Chefi di guerra ka muri – O Chefe de Guerra não morreu!

     Na noite de 20 de Janeiro de 1973, em Conakry, Amílcar Cabral foi surpreendido por um grupo de homens. Estavam armados e, por isso, antes de reconhecer os seus rostos, o líder do PAIGC pôde antever o destino. Os tiros soaram com rasgos de luz na escuridão. A traição foi consumada. Mas ao cair ante os pés daqueles a que fraternamente chamara camaradas, tingido em jorros pela cor da revolução, Amílcar não se tornou cadáver, senão semente.

     Quase quarenta e nove anos antes da fatídica noite, a 12 de Setembro de 1924, Amílcar Lopes Cabral nascia, em Bafatá, filho de Juvenal Cabral, funcionário público, e Iva Pinhel Évora, oriundos da ilha de Santiago.

     Ainda menino, revelou-se um estudante brilhante no ensino primário e a sua mãe, já separada do pai, trabalhou esforçadamente como operária, costureira e lavadeira, a fim de custear os seus estudos liceais em Cabo Verde. Iniciava-se a década de 1940 e, sob a indiferença do regime, a fome ceifava a vida a milhares de cabo-verdianos [1]. Rebentavam revoltas nas ilhas. E do suor e do sangue destes trabalhadores africanos, tal como das monstruosidades da Segunda Guerra, brotou a consciência revolucionária do pequeno Amílcar. O seu amadurecimento dar-se-ia mais tarde, em Lisboa, para onde o jovem embarcou após concorrer com sucesso a uma bolsa da Casa de Estudantes do Império (CEI).

     Chegado à metrópole para estudar agronomia, envolve-se na luta antifascista ao lado do PCP. Foi uma época de grande actividade política e intelectual. Na CEI circulava literatura proibida de autores marxistas e romancistas russos e brasileiros, tal como obras da Harlem Renaissance e da Négritude. De facto, na caricatura que figura no seu livro de fim de curso, o jovem é retratado vertendo lágrimas sobre as Ilhas de Cabo Verde e segurando livros com os nomes de Engels e Dostoievski [2].

     Antes de regressar a África, Cabral pôde conhecer aqui grande parte da intelligentsia que viria a dirigir os movimentos nacionalistas africanos.

     O homem que desembarca em Bissau em 1952 é já experimentado na militância política clandestina, mas conhece mal a situação socioeconómica guineense. É desempenhando funções de engenheiro agrónomo, em contacto com outros militantes revolucionários, que Cabral tem oportunidade de conhecer os mecanismos de exploração e opressão a que o colonialismo submetia a população, enquanto elabora estudos sobre a agricultura da colónia.

     Devemos recordar-nos que o sistema colonial criara dois estatutos sociais para os africanos, o de indígena e o de assimilado, e que, quando Cabral regressa a Bissau, 99.7% da população guineense é considerada indígena e despojada de quase todos os direitos [3]. Nestas circunstâncias, o trabalho político era difícil. A primeira tentativa de levá-lo a cabo foi através da criação de um Clube Desportivo, possivelmente em 1954 [4], com jovens guineenses de ambos os estatutos sociais. No entanto, os objectivos deste clube foram frustrados tanto pela administração colonial, que se opunha a qualquer organização que integrasse indígenas, como pela traição de alguns membros que denunciaram o verdadeiro cariz das actividades às “autoridades coloniais”. Se Cabral já era conhecido da PIDE em Lisboa, passa a estar igualmente sob vigilância da PSP de Bissau.

     Depois disto, retorna a Lisboa e trabalha como engenheiro agrónomo ao serviço do Gabinete de Estudos Agronómicos e da Junta de Investigação do Ultramar, o que lhe permitia viajar com frequência, especialmente para Angola.

     Até 1959, ano em que regressaria a Bissau, Cabral serviu-se da sua profissão para fazer viagens com fins políticos, participando na fundação e organização de vários movimentos anticoloniais. A data oficial de fundação do PAIGC [5] encontra-se dentro deste período, no entanto, deverá ter sido mais tardia na verdade [6].

     Em todo o caso, pouco depois do Massacre de Pindjiguiti — a 3 de Agosto de 1959, quando a polícia colonial chacina dezenas de estivadores em protesto contra as condições miseráveis de trabalho no porto —, Cabral fixa-se na Guiné e, encontrando já as condições sociais necessárias para a luta armada, mergulha na clandestinidade. É a 23 de Janeiro de 1963, com o ataque ao Quartel de Tite, que o PAIGC inicia a luta armada, dirigido por um guerrilheiro a quem chamavam Abel Djassi. Este não era outro senão Amílcar Cabral.

     As forças imperialistas procuraram assassinar Cabral sem sucesso ao longo de toda a luta de libertação, que durou 10 anos. Durante este tempo, com um número de combatentes muito menor e equipamento de qualidade inferior ao exército português, o PAIGC e o povo da Guiné e Cabo Verde, sob orientação de Cabral, derrotaram as forças portuguesas. Criaram-se estruturas de poder popular, construíram-se escolas, clínicas e todas as infraestruturas necessárias ao desenvolvimento humano das zonas libertadas, tanto quanto era possível durante uma guerra. A revolução florescia — o país marchava rumo ao Socialismo.

     Mas não há revolução sem contra-revolução. Em África, o colonialismo dava lugar ao neocolonialismo, definido sucintamente por Cabral como dominação indirecta do capital imperialista sobre um país “por meio dum poder político composto, na sua maioria ou na totalidade, de agentes autóctones” [7].

     Uma vez que o diminuto proletariado urbano e o vasto campesinato — dadas as suas condições materiais de existência — eram incapazes de apreender o quadro geral das relações de classe ou de controlar o aparelho de Estado imediatamente após a independência, o poder político teria necessariamente de passar das mãos do grande capital imperialista para as mãos da pequena-burguesia nacional. Ora, esta classe, não estando directamente envolvida no processo de produção, não pode controlá-lo nem preservar o poder político que ele sustenta. As únicas classes capazes de o fazer, após um processo revolucionário numa colónia, são a burguesia imperialista (estrangeira) e a classe trabalhadora nacional [8].

     Concluiu Cabral que a classe pequeno-burguesa teria de enfrentar um dilema: ou entregava o poder político ao capital imperialista e se tornava, parafraseando Nkrumah, “correia de ligação” entre este e as massas africanas exploradas [9]; ou entregava o poder aos trabalhadores e, nisto, se suicidava como classe “para ressuscitar como trabalhador revolucionário” [10]. O desenlace dependia do nível de consciência revolucionária e da dimensão do sector com essa consciência dentro da classe.

     A esta teoria, que a história corroborou, chamamos hoje a Teoria do Suicídio de Classe. Uma coisa, contudo, restou por dizer: a pequena-burguesia pode fazer a sua escolha antes de destruir o colonialismo. E assim o fez, escolhendo a traição e purgando o seu sector revolucionário.

     Amílcar Cabral cometeu suicídio de classe, abdicou de todos os privilégios de uma vida confortável ao serviço do governo fascista-colonialista português e juntou-se aos trabalhadores do mundo na luta pela emancipação da Humanidade. Foi inimigo declarado de todos os que ansiavam vender-se ao capital imperialista — por isto foi assassinado.

     Hoje, os contributos teóricos do camarada Amílcar Cabral para a teoria revolucionária marxista são armas de que dispomos. Cabe-nos a nós, os vivos, manejá-las habilmente na continuação da luta contra o imperialismo. É essa a única homenagem digna daquele que o povo nomeou Chefi di Guerra.



[1] Julião Soares Sousa, Amílcar Cabral (1924 – 1973) (Vida e morte de um revolucionário africano). 1ª ed. Lisboa: Vega, 2011. p. 101.
[2] Julião Soares Sousa, ob. cit.
[3] Idem, ibidem. p. 167.
[4] Idem, ibidem. p. 173.
[5] Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde.
[6] Idem, ibidem. p.184.
[7] Amílcar Cabral, Guiné-Bissau — Nação Africana Forjada na Luta. 1ª ed. Lisboa: Publicações Nova Aurora, 1974. p. 47.
[8] Amílcar Cabral, ob. cit. p. 54.
[9] Kwame Nkrumah, A Luta de Classes em África. 2ª ed. Lisboa: Sá da Costa, 1977.
[10] Amílcar Cabral, ob. cit. p. 55.


O texto reflete a posição do autor e do Coletivo Rubra que não é uma seção nacional do CIT em Portugal.

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