Luta em defesa da água na Irlanda
Na Irlanda, assim como no Brasil, a população também está se mobilizando para garantir o direito à água. Desde o fim do ano passado, centenas de milhares de pessoas já participaram de vários protestos contra o pagamento da nova taxa sobre a água criada pelo governo.
Até 2014, a Irlanda era um dos poucos países do mundo onde não havia taxas sobre o consumo de água e saneamento básico. Desde 1977, a distribuição de água potável era responsabilidade das prefeituras, que recebiam cerca de 1,2 bilhão de euros (mais de 4 bilhões de reais) por ano do governo federal para manter o sistema funcionando. O direito à água era garantido a todos e nenhuma família precisava pagar um centavo por isso.
Em 2010, em meio à crise econômica mundial, o governo da Irlanda decidiu assumir uma gigantesca dívida de 103 bilhões de euros (mais de 350 bilhões de reais) para salvar os bancos falidos do país. Entretanto, quem pagou o pato por essa dívida foram os trabalhadores e os mais pobres.
Para garantir o pagamento da dívida, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional (FMI) impuseram um pacote de medidas de austeridade ao governo da Irlanda. Como parte desse pacote, o governo anunciou em novembro de 2010 a criação de uma taxa sobre o consumo de água. A nova taxa seria cobrada a partir de outubro de 2014, custando 176 euros (600 reais) por ano para cada residência, mais 102 euros (348 reais) para cada adulto na família. Além disso, cada casa terá um limite anual de consumo de 30 mil litros de água por ano. Acima desse limite, serão cobrados 4,88 euros (cerca de 17 reais) para cada mil litros extras.
Resistência nas ruas e nas urnas
O governo da Irlanda esperava que o povo aceitasse calado essa nova e abusiva taxa. Aos poucos, entretanto, a população começou a se organizar e resistir. Ainda em 2013, aconteceram os primeiros protestos contra o plano de implementar as cobranças. A partir de agosto de 2013, quando o governo começou a instalar hidrômetros pelas casas em todo o país, houve diversos confrontos entre moradores e a polícia.
Mas foi apenas em 2014 que começou a resposta explosiva das ruas. Em 11 de outubro do ano passado, mais de cem mil pessoas participaram de um grande protesto contra a cobrança em Dublin, capital do país. Logo depois, no dia 1° de novembro, mais de 150 mil foram às ruas em toda a Irlanda.
Desde então, novos protestos têm acontecido a cada mês nas principais cidades do país, o mais recente no último dia 21 de março. Esses atos são organizados por diversos sindicatos e coletivos, como a Aliança Anti-Austeridade (Anti-Austerity Alliance) e a Rede de Não-Pagamento (Non-Payment Network), com grande participação do Partido Socialista, a organização-irmã da LSR na Irlanda.
Além disso, mais de um milhão de famílias se recusaram a responder aos formulários de cadastro enviados pelo governo, que são necessários para efetuar a cobrança.
Paul Murphy, militante do Partido Socialista, foi eleito deputado nas eleições do dia 12 de outubro, derrotando candidatos dos partidos de direita e de centro-esquerda. Sua principal bandeira durante a campanha foi a defesa da luta contra a taxa da água e a construção de um movimento de não-pagamento dos impostos.
Em um discurso no parlamento no fim de outubro, Paul Murphy chocou os demais políticos ao rasgar os formulários de cadastro enquanto fazia um discurso condenando as taxas da água. “Os trabalhadores deste país não querem essas taxas. Nós não vamos nos cadastrar, nós não vamos pagar e vamos fazer com que essas taxas sejam abolidas!”, disse o deputado.
Existe também uma grande apreensão entre a população de que, caso o governo insista com a cobrança das taxas, o próximo passo seja a privatização do sistema de água na Irlanda. Uma privatização significaria a queda de qualidade dos serviços, um aumento ainda maior das taxas e a demissão de milhares de trabalhadores do setor de água e saneamento.
A polícia e o governo vêm tentando de todas as formas conter a onda de protestos. Assim como no Brasil, a mídia tenta jogar a opinião pública contra os manifestantes, taxando a todos como “baderneiros”. No dia 15 de novembro, na cidade de Tallaght, dezenas de manifestantes, incluindo Paul Murphy, cercaram o carro da vice-primeira-ministra Joan Burton. A polícia atacou o protesto com violência, agredindo os manifestantes desarmados com cacetetes e spray de pimenta. Nem a vice-primeira-ministra nem os policiais saíram feridos. Entretanto, as TVs e os jornais imediatamente declararam que Joan Burton havia sido “atacada” e até mesmo “sequestrada”!
No dia 2 de fevereiro, Paul Murphy e outros ativistas (incluindo três menores de idade) foram presos injustamente, apenas por terem participado do protesto. Ao longo de cinco dias, mais 17 pessoas foram detidas, sendo liberadas logo em seguida. Essas prisões tiveram o objetivo claro de criar medo na população para tentar desmobilizar os próximos protestos!
A luta continua!
Os primeiros boletos de cobrança das novas taxas de água devem chegar às casas dos trabalhadores no início deste mês. Apesar das campanhas de intimidação por parte do governo e da polícia, boa parte dos irlandeses não concorda com as cobranças ou se recusa a pagar.
“Mesmo entre as pessoas que dizem que irão pagar as taxas, a maioria não concorda com as cobranças. Muitos irão pagar por medo de represálias, já que nosso governo tenta convencer as pessoas pelo medo”, disse Ruth Coppinger, também deputada pelo Partido Socialista.
Segundo uma pesquisa realizada pelo jornal Irish Times em dezembro, cerca de um em cada três irlandeses pretende não pagar as taxas. Já em uma outra pesquisa publicada pelo portal The Journal em 16 de janeiro, 73% das pessoas declararam que não irão pagar as novas taxas. “O não-pagamento em massa das taxas pode derrotar o governo e suas tentativas de nos intimidar. A maior parte dos irlandeses estará participando dessa campanha de desobediência civil. Isso irá pôr tanta pressão no governo que eles não terão outra alternativa a não ser abolir as cobranças”, declarou Paul Murphy em um comício no dia 1° de abril deste ano.