Fundamentos iniciais sobre o método de organização de um partido revolucionário

Imagine a seguinte situação: uma trabalhadora, Maria das Dores, ao lidar e refletir de forma sistemática quanto às contradições do mundo presente, obtêm um avanço na sua consciência e compreende a necessidade de mudar o mundo. A partir dali, ela deseja transformar a realidade em que vive – ou seja, atuar enquanto classe para si. Ela percebe que lutar de forma individual é inútil. Para isso procura uma organização política onde atuar.

A concepção oportunista na construção do partido

Inicialmente, Maria das Dores se filia a uma organização de ativistas ampla, sem muitos critérios para participação e filiação. Ela se empolga com as discussões presentes nessa nova organização, apesar das poucas reuniões regulares e da enorme transitoriedade de ativistas. Cada encontro era um rosto novo ou alguém que tinha saído. A pessoa que dirige esta organização diz que a mesma é horizontal, portanto, não há hierarquia, o que a empolga. Numa manhã de domingo, o telefone de Maria das Dores toca: é o tal dirigente pedindo a companheira que apareça com rapidez em um “espaço extremamente importante”. Ela vai sem titubear no espaço e não compreende muita coisa. Há diversas pessoas, inclusive muitas que saíram da sua organização e algumas, por exemplo, que não foram em nenhuma reunião. Começa uma série de votações naquele ambiente e o dirigente pede para que Maria das Dores levante o braço, sem entender o que está acontecendo. Ela se recusa, assim como outras pessoas. Nisso, há pessoas votando de formas diferentes, assim como alguns votando somente por acatar as ordens daquele dirigente, sem ao menos saber o que se tratava. Isso irrita Maria das Dores, que vai embora pra sua casa.

Pois bem, este método que se diz “descentralizado” de organização, embora sempre tenha um dirigente que procure alinhar o pensamento único, não é novo na história da organização da classe trabalhadora. Julius Martov (1873-1927), em meados de 1900, defendia essa concepção de organização junto ao Partido Operário Social-Democrata Russo – ou seja, um partido que fosse amplo, sem rigor na filiação de militantes. Afinal, era mais interessante ter um partido com maior representação do que um partido disciplinado. Martov iria desenvolver sua concepção de partido, compreendendo que o mesmo tinha que ser atrativo para a nova burguesia que surgia na Rússia naquele momento. Ele e seus seguidores eram conhecidos como mencheviques. Em 1917, após o partido bolchevique chegar ao poder, Trotsky foi sucinto ao demonstrar a falência desta proposição de organização partidária de Martov. Afinal, os mencheviques foram relegados à “lata de lixo da História’, pois tal compreensão do método de organização não impõe clareza de qual projeto de sociedade se construir para a classe trabalhadora, além de permitir o autonomismo – ou seja, ações individuais, em detrimento de uma compreensão coletiva de intervenção. O objetivo não é ter uma intervenção concreta num período revolucionário, mas sim responder pragmaticamente às demandas do contexto presente.

Resgatando a história anterior, percebemos em Maria das Dores uma inconveniência com essa forma de organização de partido. Ao chegar em casa, a trabalhadora refletiu sobre outros grupos políticos naquele espaço que votavam de forma unitária e não confusamente como a sua organização, da qual ela já se desligara. Porém, nossa heroina percebeu que nesses grupos haviam duas formas de se posicionar no espaço: um grupo debatia previamente o que fariam, enquanto outro grupo somente obedecia ordens de uma pessoa. Curiosa diante dessa diferença, Maria das Dores resolveu conhecer ambos os grupos. Primeiro, foi na reunião da organização que satisfazia às ordens de uma pessoa.

Introdução ao centralismo democrático

Ao chegar lá, essa pessoa apresentou a organização a Maria das Dores. Disse que defendiam um método disciplinado de militância, onde as reuniões eram regulares e se estabeleciam critérios para acompanhar os espaços e discussões internas. Diante da confusão do que tinha sido sua primeira experiência, a trabalhadora se empolgou e dispôs a fazer uma experimentação com essa nova concepção de construção. O indivíduo, em especial, disse que naquela organização havia direção e base, portanto, ele era o dirigente responsável por organizar toda a base, incluindo Maria das Dores. A trabalhadora percebeu já algumas diferenças se comparada à organização anterior: nessa haviam critérios de militância, portanto, não existia a transitoriedade de pessoas como na anterior. Para atuar lá, era necessário cumprí-los. O dirigente expôs que eles trabalhavam com um método denominado de centralismo democrático, onde a base e direção tinham uma relação dialética. Ou seja, um não vivia sem o outro, tudo que era encaminhado era o resultado do acúmulo de discussão de ambas. Maria das Dores descobriu que esse método foi desenvolvido por Lênin, embora Marx e Engels tenham dado um pontapé já na I Internacional no século XIX.

Diferente de Martov, Lênin, líder do Partido Bolchevique, compreendia que um verdadeiro partido revolucionário, que vislumbrasse ser a vanguarda da classe trabalhadora, deveria iniciar em sua organização interna um método que priorizasse a disciplina e o centralismo. Para participar deste partido, o militante deveria cumprir critérios como:

  • Cotização, para auto-financiamento da organização, compreendendo que a mesma não depende de aparatos da burguesia;
  • Estar envolvido em alguma frente para a construção da organização. Rosa Luxemburgo diz que “quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem”. Elemento fundamental para todo militante de um partido de vanguarda. Estar em alguma frente, seja sindical, popular ou estudantil, é basilar para construir sua organização. Essa construção envolve três momentos:
    I) Propaganda, onde o militante desenvolve, na frente em que atua, intervenções no cotidiano dos trabalhadores que permitam o avanço da sua consciência de classe – ou seja, a demonstração de que a raiz dos problemas da exploração do homem pelo homem e da divisão entre classes se encontra no capitalismo;
    II) Agitação: a agitação é a etapa de apresentação da organização em que atua. A principal ferramenta é o jornal, instrumento que sintetiza a linha política da organização (análise conjuntural, mobilização etc.). Porém, hoje com as novas mídias virtuais, torna-se fundamental apresentar as outras ferramentas de comunicação da organização, além de intervenções culturais, dentre novas ações ampliadas com a experiência da classe trabalhadora.
    III) Para por fim a organização, processo amadurecido do partido, onde o mesmo cumpre um papel real de organizar a classe trabalhadora e transformar a realidade.
  • Participação em algum organismo de base. Como todo órgão do ser humano é formado por tecidos, ou seja, células integradas, assim é uma organização. Para seu perfeito funcionamento, a mesma deve ter suas células funcionando com a devida salubridade em perfeita sintonia com as demandas de todo o órgão, numa relação dialética! Esses organismos de base (células) são os espaços de discussão e intervenção na realidade concreta, são o espelho da direção.

Maria das Dores compreendeu que toda organização socialista ou comunista tem uma direção. Algumas se assumem, de forma honesta e outras se omitem passando a falsa impressão de horizontalidade, como foi o caso de sua experiência anterior. A direção (também chamada de comitê central ou comitê nacional) é votada democraticamente em congresso bienal e assume a responsabilidade de responder por suas decisões, sendo o reflexo do acúmulo desenvolvido pela base do partido nas células, podendo sofrer recursos de qualquer instância de base, caso alguma deliberação vá em desencontro a mesma. Nos períodos pré-congressuais, plenárias ou conferências, são divulgados boletins internos de discussão para o parecer das instâncias de base, que também têm autonomia para a construção de documentos. Frações são permitidas em períodos congressuais, sendo diluídas após o processo, afinal no centralismo democrático o que é deliberado pela maioria tem que ser acatado. Caso persista com frações pós-congresso, as mesmas podem sofrer sanções e num estágio extremo, a expulsão.

Desvios do centralismo burocrático

Maria das Dores, apesar de ter compreendido o método de organização do partido e se afinado a ele, começou a se desgastar com os excessos cometidos pela direção desta. Percebeu que as discussões e as intervenções da base eram ligeiramente desprezadas. A partir daí, ela apreendeu que não estava mais lidando com o centralismo democrático, mas sim, com o centralismo burocrático, modelo onde a direção se preocupa apenas em conservar seus cargos, promover acordos por cima, desprezar a base e perseguir aqueles que divergem internamente de tal concepção. Característica presente na degeneração dos partidos comunistas no período estalinista, já na III Internacional.

Por quê centralismo democrático?

Esse balanço, orientou Maria das Dores a procurar aquela organização onde as votações eram discutidas uma a uma, onde o centralismo democrático era praticado de fato. Onde as instâncias de base funcionavam e a direção se relacionava dialeticamente com a base num processo de totalidade. Ela percebeu que, como pontuou Trotsky, já na IV Internacional no seu Programa de Transição: “Sem democracia interna não existe educação revolucionária. Sem disciplina não há ação revolucionária. Os […] princípios do centralismo democrático [são] a completa liberdade na discussão e total unidade na ação.”.

Diante disso, devemos compreender o método do centralismo democrático, não como um preciosismo na condução de políticas no cotidiano, mas sim, como uma proposta de organização que vá permitir a construção ampla de todo um partido onde seus militantes estejam convencidos da necessidade de transformar a realidade e edificar uma nova sociedade convergentes com os parâmetros estabelecidos pelo legado do movimento socialista mundial.

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