A Constituição e os Trabalhadores: Uma relação histórica com muitos problemas

     Há 25 anos, nosso país passou por um momento chave de sua história. Após uma longa ditadura que uniu empresários e militares para operar reformas “modernizantes” com mãos de ferro – reformas essas que não trariam nenhum benefício aos trabalhadores – no ano de 1988 vimos ser assinada a nova constituição que iria reger o novo momento político anunciado como democrático.    

     Após os anos de ditadura, este momento encheu a esquerda de esperanças, que desde meados dos anos de 1980 vinha se organizando para participar ativamente da tão esperada Assembleia Nacional Constituinte. Hoje, 25 anos depois, vivendo de baixo de um regime que se diz uma democracia – mesmo sendo de tipo burguesa – nos vemos obrigados a lembrar às autoridades de certos direitos aprovados naquela época. Um desses momentos foi a greve dos professores no Rio de Janeiro, em que prefeito e o governador desrespeitaram indiscriminadamente os direitos dos trabalhadores. Se por um lado os professores reivindicavam a constituição para se proteger, por outro, o desfecho da greve, muito aquém daquele que poderia alcançar se deu por uma brecha desta mesma Carta Magna: O poder normativo da justiça sobre a legislação sindical permitiu que o Supremo Tribunal Federal mediasse a alta pressão que os trabalhadores estavam fazendo de forma direta aos governos. Tanto o desrespeito aos direitos quanto a solução judicializada da greve nos impele a fazer uma reflexão mais aprofundada sobre nossa constituição, o processo constituinte dos anos 1980 e o lugar dos trabalhadores nessa história.

     Como já dito anteriormente, a constituição é fruto do momento de transição entre a ditadura e a democracia burguesa, mas que ditadura e que transição foram essas? Ao contrário do que muitos pensam o golpe de 1964 não veio para impedir a implantação do comunismo no Brasil, não era essa a proposta que estava colocada na reivindicação pelas famosas Reformas de Base. O que realmente estava posto era a ampliação da democracia burguesa bastante restrita na época, ampliação não apenas política\eleitoral, mas sobretudo econômica. Contudo, para a burguesia dependente de um país periférico não existem muitos anéis a ceder, e rapidamente se chega aos dedos. Era necessário, para esta burguesia, modernizar o país de maneira a se adaptar às exigências do capitalismo mundial, mas esta modernização deveria ser conservadora: não trazer nenhum benefício para os subalternos. Como fazer isso se a população está indo às ruas pedir justamente melhores condições de vida? A solução só poderia ser o endurecimento do regime.

     A partir dos anos de 1974, feitas as reformas burguesas necessárias, o regime vai entrar em processo de abertura. Esta, por sua vez vai se dar, nas palavras do presidente, Geisel, de forma “lenta, gradual e segura”. Segura, claro, para a burguesia. Em que pesem as mobilizações pela abertura – que foram de grande importância – este processo terá um grande ímpeto de manter as estruturas conservadoras agora com uma capa democrática, porque a repressão intensa não se sustenta pra sempre.

     A cereja do bolo desse processo é a Constituinte de 1988, pois é o momento em que as regras do jogo democrático-burguês serão definidas e, em teoria, deverão ser cumpridas por todos. O saudoso sociólogo, militante e constituinte Florestan Fernandes, nos relata em seus artigos escritos para a Folha de São Paulo, reunidos no livro A Constituição Inacabada, as manobras e golpes que os setores da ordem promovem para assegurar suas consolidações. Apenas um exemplo: a esquerda se organiza para levantar a bandeira de uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva, em que fossem eleitos congressistas que tivessem exclusivamente o encargo de pensar a constituição, mas o que vai se operar é uma constituinte feita pelo Congresso regular eleito em 1986. A constituinte será então diluída entre todas as outras atribuições de um Congresso.

     Mesmo com os diversos golpes a esquerda não vai esmorecer, vai levar suas propostas ao congresso e tentar se organizar para aprovar suas pautas. Consegue de fato algumas coisas, (voto dos analfabetos, direitos relacionadas à questão indígena e negra, direitos das mulheres etc), em função da possibilidade da sociedade enviar propostas através das emendas populares. Mas aquilo que realmente a classe empresarial precisava preservar ficou a salvo: Sua vantagem no conflito direto entre capital e trabalho.

     Infelizmente não será possível aqui aprofundar muito nessa questão, mas com relação ao trabalho a constituição prepara o terreno para a chegada do neoliberalismo e da cada vez maior flexibilização do trabalho. Para dar um exemplo, Em 1966 as categorias que tinham direito a estabilidade depois de algum tempo de trabalho têm esse dispositivo substituído pelo FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço). Esta insegurança, que é reafirmada em 1988, não apenas é altamente lucrativa para a empresa, como atrapalha o trabalhador a exercer os direitos de organização e luta adquiridos em 1988. Por essa razão, direito de greve e livre organização sindical só existem com força para o setor publico, e mesmo assim, como acabamos de observar, com muitas dificuldades.

     Estes dois direitos citados acima, mesmo com suas limitações foram importantes vitórias no processo constituinte. Porém, a mediação do STF, as sentenças de ilegalidade emitidas pelos juízes e a coragem dos governos de desrespeitar o direito de greve – com ameaças de demissão e assédio moral – na greve dos professores cariocas, mostra que no final quem decide é o juiz. É evidente, como começamos dizendo, que a justiça tem poder normativo sobre a organização dos trabalhadores, e a constituição de 1988, apesar de anunciar ter acabado com o maior entrave que já existiu à luta dos trabalhadores – a legislação sindical corporativa que vinculava o sindicato ao ministério do trabalho – deixou a salvo um dispositivo que permite ao Estado prender as rédeas da classe trabalhadora sempre que essa lhe produza a ameaça de por 100.000 pessoas na rua. Cabe a nós ter clareza de que, apesar das brechas (sempre fruto da luta), na democracia burguesa as leis não servem para proteger o oprimido, mas para mantê-lo nesta condição. A partir desse entendimento podemos aproveitar direitos que ajudem a fortalecer as possibilidades de luta, mas tendo claro que o direito é uma velha raposa da burguesia que quando o capital está ameaçado mostra o rabo. Em suma, verdadeira democracia não está na atitude de igualar diferentes perante a lei – isso só reforça a diferença – a verdadeira democracia está na extinção completa da desigualdade econômica, da diferença de classes, no socialismo.

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