Um olhar excludente da cidade

O objetivo deste texto é refletir sobre o crescimento da segregação dos espaços da cidade, percebido no individualismo crescente da atual sociedade neoliberal, que só visa à maximização dos lucros de uma minoria privilegiada. Nas ultimas décadas houve um enfraquecimento da idéia de cidade como local de encontro e o crescimento dos enclaves fortificados. Esse esforço de síntese da atual situação tentara colidir com a analise de uma cena urbana. 

A análise dos discursos contemporâneos, assim como das contendas sociais e políticas, mostra uma crescente preponderância dos valores de ordem estética sobre os valores culturais de outra natureza. Isto, que alguns autores classificam como “estetização da vida”, permite dizer o mundo contemporâneo como aquele dominado, ou pelo menos tendendo à dominação, pelos juízos de gosto.

O problema maior que vislumbramos na preponderância apontada não é propriamente sua existência em si, mas a forma e o modo particular como vem se estruturando e impondo. A forma essencialmente imagética instrui uma modalidade relacional com o caráter que Guy Debord (1997) chama de “espetáculo”, a satisfazer essencialmente as exigências da acumulação ou, mais propriamente, do mercado capitalista. As construções identitárias nesse contexto, em sua multiplicidade condicionada pelos papéis sociais, não escapam à sobredeterminação da política, da estrutura de poder, através do mercado dissimulado de espaço do livre exercício do gosto. É, em outros termos, uma sofisticada subordinação da ética à política através da estética. 

Em uma lógica que opera a afirmação da diferença principalmente entre ricos e pobres e a homogeneização do modo de viver de grande parte dos mais ricos através, por exemplo, dos enclaves fortificados, estes por vezes apropriados como estratégia de resistência à violência urbana, em suas formas mais evidentes não escapa ao interesse da valorização mercadológica de imobiliárias, cujo interesse é estabelecer pela escala de consumo segundo suas ofertas as necessidades e desejos de uma parcela privilegiada da população. Sendo assim os que estão impossibilitados de consumir pela falta de recursos seriam os novos impuros, que não se ajustam à sociedade pós-moderna. Desta forma constrói-se um imaginário sobre quem pode ou não pertencer à sociedade da pureza e da organização dos espaços restritos.

Existe um processo de exclusão feito por esses enclaves fortificados da população mais pobre. Segundo KUSTER “Há varias formas de realizar este descarte, mas o certo é que, das mais claras às mais veladas, todas as formas de comportamento e construção de discursos que não falam mais em nome da cidadania e sim da segregação, contribuindo para o apartheid nas cidades, servem ao engendramento crescente de uma tensão urbana, resultante da fricção entre os diversos grupos que ali se embatem diariamente.” 1

Ainda segundo a autora “Constrói-se, na verdade a anti-cidade, já que, ao contrario dos espaços interrelacionais da cidade tradicional, estes espaços que compõe o panorama da cidade contemporânea, não possuem relação entre si, comportando-se no mapa urbano de forma pontual. O receio da violência transformado em receio do outro, do contato, ainda que visual, cria estas situações inusitadas, nas quais o território da cidade vai sendo situado, dividido em regiões, e o acesso à sua totalidade é vetado a alguns”. 2

 No neoliberalismo houve o fortalecimento do individualismo, compreendido como uma ideologia que privilegia o indivíduo em detrimento de suas formas coletivas do existir. Sendo assim, o ideal da cidade como local de encontro, da confraternização cidadã, espaço público de convivência das diferenças e de coexistência foi substituído pelos enclaves fortificados que tendem a ser ambientes socialmente homogêneos, na maioria das vezes formados por classes médias e altas.

Segundo Caldeira “Enclaves fortificados são espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho. Esses espaços encontram no medo da violência uma de suas principais justificativas e vem atraindo cada vez mais aqueles que preferem abandonar a tradicional esfera pública das ruas para os pobres, os ‘marginais’ e os sem-teto. Enclaves fortificados geram cidades fragmentadas em que é difícil manter os princípios básicos de livre circulação e abertura dos espaços públicos que serviram de fundamento para a estruturação das cidades modernas”. 3

Ainda segundo a autora “Enclaves fortificados representam uma nova alternativa para a vida urbana dessas classes médias e altas, de modo que são codificados como algo que confere alto status. A construção de símbolos de status é um processo que elabora distâncias sociais e cria meios para a afirmação de diferenças e desigualdades sociais. Uma maneira de verificar isso no caso dos enclaves paulistanos é analisar anúncios imobiliários. A publicidade de imóveis ao expressar/criar os estilos de vida das classes médias e alta revela os elementos que constituem os padrões de diferenciação social em vigência na sociedade. Os anúncios não só revelam um novo código de distinção social, mas também tratam explicitamente a separação, o isolamento e a segurança como questões de status. Em outras palavras, eles repetidamente expressam a segregação social como um valor.”  4

Segundo SANTOS “a cidade deixou de ser porque o espírito da cidade não habita mais os seus moradores. O espírito não esta mais lá, esgarçou-se até romper-se sob forças concomitantes e complementares da riqueza e da miséria, que, desenfreadas, tomaram conta do espaço e do tempo, violentando os lugares e as pessoas. (…) Os privilegiados, sentindo na pele os efeitos da desagregação, desertaram, refugiando-se nos bunkers em que se transformaram as casas, os edifícios, os shoppings”. 5

KUSTER acredita que as cidades “(…) não mais desempenham o papel de espaços de intermediação entre diferentes mundos e rotinas, passando a funcionar meramente como uma aglomeração de pessoas que não possuem mais o sentimento de pertencer a um conjunto. Há, entre esses mundos, fronteiras muitas vezes intransponíveis. (…)” 6

Neste mesmo processo, esgarçam-se o sentido do espaço urbano, o laço social e as formas de construção de cidadania. Essa segregação gera um aprofundamento dos conflitos entre as classes sociais, pois a falta de convivência gera a intolerância, o não desenvolvimento da cidadania, o medo e mais violência. No Brasil percebemos o aumento de situações extremas de conflitos entre membros de classes distintas, que pode ser exemplificado de forma emblemática através do espancamento de uma empregada domestica na Zona Sul do Rio de Janeiro confundida com uma prostituta pelos filhos de ricos moradores locais. Percebemos neste caso o estrangulamento da razão e o fortalecimento da irracionalidade, crueldade, falta de senso, limites e principalmente de ética. É o individuo descentrado da razão e próximo da barbárie, ou de uma inspiração similar em alguma medida à violência fascista, tamanho o descaso com o outro que não é encarado como igual. 

Outra cena esclarecedora foi a imagem disponibilizada na internet através do site do YouTube de ricos e famosos jogando ovos pela janela do prédio nas pessoas que passavam embaixo, colocando sua satisfação em tal atitude. Percebemos a total falta de respeito e noção de espaço público, sendo invadida e desrespeitada pela vontade privada, de certa maneira infantil e sem dúvida cruel. A relação que esta elite econômica desequilibrada estabelece com o resto da cidade e sua vida pública não é só de evitação como nos enclaves fortificados, mas literalmente de desprezo, como uma espécie de lixeira de seu mundo. Desta forma há uma recusa em conferir humanidade ao outro pobre.           

Segundo KUSTER e PECHMAN “Da ordem desejada, ou seja, daquela que nos acena com a possibilidade de um convívio sem grandes sobressaltos de violência, parece que estamos transitando para uma ordem da subordinação, esta estritamente policial, com todas as conseqüências disso para as cidades que começam a experimentar as dores e horrores de se transformar em cidadelas. Isso, sem nos darmos conta que os conceitos de ordem são diferentes, na medida em que um remete para um convívio pactuado e outro passa as mãos da polícia o ‘governo’ da cidade. Quando falha o pacto entre a sujeição, e é mais do que natural o nosso anseio diante das notícias de jornal – a cada edição que clama e reclama por ordem – em associá-la a uma ordem policial que organize e pacifique a cidade.” 7 Os autores acreditam que diferente da ordem policial a cidade – como polis – foi fundada: a Hospitalidade e a Amizade. “Se alguma disciplina devemos impor à cidade, que esta seja a disciplina da solidariedade, a norma da convivialidade”.(…) 8     

O capitalismo em sua fase neoliberal aprofundou as condições para que além do controle sobre o trabalho, a classe dominante passasse a controlar também o descanso, pois ambos são encarados como mercadoria.

Os produtos buscam meios para ser alegremente consumidos em situações de distração por aqueles que querem esquecer em suas horas livres momentaneamente os processos de trabalhos mecanizados, para que estejam após o descanso em condições de enfrentá-lo novamente.

Segundo Chauí “Qual o efeito do entretenimento como descanso? A hostilidade diante de tudo que possa ser mais do que simples divertimento, que peça atividade em vez de passividade” . 9

É exatamente em busca dessa atividade, que encontramos neste trabalho a imagem urbana selecionada retirada do documentário Milton Santos – Por uma outra globalização (2000), imagem protagonizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) visitando um shopping da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro que causou um grande estranhamento na população local presente no shopping. A população local de classe media e alta em busca da passividade encarou negativamente aqueles sem tetos que buscavam atividade, ou seja, a luta pelo direito a cidade e a diversão.

A exclusão causada pelo capitalismo neoliberal pode ser representada no vídeo de diversas formas: estranhamento no olhar das pessoas ricas com relação aos pobres através da percepção de suas roupas pobres, suas peles e cabelos mau tratados pela moradia na rua e pelo trabalho árduo; na desconfiança do policial que invade ônibus que se encaminha para o shopping tentando proibir a entrada no shopping, o que só não ocorreu porque a câmera do documentário grava tudo e um trabalhador indaga se eles são proibidos por lei de ir ao shopping, o que deixou o policial impossibilitado de ação; no constrangimento causado pela trabalhadora do MTST nos consumidores do local, só porque a trabalhadora do movimento experimentava roupas que provavelmente jamais teria condições financeiras de possuir, além do mau estar causado pelo trabalhador que pergunta quantos meses de trabalho o vendedor da loja precisaria para comprar aquelas roupas que estava vendendo. 

Todo esse estranhamento reflete uma classe media e alta que não esta preparada para conviver com a diferença; que a muito tempo abandonou a idéia de cidade como local de encontro; que prefere a segregação espacial e social; que fortalece ideais cada vez mais individualistas; que em sua maioria se assusta com os ideais igualitários que os movimentos sociais trazem de dentro de si; que procura o shopping para se afastar da pobreza e dos conflitos presente na cidade e por isso se sentiram afrontados com a cena urbana protagonizada pelo MTST. É claro que a manipulação das mídias e a falta de informação são as bases que garantem parte desta posição. Porém a busca por enclaves fortificados ao invés de garantir a paz para os privilegiados, fortalecera a segregação e o conflito de classes. Por isso é necessário retomar a idéia da cidade como local por excelência da construção da convivência, pois só assim se poderá começar a pensar como seria possível uma cidade compartilhada por todos os indivíduos. Para este ideal se concretizar precisamos construir uma sociedade socialista. 

  1. KUSTER, Eliana. Outros Olhos: as ru(s)gás da cidade e seu desvelamento nos discursos contemporâneos. p.4.
  2. Idem. p7.
  3. CALDEIRA, Teresa Pires do rio. “Enclaves fortificados: a nova segregaçao urbana”. Novos Estudos Cebrap, n.47, março 1997, p.155.
  4. Idem. p.159.
  5. SANTOS, Laymert Garcia. São Paulo não é mais uma cidade. In: PALLAMIN, Vera. Cidade e Cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo. Estação Liberadde, 2002. p.116.
  6. KUSTER, Eliana. Outros Olhos: as ru(s)gás da cidade e seu desvelamento nos discursos contemporâneos. p.6.
  7. KUSTER, Eliana e PECHMAN, Robert. “Da ordem. Da cidade. Da literaturta: personagens à beira do ‘ruim’ do mundo” in: Revista Sociedade e Espaço, Brasília, vol22-n.3, set/dez. 2007. p597.
  8. Idem. p598.
  9. CHAUI, Marilena. Simulacro e Poder – Uma análise da mídia. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. p.28.

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