Lições da ocupação da reitoria da USP

O movimento nacional que se iniciou com a ocupação da reitoria da USP tem importantes lições para os ativistas do movimento estudantil. Após 51 dias, os estudantes mostraram a força potencial que existe em uma ação unificada com os funcionários e professores. Não obtiveram uma vitória completa, mas conquistas que, por mais parciais e limitadas que sejam, são um indício do que pode ser obtido. O maior saldo foi o início de uma mobilização que se espalhou pelo país inteiro, o que pode dar um salto de qualidade na organização do movimento estudantil e na superação da UNE, transformada num aparelho de transmissão do governo e que nem mesmo tenta dar uma aparência de oposição mesmo aos governos do PSDB como o de José Serra em São Paulo.

Início da Ocupação

O movimento se iniciou como reação aos decretos do governo do estado, que atacavam frontalmente a autonomia das universidades e eram um novo passo no desmonte da educação pública. Criavam a Secretaria de Ensino Superior, desvinculavam as FATECs da UNESP, não aumentavam as verbas para o ensino superior e obrigava as universidades a pedirem autorização ao governo do estado para praticamente cada gasto que tivessem. Diante disso, desde o inicio do ano os três setores das universidades (professores, funcionários e estudantes) começaram discussões e mobilizações visando a luta contra estes decretos.

A ocupação começou quase por acaso, sem qualquer previsão de nenhum dos participantes do movimento. Estava marcada uma audiência pública com a reitora Suely Vilela para discutir os decretos. Ela disse que não viria, mas mandaria um representante na pessoa do vice-reitor. Este não compareceu, e em vista disso as 300 pessoas presentes no auditório decidiram ir à reitoria para entregar uma série de reivindicações. Quando chegaram lá, o prédio da reitoria estava cercado por policiais. Isso fez a paciência dos estudantes explodir, eles forçaram a entrada e conseguiram entrar.

A partir daí iniciou-se um dos maiores movimentos das três universidades estaduais paulistas. A ocupação deu um tremendo impulso à mobilização, chegando a ter assembléias com 2 mil pessoas, e dando impulso à greve, que até então estava num estado de indefinição. Também inspirou movimentos similares de ocupações na UNESP de Franca, em universidades de Alagoas, Bahia, Rio Grande do Sul, etc. Fez o governador Requião revogar decretos que tinham a mesma essência que os do governo Serra em São Paulo, declarando que não “queria uma crise como a da USP no Paraná”. O movimento ampliou suas pautas para questões que contemplavam o acesso e democratização da universidade, assim como a assistência estudantil.

Fizemos enormes atos nas ruas, como o do dia 31 de maio, quando a tropa de choque nos impediu de chegar ao Palácio do Governo, declarando que lá era uma “área de segurança”. Ficamos cinco horas parados, causando um enorme congestionamento e chamando a atenção da sociedade para a nossa causa. Conseguimos fazer um encontro estadual de estudantes das universidades paulistas, com cerca de 500 pessoas, e um encontro nacional dos estudantes em luta, com 800 pessoas, contando com estudantes do Paraná, Bahia e RJ.

Mas nem tudo foi fácil na ocupação. Houve problemas e limitações que precisam ser levados em conta, para podermos ter um balanço equilibrado do movimento e sabermos onde podemos avançar e o que precisamos superar para avançar a luta.

Anti-partidarismo e dificuldades do movimento

Uma das principais características do momento atual é o descrédito com a forma de organização partidária. A falência do PT como uma referência de lutas é um fenômeno que será observado por muito tempo, assim como a desilusão e descrédito dos partidos que tentam preencher este vazio. O anti-partidarismo foi uma marca muito forte na ocupação desde o inicio, alimentado tanto pelo papel que jogaram as organizações de ultra-esquerda, que tentavam de forma oportunista fomentar este sentimento para seu próprio crescimento, quanto pela política equivocada que tiveram em vários momentos PSOL e PSTU. Por causa da demora em perceber a amplitude que o movimento estava tomando, e avaliando que seria melhor sair antes que o perigo de uma reintegração de posse através da tropa de choque ocorresse, defenderam a desocupação num momento em que o movimento ainda estava em ascensão.

Apesar de levar em conta considerações e preocupações legítimas, pois se houvesse um enfrentamento com a polícia, o movimento poderia entrar num refluxo de vários anos, a realidade mostrou que esta avaliação estava equivocada, por várias razões da própria conjuntura. Mas isto não impediu que a ultra-esquerda alimentasse o anti-partidarismo, o que fez com que a ocupação ficasse muitas vezes dividida e não conseguisse o grau de coesão necessário para ampliar a greve. Qualquer proposta de ir aos cursos era encarada por muitos como uma proposta de abandonar a ocupação e isto fez com que muitas vezes não houvesse a mobilização adequada nos cursos.

A ocupação e o crescimento das lutas

É importante localizar o movimento das universidades no contexto geral de lutas que ocorreram após o encontro nacional contra as reformas neoliberais do dia 25 de março. Após 4 anos de governo Lula anestesiando a oposição às suas políticas de ataque aos direitos dos trabalhadores, começa uma nova etapa de enfrentamento e resistência. O MST começa uma nova onde de ocupações de terra, servidores federais do Incra, Ibama se mobilizam contra a tentativa do governo federal de restringir o direito de greve. No estado de São Paulo, havia a mobilização e indicativo de greve dos professores da Apeoesp e saúde contra a nova proposta de previdência estadual, que retirava mais direitos. Os metroviários se mobilizavam contra a demissão e perseguição política a diretores de seu sindicato.

Havia a proposta de um dia nacional de mobilizações para o dia 23 de maio, com a possibilidade até de uma greve dos metroviários e dos professores. Se isto realmente acontecesse, colocaria o governo Serra numa situação bastante séria do ponto de vista de poder enfrentar o funcionalismo unificado e poder reprimir os estudantes da USP.

Infelizmente, as direções majoritárias destes sindicatos, a Articulação-PT e PCdoB, voltaram atrás e de forma vergonhosa abortaram a greve do funcionalismo. Apesar da retórica radicalizada que foram obrigados a adotar, permitiram que passasse o novo projeto de previdência estadual e que os diretores combativos dos metroviários fossem demitidos. No dia 23 de maio, enquanto a Conlutas, Intersindical, MST e MTST conseguiram organizar um ato que chegou a ter 6 mil pessoas, o ato que a CUT chamou à parte, não chegou a ter mil pessoas. Quanto à UNE, nem neste dia nem em qualquer outro da greve das estaduais chegou a mostrar sua cara, mostrando que não consegue nem mesmo posar de oposição. Esta postura da UNE deve ser levada em consideração quando os setores combativos que ainda estão nesta entidade forem discutir o seu futuro.

Em vista disso, a greve das universidades estaduais permaneceu como o único ponto de resistência ao governo. Mas sua continuidade dependeria do grau de unidade que conseguisse e do apoio que tivesse na sociedade. Em 31 de maio, Serra emitiu um “decreto declaratório”, que oficialmente tinha a função de esclarecer o “real conteúdo” dos decretos, mas que na prática era um recuo, retirando as universidades do âmbito dos decretos e na prática esvaziando a Secretaria de Ensino Superior de qualquer função. Foi uma clara tentativa de dar o anel para não perder os dedos, ou, no mínimo, não ser obrigado a recorrer a uma desocupação violenta que repercutiria e desgastaria seu governo. Ainda há alguns pontos ambíguos, pois a Secretaria ainda existe e pode, no futuro, tentar interferir na autonomia das universidades.

Após muitas negociações e ameaças vazias, a reitora propôs ao movimento uma concessão: construção de 300 vagas de moradia estudantil, 198 no campus Butantã e o resto entre São Carlos e Ribeirão Preto; abertura do restaurante universitário aos sábados e domingos, transporte gratuito para os moradores do Crusp no fim de semana; uma audiência pública sobre o Inclusp (projeto de inclusão social para estudantes de escola pública, que ganham 3 pontos a mais no vestibular); e a convocação do V congresso da USP. Não foram todas as reivindicações exigidas pelos estudantes e demorou duas semanas para se chegar a uma solução do impasse.

Lições da ocupação

É importante colocar aqui que, por mais importante que foi o movimento de estudantes, ele sozinho não teria forças suficientes para impor uma derrota ao governo. Um movimento estudantil, como a história demonstra várias vezes, é importante porque é um sintoma do mal-estar que perpassa por setores da sociedade e pode ser o detonador de importantes movimentos da classe trabalhadora. Muitas vezes, durante a ocupação, se fizeram paralelos com o maio de 68 na França, um movimento que a princípio começou como uma agitação estudantil e terminou na maior greve geral da história francesa, com 10 milhões de trabalhadores nas ruas, fazendo o governo de Gaulle pender por um fio.

É importante colocar aqui o contexto nacional. O movimento estudantil está saindo de uma fase em que não houve grandes mobilizações. Houve greves, parciais e localizadas, que algumas vezes conseguiram pequenas vitórias, outras foram derrotadas (como a greve das estaduais de 2005 em que os estudantes foram reprimidos). A UNE, que deveria ser a referência para a luta estudantil, está do outro lado da trincheira, se associando às universidades privadas e o governo, defendendo o Prouni, que é mais uma etapa de privatização do ensino superior, não se preocupando mais em ter uma aparência minimamente combativa. Isso foi um fator que impediu que houvesse um movimento nacional de luta pela educação nos últimos tempos, além das ilusões suscitadas pela chegada de Lula ao poder e suas políticas que possuem uma máscara de inclusão social, mas são apenas a continuidade da orientação neoliberal de privilegiar o ensino privado.

Por isso, a ocupação da reitoria da USP é importante. Porque assinala uma nova etapa de mobilizações. Não que daqui por diante haverá uma mobilização massiva nas universidades por todo o país. A própria ocupação mostra que ainda estamos numa fase de transição, com características de retrocesso, na qual a perda das organizações tradicionais de referência não joga um papel pequeno. Mas daqui por diante, não estaremos limitados apenas a uma fase de tentativa de resistência, que será possível organizar resistências concretas que poderão arrancar vitórias.

A ocupação pode ser um exemplo do tipo de movimento que teremos daqui por diante. Um movimento radicalizado, disposto a derrotar um ataque à educação pública, mas também com fortes traços de antipartidarismo e até de despolitização, sem uma referência de lutas, como no passado tiveram o DCE (direção majoritária do PCdoB) e a UNE. A disposição de luta e a criatividade demonstradas foram combinadas com demonstrações de individualismo e intolerância de discutir posições e propostas, se estas fossem identificadas como “de partidos”. Atos e encontros massivos, que tiveram propostas de mobilizações e campanhas, não encaminhavam coordenações que pudessem concretizar estas propostas e elas ficavam dependentes do estado de ânimo do momento.

A ocupação terminou quando uma assembléia decidiu aceitar as propostas da reitoria. Era necessário encerrar naquele momento porque, com a saída da Adusp da greve, se verificou um refluxo, com assembléias de estudantes de várias faculdades decidindo o retorno às aulas. Também houve a desocupação da Unesp de Araraquara pela tropa de choque, indicando que poderia haver um endurecimento do governo, após ter passado o perigo de uma mobilização geral do funcionalismo, e ter visto o nosso enfraquecimento. Ter saído naquele momento, de forma disciplinada, era uma necessidade para que o movimento não perdesse tudo o que tinha conquistado até ali. Uma desocupação violenta e o fim da greve por absoluta falta de forças para continuá-la abriria espaço para a repressão e perseguição dos ativistas estudantes e funcionários.

Aí se mostraram também os limites do antipartidarismo. Partindo de um receio e uma desconfiança sincera de muitas pessoas, decepcionadas com a falência das antigas organizações da classe trabalhadora, ele passa a se constituir como uma ideologia que chega a ser reacionária, pois impede que se possa fazer uma avaliação correta da situação, se guiando unicamente pelo preconceito contra os partidos. Isto levava, por exemplo, ao paradoxo de reuniões de organização dos independentes, à parte das plenárias e fóruns de organização geral do movimento. Outros fatos eram as posturas individualistas de pessoas que queriam se colocar acima do movimento, invocando seus direitos como pessoa, contrárias às deliberações gerais.

O mais grave é que este preconceito impedia a discussão de táticas e perspectivas para o movimento, e a absolutização da ocupação, não tendo uma idéia do que fazer depois dela, algo que poderia por a perder o acúmulo de forças que se tinha obtido. A luta contra os ataques neoliberais à educação continua, e ela tem agora mais condições de arrancar vitórias do governo, mas para isso precisa superar as limitações que o antipartidarismo e a falta de uma alternativa conseqüente significam.

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