As enchentes e a urbanização a serviço do capital

Enchentes

Uma enchente é, antes de tudo, o resultado indesejado de um planejamento urbano baseado em interesses lucrativos. Embora causem prejuízos durante a estação chuvosa, as enchentes foram vendidas numa transação lucrativa como sendo parte do “kit urbanização”, isto é, como efeito direto do loteamento de áreas de várzea para o mercado imobiliário e construção de avenidas nas margens e leitos de rios, atendendo aos interesses do setor automotivo e seguindo a lógica do “rio para carros”. Ao construir em áreas que pertencem aos rios certamente corre-se risco de alagamento, pois durante o período chuvoso é normal que os cursos d’água transbordem e ocupem a várzea, ou planície de inundação.

Urbanização para carros e especulação imobiliária

Numa sociedade governada pelo poder econômico é ele que determina como será o crescimento dos centros urbanos. Em grandes cidades como São Paulo, o que prevaleceu não foi o interesse da população por áreas verdes, parques e rios livres de poluição. A urbanização paulistana foi ditada basicamente pelo Plano de Avenidas de Prestes Maia, prefeito biônico nomeado pela ditadura Vargas entre 1938 e 1945. Como o próprio nome do plano dizia, a prioridade foi construir avenidas em todas as direções e garantir que a indústria automobilística pudesse despejar seus carros, motos, ônibus e caminhões na cidade. Hoje existem 7,4 veículos para cada 10 habitantes na cidade de São Paulo, totalizando 8,6 milhões de veículos. A indústria automobilística necessitava de avenidas e o plano de Prestes Maia foi feito sob medida para esta necessidade, rivalizando contra o plano de urbanização elaborado por Saturnino de Brito, que previa mais espaços verdes e procurava respeitar as áreas dos rios.

A especulação imobiliária também se beneficiou com o plano de Prestes Maia na medida em que as avenidas valorizavam o terreno ao redor. Rios inteiros foram aterrados, loteados e vendidos, gerando, de um lado, lucro para poucos, e de outro lado, transtornos para a cidade em épocas de chuva. O município de São Paulo foi construído em cima de 200 cursos d’água e todos eles tornaram-se invisíveis ou viraram esgoto a céu aberto. Ocorre que os rios sempre reivindicam seu espaço no verão, momento em que as grandes cidades sofrem com as enchentes. 

Descaso dos governos

Todo ano é a mesma coisa. Após uma precipitação torrencial de verão muitas pessoas pobres perdem seus bens, suas vidas e as autoridades sempre culpam a chuva. O manual seguido por prefeitos e governadores diz que a responsabilidade pelas enchentes nunca deve ser atribuída aos governantes ou ao plano de urbanização da cidade, mas sempre a chuva. 

Picos de chuva durante o verão não são raros e é possível se preparar para eles. A forte precipitação de 24 horas entre os dias 9 e 10 de fevereiro em São Paulo acumulou 114mm de chuva e provocou o caos, mas esse volume é comum e dentro do esperado para um período de chuva. Na véspera do natal de 2019, por exemplo, choveu mais de 100 milímetros em 24 horas. Precipitações acima de 100 milímetros, portanto, podem ocorrer frequentemente dentro de um período de 24 horas e isso não é novidade.

Como são possíveis de serem previstas, as enchentes só ocorrem devido ao descaso do poder público, que não implementa uma política de curto, médio e longo prazo para combater o problema. Os “piscinões”, que deveriam ser entendidos como medida paliativa de curto prazo, tornaram-se a principal política de combate às enchentes e já se mostraram incapazes de eliminar as inundações. A escassez de investimento agrava a situação e revela a falta de prioridade dos governos em acabar com as enchentes. De acordo com levantamento feito pela GloboNews, o governo do estado de São Paulo deixou de investir 42% da verba prevista no combate a enchentes nos últimos dez anos. O orçamento previsto neste período foi de R$ 6,2 bilhões, mas somente R$ 3,6 bilhões foram usados. No ano passado, Dória-PSDB usou apenas R$ 301 milhões, dos R$ 760 milhões previstos. No município de São Paulo não foi diferente e o tucano Bruno Covas usou somente 48% do orçamento para prevenção de enchentes. Seria necessário investir R$ 973 milhões, mas somente R$ 474 milhões foram utilizados. Em Belo Horizonte – MG, palco de uma mega enchente que provocou uma situação de calamidade pública no final de janeiro, apenas 20% do orçamento para combate a enchentes foi usado, de acordo com um levantamento feito pela câmara dos vereadores. Dezenas de pessoas morreram em função do descaso do poder público.

Pobres são os que mais sofrem

A estação chuvosa traz pânico à população pobre porque são os mais pobres que ocupam e vivem nas chamadas áreas de risco. Essas áreas são perigosas devido ao alto risco de inundação e/ou deslizamento durante as chuvas. 

A especulação imobiliária expulsa os mais pobres em direção às áreas de risco com seus aluguéis e imóveis cada vez mais caros, confinando milhares de pessoas em locais que são uma verdadeira armadilha. A população pobre perde suas casas, bens materiais, dias de trabalho e horas de sono com as chuvas, mas não podem contar com ressarcimento dos seguros. Muitas vezes são obrigados a recomeçar do zero, sem nenhum apoio dos governos. Não são poucos os casos de vítimas fatais nas áreas de risco, infelizmente.

Essa situação torna urgente que as cidades invistam num plano de moradia segura, garantindo habitação digna longe das áreas de risco. Há espaço e imóveis suficientes para isso, mas é preciso coragem para enfrentar a especulação imobiliária e tratar a questão da moradia como um direito essencial, não como mercadoria.    

Aquecimento global torna as cidades mais vulneráveis

O aquecimento global, entendido como o aumento da temperatura dos oceanos e do ar próximo à superfície terrestre, já é uma realidade e vem provocando eventos meteorológicos dramáticos. Períodos de estiagem ou de chuva abundante sempre existiram, mas o aquecimento global está levando esses fenômenos ao extremo e alterando sua frequência, causando chuva em excesso ou secas prolongadas. 

Durante o verão de 2013 e 2014 a região metropolitana de São Paulo passou por uma grande estiagem e milhões de pessoas sofreram diante das mudanças climáticas e da falta de planejamento do governo Alckmin-PSDB, num episódio lamentável que ficou conhecido como “crise hídrica”. Naqueles anos houve o perigo real de colapso do abastecimento de água para mais de 20 milhões de pessoas. A situação foi tão grave que até hoje o maior reservatório de água de São Paulo, o sistema Cantareira, não se recuperou.

Este ano foi a vez de Minas Gerais passar por um evento severo, mas ao contrário da estiagem, o que veio foi um dilúvio de proporções catastróficas. Janeiro de 2020 já entrou para a história como sendo o mês mais chuvoso de Minas desde que as medições se iniciaram em 1910, com incríveis 942,3 mm acumulados ao longo mês. O recorde anterior era de 850,3 mm, registrado em 1985 também em janeiro. A capital Belo Horizonte ficou em baixo d’água e bateu o recorde de dia mais chuvoso da história em 24 de janeiro, quando desabou 171,8mm em 24 horas. Esse volume superou o recorde anterior, de 164,2mm registrado em 14 de fevereiro de 1978. O mês de janeiro terminou com 55 mortos e 101 cidades em estado de emergência em Minas Gerais.

Ao contrário do que pode parecer, tragédias desse tipo não decorrem do clima, mas da relação entre os eventos climáticos extremos e os problemas urbanísticos e sociais das cidades. Em outras palavras, as cidades precisam equacionar seus problemas sociais e de urbanização para que possam passar por eventos climáticos extremos sem que isso se transforme em tragédias.

Por um planejamento ecossocialista das cidades

O planejamento urbano feito sob interesses capitalistas edifica e organiza as cidades segundo a necessidade do capital, não das pessoas – menos ainda da natureza. Todo metro quadrado deve ser organizado a partir da geração de lucro que o território urbano pode propiciar ao capitalista. Tudo deve virar terreno para ser comercializado: rios, parques, escolas. A título de exemplo, no ano passado o prefeito de São Paulo, Bruno Covas-PSDB, incluiu o terreno de três escolas públicas municipais para ser privatizado.

O crescimento vertical das cidades revela a incessante busca de maximização do lucro pela especulação imobiliária, multiplicando os metros quadrados do solo vinte andares acima e empilhando as famílias em apartamentos cada vez menores.

A mobilidade urbana baseada no transporte individual é o sonho das montadoras, mas um pesadelo para a população, que sofre com engarrafamentos, ruído e problemas de saúde, inclusive muitas mortes. Não é exagero afirmar que as grandes cidades pertencem aos carros.

Cidades assim, que são a realidade no mundo capitalista, ignoram os mais pobres, produzindo milhares de sem-teto e aniquilam a natureza, transformando tudo em concreto e asfalto.Para solucionar problemas como enchentes, falta de moradia, escassez de área verde e transporte caótico é necessário um planejamento ecossocialista das cidades, com investimentos maciços em transporte coletivo de qualidade e gratuito, com expropriação dos imóveis vagos da especulação imobiliária para transformá-los em moradias e equipamentos públicos como parques, escolas, universidades, museus, etc. A cidade não pode ser um grande negócio para poucos donos. A cidade deve pertencer a quem a construiu e nela trabalha e vive.

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