O fantasma de 1989 ainda assombra o governo chinês
No dia 4 de junho, completam-se vinte e cinco anos desde o massacre na Praça da Paz Celestial na capital da China. A data é um tabu na China e todo ano o governo manda prender ativistas temendo protestos que lembrem o massacre. Em Hong Kong, que ainda tem uma legislação especial separada do resto da China, as comemorações em memória do movimento de 1989 têm mobilizado cerca de 200 mil participantes cada ano. Tirar as lições dos protestos de 1989 é fundamental para ajudar a reconstruir um movimento independente da maior população trabalhadora do mundo.
Ativistas estudantis em Pequim haviam planejado protestos para coincidir com a visita do líder da União Soviética, Mikhail Gorbachev, no dia 15 de maio de 1989. Gorbachev era visto como alguém que estava promovendo uma “democratização” no Leste Europeu. Mas a morte de Hu Yaobang, ex-secretário geral do Partido “Comunista” Chinês, no dia 15 de abril de 1989, antecipou os planos.
Hu Yaobang tinha sido deposto como líder do partido em 1987, acusado de ser indulgente perante os protestos a favor de democracia em dezembro de 1986, realizados por estudantes em Pequim e Xangai. Ele também defendia que o exército chinês deveria se retirar do Tibete, onde já existia um movimento pró-independência. A ala “linha dura” da burocracia temia que isso abriria espaço para mais protestos. Com isso, pressionaram o supremo líder, Deng Xiaoping, a sacrificar seu aliado Hu que, junto com ele, havia sido pioneiro em implementar as primeiras reformas pró-capitalistas em 1978. Hu foi sucedido por Zhao Ziyang, um mais entusiástico adepto das “reformas” pró-mercado.
Divisão no governo
Mas a situação continuava instável. Em março de 1989, houveram os maiores protestos nas rua de Tibete em trinta anos. A inflação estava no nível mais alto desde a revolução de 1949 e o governo, com as medidas de austeridade, levou ao fechamento de um milhão de fábricas. No governo, havia uma divisão entre aqueles que defendiam a liberação dos preços e aqueles que queriam manter o sistema de dois preços: um regulado pelo estado e um do mercado. Esse sistema duplo abria oportunidade para especulação, o que enriquecia parte da burocracia. Zhao defendia a liberação dos preços. Isso acabaria com a especulação, mas aumentaria os preços das mercadorias, o que iria afetar os trabalhadores. O plano de preços livres foi implementado após o massacre, quando a ameaça de mais protestos foi afastada. Ironicamente, Zhao já estava em prisão domiciliar, onde permaneceria até sua morte em 2005.
Os protestos começam
No dia 17 de abril de 1989, foi realizada uma primeira marcha com 700 estudantes e professores universitários, gritando “Viva Hu Yaobang! Viva a democracia! Abaixo a corrupção! Abaixo a autocracia!”.
O movimento se espalhou para mais de 110 cidades ao redor do país, mas o centro do movimento foi a ocupação da Praça da Paz Celestial na capital Pequim. Cerca de 200 mil pessoas se reuniram no dia 22 de abril, dia do enterro de Hu Yaobang, desafiando o a proibição do governo. A praça permaneceu ocupada até o massacre. Foi declarada uma greve em vinte universidades e faculdades e a formação de uma “federação autônoma” para coordenar o movimento.
No meio de maio, trabalhadores industriais começaram a construir um movimento sindical independente do Estado. A possibilidade de um crescimento explosivo do movimento sindical independente, como ocorreu na Polônia em 1980-81 com o “Solidariedade”, atemorizou os líderes do governo chinês.
Stalinismo em crise e surgimento da ala pró-capitalista
Os governos stalinistas estavam em crise desde os anos 1970. O planejamento da economia e a estatização dos meios de produção possibilitou a rápida industrialização logo após a derrubada do capitalismo, mas a burocracia ditatorial sufocou a economia. Isso era inevitável sem a participação ativa e democrática da classe trabalhadora na gestão da economia e da sociedade – o fundamento do verdadeiro socialismo. O socialismo também não é possível em escala nacional, a esfera de poder das diferentes burocracias, mas sim com a vitória da revolução socialista internacionalmente.
Em vários países no bloco stalinista, setores da burocracia começaram a ver a reintrodução do capitalismo como uma saída para salvar seus privilégios e poderes. E a chegada ao poder de Deng Xiaoping em 1978, depois da derrota e prisão da “Gangue dos Quatro” maoísta, foi um ponto de inflexão na China. Ele começou a implementar elementos de economia de mercado, o que resultou no surgimento de uma ala conscientemente pró-capitalista nos anos 1980, liderada por Deng.
Entre 1979 e 1983, a agricultura coletiva foi destruída, com a abolição das “comunas populares”. A educação e a saúde na zona rural foram sucateadas através disso, já que eram baseadas nas comunas. Foram lançadas as “Zonas Econômicas Especiais”, onde empresas privadas internacionais poderiam investir, com mão de obra barata e sem direito dos trabalhadores se organizarem. No setor estatal, o sistema de emprego vitalício, que também dava direito a moradia, saúde, educação e aposentadoria, foi abolido em 1986. Um setor capitalista privado começou a crescer rapidamente, ao mesmo tempo em que o controle político se manteve sob o controle do partido comunista e seus líderes se tornaram bilionários.
Banho de sangue
Para conseguir retomar o controle, o governo teve que passar por um rio de sangue. Deng Xiaoping e outros dirigentes da linha dura mobilizaram 200 mil soldados para invadir a capital e esmagar o movimento. Isso é comparável com os 248 mil soldados que os EUA usaram para invadir o Iraque em 2003. Na noite entre os dias 03 e 04 de junho de 1989, foram mortos pelo menos mil pessoas no Massacre da Praça da Paz Celestial, segundo a Anistia Internacional. Outras fontes dizem que foram sete mil mortos.
Nas semanas seguintes, mais de 40 mil foram presos. Foram os trabalhadores que sofreram as piores consequências. Aqueles que organizaram ou tentaram articular greves foram executados ou condenados a prisão por muitos anos, sob acusação de serem “contrarrevolucionários”. A “Federação Autônoma de Trabalhadores de Pequim”, que chamou uma greve geral contra o ataque militar, foi acusada de planejar um insurreição armada e seus ativistas foram presos.
Caráter do movimento
Segundo a versão oficial do governo, poucas pessoas morreram e Deng Xiaoping foi forçado a agir para evitar o “caos social” e assegurar a “prosperidade da China”.
Alguns apoiadores do regime chinês dizem até hoje que o movimento de 1989 era pró-capitalista e “pró-Ocidente”. Como é comum em movimentos de massas, o movimento de 1989 era complexo e diversificado. Isso era inevitável, tendo em vista a ditadura de um partido único e a completa falta de organizações independentes da classe trabalhadora e dos setores oprimidos. Com certeza haviam setores com ilusões na democracia burguesa ocidental. Outros acreditavam que Gorbachev poderia “renovar” o socialismo. Os protestos começaram por iniciativa de intelectuais e estudantes, dos quais muitos hoje defendem o neoliberalismo. A maioria da direção não queria derrubar o governo, mas impulsionar uma mudança na balança em prol da ala “pró-reformas” no governo.
Com a entrada das massas no movimento, cresceu a oposição ao regime como um todo. Os denominadores comuns dos protestos eram as demandas democráticas e uma rejeição crescente do regime vigente, mas sem ter clareza sobre o que o poderia substituir.
Havia, especialmente entre os trabalhadores, uma preocupação com as reformas de mercado, que ameaçavam seus direitos, além de uma vontade de defender a propriedade estatal, a maior conquista da revolução de 1949. Durante todo o movimento, até o momento do massacre, os manifestantes cantavam “a Internacional” nos protestos – desmentindo que se tratavam de elementos burgueses.
O líder da Revolução Russa, Leon Trotsky, disse que uma revolução acontece quando as massas começam, elas mesmas, a formar os eventos e sentir que têm esse poder. Uma revolução política, que visava derrubar a burocracia e colocar a propriedade estatal sob o controle e gestão dos trabalhadores, estava ao alcance em 1989. Faltava um elemento vital para que o movimento pudesse ser vitorioso: que ele estivesse unificado por trás de uma ferramenta política, um partido, com um programa definido, estratégia e táticas para a luta.
Crise e protestos hoje
O rápido crescimento da economia chinesa foi usado como justificativa para o massacre de 1989 e ajudou a manter a estabilidade do governo. Mas vemos que o modelo de crescimento está se esgotando e a economia desacelerando. Há uma quantidade enorme de protestos contra a crescentes desigualdades e injustiças. Em 2010, o último ano com dados oficiais, houve 180 mil “incidentes de massas” (protestos). Recentemente, houve uma greve envolvendo 50 mil operários em uma fábrica de sapatos.
O regime está consciente dos riscos. Nos últimos anos, o orçamento policial superou os gastos do exército, mostrando que o governo teme revoltas populares. O ressurgimento de um movimento independente da maior classe trabalhadora no mundo vai ser um elemento chave na luta para abolir o sistema capitalista em escala mundial.