Oriente Médio: Um novo equilíbrio de poder, um cessar-fogo frágil e Trump
Trump será o presidente dos EUA que mais apoiará Netanyahu e a extrema direita
O Oriente Médio continua a ser o centro das notícias mundiais, com eventos dramáticos e mudanças em ritmo acelerado. As principais mudanças recentes podem ser resumidas da seguinte forma:
- O equilíbrio geral de poder na região mudou, destacando-se pelo colapso do regime de Assad na Síria. Israel e a Turquia fortaleceram suas posições, enquanto o Irã e seu “eixo de resistência” sofreram uma grande derrota, pelo menos por um período.
- O acordo de cessar-fogo em Gaza expõe a destruição total da faixa e as enormes carências sociais e materiais. O frágil acordo não oferece paz ou soluções reais.
- Com Trump na Casa Branca, a ameaça contra o povo palestino aumentou drasticamente.
Nos últimos dias, 300 mil palestinos retornaram ao norte de Gaza, a maioria deles caminhando pelas duas estradas principais. No meio do caminho, no corredor de Netzarim, no centro de Gaza, essa massa de pessoas que sofria de trauma, desnutrição e doenças teve que passar por um controle de segurança no estilo de um aeroporto, administrado por uma empresa estadunidense, antes de chegar a seus bairros completamente destruídos. Lá, centenas de pessoas faziam fila para receber rações mínimas de pão e água. O norte de Gaza não tem assistência médica, eletricidade ou moradia. Os 600 caminhões de ajuda por dia prometidos no acordo de paz estão longe de ser o que é necessário. A situação vai piorar com a decisão de Israel de banir a ACNUR, o órgão da ONU que lida com os refugiados palestinos desde 1949. Além disso, Trump também bloqueou mais ajuda direta dos EUA.
Ainda assim, os relatos falam de um clima de orgulho pelo fato de terem conseguido retornar, não sendo expulsos “para sempre” como em 1948 ou 1967. No entanto, esse sentimento de ter escapado de uma nova Nakba foi imediatamente abalado por Donald Trump, que exigiu que a população de Gaza fosse deportada para a Jordânia e o Egito em uma grande operação de limpeza étnica. Trump levantou essa questão pela primeira vez no último fim de semana e a tem repetido desde então, inclusive em telefonemas para o rei Abdullah da Jordânia e para o governante ditatorial do Egito, general al-Sisi.
Trump e Israel
Com Trump, fica claro que o imperialismo dos EUA não é apenas um patrocinador na região, mas agora está tentando ser o diretor. A sombra e o punho de Trump estão em toda parte. Os regimes de Amã e do Cairo se opuseram às suas exigências, mas Washington tem uma influência significativa, pois ambos os estados recebem grande ajuda dos EUA. Ambos os regimes viram como a pressão de Trump forçou o presidente da Colômbia, Petro, a recuar em poucas horas e aceitar a deportação de migrantes com concessões simbólicas em troca, na melhor das hipóteses. Quando Trump suspendeu toda a ajuda externa, as exceções anunciadas foram para Israel e Egito, com Trump descrevendo al-Sisi como um amigo próximo. O Egito e o Catar atuaram como representantes dos EUA nas negociações para o acordo de cessar-fogo.
As deportações em massa de Gaza ainda não são o resultado mais provável a curto prazo, mas a última palavra está longe de ser dita.
Isso é enfatizado pelo fato de que as ações e os comentários de Trump foram totalmente elogiados pelos líderes da extrema direita israelense, o ministro das finanças Smotrich e Ben-Gvir, que renunciou ao cargo de ministro da segurança em protesto contra o acordo de cessar-fogo.
O cessar-fogo foi seguido por uma ofensiva militar do exército israelense em Jenin, na Cisjordânia. Isso confirmou que o governo de Netanyahu é o fator mais desestabilizador da região, usando continuamente métodos militares brutais e provocações. Duas brigadas foram enviadas para atacar Jenin dois dias após o acordo de cessar-fogo, usando escavadeiras, jatos de ataque, drones e forças terrestres. Elas atacaram o campo de refugiados de Jenin e dois hospitais, matando dezenas de pessoas e forçando milhares a evacuar. Todas as estradas para as áreas palestinas na Cisjordânia ocupada foram bloqueadas.
Isso foi feito para mostrar que a guerra genocida ainda não acabou e, possivelmente, também para provocar resistência que levaria a ataques militares ainda piores. O exército coordenou com colonos o ataque a vilarejos, protestando contra a libertação de prisioneiros palestinos como parte do acordo de cessar-fogo. Esse ataque também foi o que impediu Smotrich de deixar o governo. Ele viu esse ataque como o início da anexação total da Cisjordânia, ao mesmo tempo em que exigia que a guerra em Gaza continuasse após a primeira fase do acordo de cessar-fogo.
Tudo isso aconteceu com total apoio de Trump, que suspendeu as sanções de Biden contra alguns colonos de extrema direita. O governo israelense também libertou os colonos que estavam detidos.
Além disso, Trump também decidiu começar a enviar as bombas de uma tonelada que Biden bloqueou temporariamente.
Trump será o presidente dos EUA que mais apoiará Netanyahu e a extrema direita. Sua escolha para embaixadores na ONU e em Israel tem as mesmas posições que os colonos de extrema direita, com Mike Huckabee, embaixador em Jerusalém, afirmando que não existe povo palestino.
Cessar-fogo, mas sem paz e sem plano
O frágil cessar-fogo começou em 19 de janeiro, um dia antes da posse de Trump. Naquele dia, 46.913 palestinos em Gaza haviam sido oficialmente mortos desde 7 de outubro de 2023, sendo que o número real de vítimas provavelmente é muito maior. A primeira fase, de 42 dias, começou com a troca de reféns e prisioneiros, o que, obviamente, é bem recebido pelas famílias e pela população em geral, juntamente com o próprio cessar-fogo. Portanto, manter essa fase é do interesse tanto do governo de Israel quanto do Hamas. Mas não há garantias.
O acordo de cessar-fogo entre Israel e o Hezbollah no Líbano foi implementado em 27 de novembro. Desde então, as forças israelenses realizaram mais de mil ataques, com a destruição de 39 vilarejos. Os moradores do sul do Líbano relatam que a verdadeira demolição começou após o cessar-fogo, quando os ataques de drones e da força aérea foram substituídos por tropas terrestres. O exército israelense deveria ter se retirado após dois meses, em 27 de janeiro, mas o acordo foi prorrogado até 18 de fevereiro. Ainda há um milhão de refugiados no Líbano devido à invasão e aos bombardeios de 2024.
Basicamente, tudo sobre Gaza foi adiado para as fases dois e três do último acordo de cessar-fogo. O acordo não fala sobre o fim da guerra nem diz nada sobre suas raízes: a ocupação, a opressão militar, o cerco e os assentamentos ou o papel do imperialismo.
A segunda fase, com negociações que devem começar em 4 de fevereiro, inclui a retirada total do exército israelense. No entanto, Netanyahu já declarou que eles não deixarão o Corredor Filadélfia na fronteira com o Egito, e é muito provável que o Corredor Netzarim também seja mantido por Israel. Além de tudo isso, há a pressão da extrema direita para abandonar o cessar-fogo e, em vez disso, continuar a guerra genocida. Netanyahu e Trump, é claro, não teriam problemas em culpar o Hamas e lançar novos ataques.
No momento, entretanto, Trump prefere se apresentar como um “pacificador”. Para o Hamas, a principal questão na fase dois é a libertação de todos os reféns, o que significa perder sua principal alavancagem.
Governando Gaza?
A ideia de Gaza ser administrada por um “governo técnico” com o apoio do Egito, dos Emirados Árabes Unidos e do Marrocos, auxiliado pela AP, foi lançada pelo governo Biden. Esses regimes árabes autoritários estão solidamente com o imperialismo dos EUA e, portanto, com Israel, mas também estão sob pressão das massas em seus próprios países.
A aposta de Trump é em um acordo com a Arábia Saudita. Os “acordos de Abraão” que estabelecem vínculos diplomáticos e econômicos normalizados entre Israel e os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein foram assinados durante o primeiro mandato de Trump em 2020, seguidos por acordos com o Marrocos e o Sudão. Para o regime saudita, esse acordo beneficiaria sua economia, suas forças armadas e seu relacionamento com os EUA. Trump já recebeu uma promessa de Muhammed bin Salman, o governante da Arábia Saudita, de investimentos de 600 bilhões de dólares nos EUA, para os quais Trump disse que esperava, em vez disso, 1 trilhão de dólares. Para Gaza, no entanto, “o príncipe Muhammed teria dito aos interlocutores estadunidenses que teme seguir o caminho de Anwar Sadat, o líder egípcio assassinado depois de fazer a paz com Israel”, relatou a Economist.
Os governantes dos Emirados Árabes Unidos e da Arábia Saudita não estiveram do lado do Hamas, que recebeu apoio do Irã, do Catar e da Turquia. Agora, depois de mais de 15 meses dos piores bombardeios da história, o Hamas ainda continua sendo a única força em Gaza. Ele foi severamente enfraquecido, com um número estimado de 18 mil de seus combatentes mortos. Mas, como disse o Secretário de Estado dos EUA Anthony Blinken, que acaba de deixar o cargo, eles recrutaram o mesmo número de novos combatentes durante a guerra. Foram as tropas do Hamas que escoltaram os reféns a serem libertados como parte do acordo de cessar-fogo, sua força policial está nas ruas novamente e as autoridades locais, com 18 mil funcionários, tentaram retomar o trabalho.
A guerra genocida não conseguiu destruir o Hamas, da mesma forma que a guerra e a ocupação do Afeganistão pelos EUA não erradicaram o Talibã. Em Israel, a guerra garantiu a sobrevivência do governo, mas de forma alguma a segurança da população.
O imperialismo dos EUA, o governo de Israel e os regimes árabes capitalistas não têm planos para Gaza e para os palestinos, além da continuidade da opressão nacional e do controle militar.
A fase três, que trata da reconstrução de Gaza e do futuro político da faixa, está ainda mais distante de qualquer solução. O governo de Netanyahu mantém seu objetivo de guerra declarado de erradicar completamente o Hamas.
Ele também excluiu a Autoridade Palestina, que governa as áreas palestinas na Cisjordânia, de qualquer papel em Gaza, apesar de a AP geralmente agir como uma subcontratada do Estado israelense. A AP é amplamente corrupta e repressiva, enquanto a popularidade do Hamas aumentou com a libertação de prisioneiros palestinos.
No ano passado, o parlamento de Israel também reafirmou sua oposição a um Estado palestino. De modo geral, Netanyahu se recusou a apresentar qualquer plano para o futuro de Gaza, enquanto muitos de seus aliados defenderam a continuação da ocupação militar e novos assentamentos.
Os acordos de Oslo, há três décadas, já provaram a impossibilidade de estabelecer um Estado palestino capitalista com algum grau de independência. Por meios militares, o Estado de Israel manteve o controle da economia e das fronteiras, enquanto aumentava maciçamente os assentamentos na Cisjordânia. Isso estabeleceu a base para figuras como Smotrich e Ben-Gvis.
Novo equilíbrio de poder regional
Esse acordo de cessar-fogo já havia sido apresentado, em todos os detalhes, no final de maio do ano passado, e acordado pelo Hamas em julho. Desde então, houve uma grande mudança no equilíbrio de poder na região, com base nos ganhos militares de Israel.
Em setembro, o país infligiu uma importante derrota ao Hezbollah, inclusive matando seus líderes. Estima-se que 80% dos mísseis do Hezbollah tenham sido destruídos. Isso foi contra uma força muito mais formidável do que o Hamas, que havia passado pela guerra de 2006, na qual Israel não conseguiu derrotá-lo, e desempenhou um papel importante na guerra civil síria. O Hezbollah agora está recuado, perdendo o controle do primeiro-ministro e do presidente do Líbano.
Em 26 de outubro, a primeira troca direta de ataques entre Irã e Israel se intensificou com o exército de Israel alegando ter destruído 90% da capacidade de produção de mísseis balísticos do Irã. O ataque foi considerado como uma preparação para um ataque ainda maior contra o programa nuclear do Irã.
Depois veio a Síria, onde o regime de Assad, que parecia ter garantido seu poder com a ajuda da Rússia, do Hezbollah e do Irã, e restaurado suas relações com outros regimes árabes, caiu como um castelo de cartas. Isso rompeu a linha de abastecimento do Irã para o Hezbollah, cortando em pedaços o “eixo de resistência” de Teerã. O exército israelense agiu imediatamente, destruindo a força aérea, a frota naval e os depósitos de armas da Síria. Em seguida, Israel avançou pelas Colinas de Golã, que ocupa desde 1967, entrando na zona desmilitarizada, não muito longe de Damasco.
Essa sequência de eventos enfraqueceu muito o regime iraniano, e um novo ataque a Israel, que era esperado, nunca aconteceu. Isso também enfraqueceu a Rússia na região e em nível global.
A posição mais vantajosa de Israel, enfraquecendo a oposição oficial e criando arrogância em seu governo, ajudou a concretizar o acordo de cessar-fogo. Outros fatores importantes foram a crescente pressão dentro de Israel por um acordo e a vitória eleitoral de Trump.
Netanyahu quer estar o mais próximo possível de Trump, especialmente em relação ao Irã. Trump prometeu “pressão máxima” sobre o Irã (como na maioria das questões), mas, no curto prazo, ele parece esperar que a pressão force Teerã a ceder sem um conflito armado. Os belicistas em Israel querem um ataque ao Irã para impedir que ele desenvolva armas nucleares. No entanto, um ataque não pode garantir esse resultado e, em vez disso, poderia incentivar o regime iraniano a acelerar o processo. O conflito regional aproximou o Irã da Rússia e da China no conflito interimperialista, com um novo acordo assinado com a Rússia neste mês.
Em um determinado estágio, o regime israelense pode ultrapassar os limites dos EUA, sabendo que receberá apoio de qualquer forma. Mas, no curto prazo, Netanyahu quer evitar qualquer problema com Trump e, em vez disso, espera obter seu apoio total para novas escaladas no futuro.
Novo regime instável na Síria
É nesse novo ambiente que o regime do HTS, que chegou ao poder na Síria após a queda de Assad, está tentando se equilibrar. Ele é dependente da Turquia, que foi o padrinho de seu poder na região de Idlib. O novo governo de Damasco tem como base os ministros de Idlib. Ao mesmo tempo, teme incomodar demais Israel ou os EUA. Ele introduziu partes de seu programa islâmico, com limites aos direitos das mulheres, um novo currículo nas escolas e mesquitas nas universidades, mas não teve o poder de implementá-lo totalmente. Quanto à política econômica, lançou um grande programa de privatização, tentando atrair investimentos estrangeiros, e preparou-se para demitir mais de 100 mil funcionários do setor público.
O chamado Exército Nacional Sírio, operado a partir da Turquia, está atacando as áreas curdas no noroeste, mas até agora a Turquia tem se abstido de um ataque total. Novamente, o motivo pode ser o fato de que nem o governo do HTS nem os EUA querem uma nova guerra. Os EUA também temem um novo crescimento do Estado Islâmico e precisam das forças curdas.
A Turquia deve ganhar, tanto em termos de poder regional quanto econômico, com a reconstrução da Síria. Por enquanto, o principal objetivo do HTS é permanecer no poder, esperando o apoio dos países árabes. Em 29 de janeiro, seu líder Ahmed al-Sharaa tornou-se formalmente presidente. Ele fala sobre eleições daqui a quatro anos, provavelmente uma estimativa de quanto tempo levará para consolidar o poder.
Papel da classe trabalhadora
O novo equilíbrio de poder na região não significa que ele não será desafiado. Para os socialistas, são os movimentos de massas da classe trabalhadora e das massas pobres de toda a região que são decisivos para mudar a situação.
Em Israel, as conquistas militares de Netanyahu deram a ele uma vantagem em relação aos partidos oficiais de oposição durante a guerra. Mas os protestos de massas contra seu regime também mostraram a força potencial dos trabalhadores e dos jovens. O ataque de 7 de outubro resultou em uma onda de propaganda reacionária e apoio à guerra. Agora, o resultado não é o que Netanyahu prometeu.
O movimento contra a guerra na região e em nível global precisa continuar, exigindo o fim da ocupação, do cerco e da opressão – as raízes da terrível guerra e dos massacres. Isso deve estar vinculado a um programa de demandas democráticas e sociais e a lutas organizadas em locais de trabalho, escolas e comunidades. Os trabalhadores precisam de sindicatos combativos e partidos políticos de massas da classe trabalhadora para lutar por seus interesses.
A luta pela libertação da Palestina recebeu apoio de massas internacionalmente e assustou as classes dominantes. A solidariedade e as discussões sobre o caminho a seguir continuarão a ser fundamentais para os trabalhadores e jovens do mundo todo. Os comentários das pessoas em Gaza incluem tanto críticas quanto elogios ao Hamas. Para a maioria, no entanto, está claro que o ataque reacionário da organização em 7 de outubro de 2023 não libertou o povo palestino, nem as ações de seus aliados no Irã ou no Hezbollah. É preciso tirar lições da primeira intifada e das lutas pelas bases, das revoluções e das lutas pela libertação. A derrota da ocupação e a solução da questão nacional estão ligadas a uma luta contra o imperialismo e o capitalismo e por um programa socialista revolucionário.