado de exceção, a militarização da vida. O verdadeiro controle social, o controle dos trabalhadores pela classe dominante.
Os linchamentos geram uma falsa ilusão em parte da população de que, diante da ausência do Estado, principalmente nas periferias e regiões mais pauperizadas, o povo está garantindo justiça. A direita autoritária também aparece como alternativa em momentos de crise política e econômica, como o que vivemos hoje no mundo, principalmente diante da atual crise de representatividade. Apesar de não existirem grupos fascistas crescendo no Brasil hoje, existe uma ofensiva destas ideias conservadoras, como as propagadas pela Sheherazade.
Mais do que nunca, a esquerda precisa aparecer como uma alternativa real para combater, de forma coletiva, as mazelas sociais. A unidade da esquerda e a construção de espaços amplos de discussão, troca e deliberação de um programa e plano de lutas coletiva pode mostrar uma saída distinta das individuais. Apesar dos linchamentos públicos serem em grupo, em sua grande maioria não são ações coletivas organizadas previamente, mas sim manifestações individuais de raiva e indignação.
Quando partidos e grupos de esquerda priorizam a autoconstrução ao invés da luta coletiva, estão reproduzindo a lógica do individualismo. A nossa conjuntura é outra: as lutas coletivas voltaram a obter vitórias reais. Não podemos deixar que mulheres continuem sendo apedrejadas e linchadas. Só vamos conseguir acabar com as relações de poder e opressões cotidianas se derrubarmos essa estrutura política e econômica promovida pelo sistema capitalista. É socialismo ou barbárie! E, como já estamos na barbárie há muito tempo, Fabiane que o diga, agora é hora de construir efetivamente o novo!