Mesa renuncia depois de protestos massivos

Carlos Mesa foi o segundo presidente a renunciar o cargo depois de protestos populares na Bolívia em menos de dois anos. Ele se junta à lista crescente de presidentes que foram derrubados por movimentos de massa que lutam contra o neoliberalismo no continente.

Durante mais que três semanas, protestos de massas se espalharam pelo país, com bloqueios de estradas, greves e marchas. Os bloqueios de estradas atingiram 80 por cento das estradas e isolaram quatro das dez maiores cidades, entre elas a capital La Paz. Em vários lugares manifestantes ocuparam poços de petróleo.

A reivindicação central defendida pelo movimento é a nacionalização do petróleo e do gás – expulsar as empresas multinacionais como Repsol (espanhola), Total (francesa), British Gas e British Petroleum (britânicas), Petrobras (brasileira), Enron (estadunidense), Shell (holandesa/britânica) que controlam a exploração de petróleo e gás, num valor de 100 bilhões de dólares. Isso é visto como a única saída para os dois terços da população (a porção é ainda maior entre os índios, que constituem 65 por cento da população) que vivem em pobreza.

Os manifestantes também desafiaram o sistema do país. Vários movimentos reivindicaram um novo governo de trabalhadores e de camponeses e uma ruptura com o capitalismo neoliberal.

Embora o novo presidente, o ex-presidente da Suprema Corte Eduardo Rodriguez, ter conseguido fechar um acordo de trégua com a COB (a central sindical combativa de Bolívia) e a Fejuve (Federação de Associações de Moradores, que organiza moradores da cidade pobre de El Alto, que foi o foco dos movimentos desde 2003) a classe dirigente da Bolívia está longe de obter controle sobre a situação. O movimento de mineiros, cocaleiros, camponeses, grupos indígenas, professores, estudantes etc, tem mostrado uma combatividade excepcional repetitivamente. Se o novo governo não implementar nenhuma medida apontando a nacionalização do petróleo e do gás o movimento pode retomar a luta, mesmo antes das novas eleições no fim do ano, já que poucos confiam no sistema político corrupto. Porém, se o movimento falhar em mostrar uma saída do impasse, inevitavelmente vai vir momentos de desgaste que abrirá espaço para iniciativas das forças reacionárias. A construção de um partido socialista revolucionário capaz de unir os movimentos combativos atrás de um programa socialista e de apresentar uma estratégia de como arrancar o poder das mãos da elite corrupta será decisiva.

História de exploração

A questão central que tem impulsionado o movimento nesse último período tem sido o controle dos recursos de petróleo e gás do país. Durante centenas de anos as riquezas do país foram pilhadas por forças imperialistas, com a ajuda de uma pequena elite doméstica. Durante a era colonial uma montanha de prata foi roubada do país. No século 20 era a vez do estanho, o que levou à revolução 1952 que forçou a nacionalização das minas. Agora se trata do gás e do petróleo (mas também a luta contra a privatização da água e a crescente produção de soja, da qual fazendeiros brasileiros controlam 35 por cento). A Bolívia tem a segunda maior reserva de gás da América Latina, só atrás da Venezuela. O valor desses recursos, 100 bilhões de dólares, corresponde a 12 vezes o PIB da Bolívia. 75 por cento do PIB de Bolívia está sob o controle de capitalistas estrangeiros, sendo 18 por cento desses sob controle brasileiro. Petrobrás é a maior multinacional no setor de gás e também controla 20 por cento dos postos de gasolina do país.

Uma parte central da política neoliberal durante os anos 90 foi de facilitar a exploração dos recursos de petróleo e gás do país por empresas multinacionais. O imposto (royalty) sob a exploração de gás e petróleo foi reduzido de 50 a 18 por cento e a empresa estatal de petróleo foi privatizada. A exploração do petróleo e do gás ficou extremamente barata e deu grandes lucros para as empresas estrangeiras – e nenhum para as massas pobres do país. Em 2003 o ex-presidente Gonzales “Goni” Sanchez de Lozada foi derrubado depois de 14 meses como presidente por seus planos de exportação de gás para os EUA. Pelo menos 80 pessoas morreram durante os protestos.

O seu vice, Carlos Mesa, assumiu a presidência com promessas de um referendo sobre o gás e o petróleo, medidas contra a corrupção e uma assembléia constituinte.

O referendo ambíguo resultou na proposta de “lei de hidrocarbonetos”, com a proposta de Mesa de um novo imposto sobre a produção de petróleo e gás. Esse imposto aumentaria um pouco os impostos para o estado mas os recursos ainda iriam estar nas mãos das empresas multinacionais. Esse proposta levou a uma onda de protestos durante o mês de março esse ano. Mesmo com um grande apoio à nacionalização dos hidrocarbonetos, durante algumas semanas o foco do debate foi a questão da carga tributária das empresas petrolíferas. Para muitos um aumento dos impostos era um passo no caminho da nacionalização. A proposta do MAS (Movimento ao Socialismo) de Evo Morales, era que o imposto deveria voltar a ser 50 por cento. O congresso foi forçado pelos protestos das massas a votar por um imposto que chegava perto da proposta do MAS. Carlos Mesa ficou mais e mais isolado e renunciou duas vezes, mais sem que o congresso desse aval.

Por algumas semanas o movimento teve um intervalo, só para voltar com força renovada. Os movimentos não estavam satisfeitos com o novo imposto e começaram de novo a bloquear as estradas. No dia 23 de maio centenas de professores de La Paz uniram-se aos bloqueios. Começaram uma greve pelo aumento de salário mas também pela nacionalização do gás e do petróleo. O mesmo dia foi retomada a greve geral em El Alto, a pobre cidade vizinha de La Paz que esteve no foco da luta desde 2003. Uma greve no setor de transporte de 48 horas, reivindicando nacionalização e assembléia constituinte, paralisou La Paz.

No dia 31 de maio 40 000 manifestantes impediram a retomada do parlamento, que não tinha tido sessões em duas semanas por causa dos protestos. Um mar de pessoas ocupou a Plaza Murillo onde está situado o prédio do congresso e somente um terço dos deputados conseguiram entrar. A direção da COB ameaçou botar fogo no prédio do congresso se o parlamento não votasse pela nacionalização. Os protestos continuaram mesmo depois que Mesa no dia 2 de junho anunciou eleições para uma assembléia constituinte e um referendo sobre maior autonomia para as províncias no dia 16 de outubro.

Mesmo os movimentos sendo a favor da assembléia constituinte, eles viram a medida de Mesa como uma nova manobra para desviar o foco da questão de nacionalização. O referendo sobre maior autonomia para as províncias era uma concessão para a direita, especialmente a elite rica de província de Santa Cruz. Santa Cruz é a província mais rica, com petróleo, gás e também grandes fazendas de soja. A elite da província não quer ser forçada a fazer concessão para as regiões mais pobres do planalto boliviano.

Mesa tinha descartado sue último trunfo e renunciou mais uma vez no dia 6 de junho. Dessa vez o parlamento aceitou a renúncia de Mesa, embora a sessão tivesseque ser mudada para Sucre para poder ser realizada por causa dos protestos de massa. A crise estava bem aguda nesse momento. Carlos Coro Mayta, um líder de um grupo de mineiros que estava indo para Sucre para impedir a sessão do congresso, foi baleado por um soldado perto da cidade, sendo a primera vítima durante esses últimos protestos. Nesse momento eram centenas de milhares que participaram do movimento. No mesmo dia a COB e a Fejuve chamaram um ato em La Paz no qual segundo a Econoticias Bolivia participaram 400 000 pessoas. Nesse ato a COB, Fejuve, os sindicatos dos professores de La Paz (liderado por Vilma Plata) e dos mineiros declararam a construção de uma “assembléia popular”, como alternativa ao parlamento corrupto.

Segundo a constituição só se pode ter novas eleições para presidente se os presidentes do Senado e da Câmera de deputados, os próximos na linha de sucessão, renunciarem o cargo de presidente. O movimento temia especialmente que o presidente do Senado, Hormando Vaca Díez, reivindicasse a presidência. A linha desse político de direita, que é um apoiador do Lozada, seria de usar o exército contra o movimento, com a possibilidade de uma guerra civil. Era evidente que não havia viabilidade para a Bolívia com Vaca Díez. Caminhávamos para a ruptura, a divisão do país, disse Mesa numa entrevista com o jornal espanhol ABC.

Vaca Díez tinha a ambição de assumir a presidência e poderia ficar o resto do mandato original de Lozada, até 2007. Mas a maioria da burguesia deu apoio à saída proposta por MAS e pela Igreja Católica, que era de deixar o próximo na linha de sucessão, o presidente da Suprema Corte, Eduardo Rodriguez, assumir o poder para convocar novas eleições, o que ele fez no dia 9 de junho. Ele está agora mudando a constituição para também poder chamar eleições parlamentares. Ele também fala de convocar eleições para uma assembléia constituinte e o referendo sobre maior autonomia para as províncias.

Uma das primeiras medidas do Eduardo Rodrigues foi convidar os líderes da COB e Fejuve para negociações na sede do governo. Mas eles rejeitaram, as negociações foram feitas em El Alto, transmitidas ao vivo com tradução aos idiomas indígenas. COB e Fejuve tinham falado de dar uma trégua de três ou dez dias para o novo presidente nacionalizar o petróleo e o gás. O líder da COB, Jaime Solares, rejeitou o novo presidente como “a nova ficha da embaixada dos EUA”. Porém, durante as negociações eles aceitaram fazer parte de comissões para discutir a nacionalização e uma nova constituição. Aceitaram também terminar os bloqueios de estradas e deixar abastecimento entrar nas cidades, havia também um certo desgaste no movimento. Manifestantes terminaram também as ocupações dos poços de petróleo de Repsol e British Petroleum no leste do país e da estação de bomba do Enron/Shell, que tinha cortado a exportação de petróleo para Chile. Ainda há protestos, mas em menor escala. A tática do novo presidente é evidentemente tentar comprar tempo, sem dar nenhum compromisso.

Qual caminho?

“O senhor Rodrigues é exatamente um clone de Mesa. Um cavalheiro branquinho, mais branquinho que o inglês Tony Blair, educado em Harvard como todos os demais oligarcas… é uma repetição exata do que Morales fez em outubro 2003: oferecer ao movimento de massas um burguês neoliberal, paralisar as mobilizações, dividir o movimento e criar as condições para o retorno da direita”, disse James Petras em uma entrevista com Econoticias.

Os movimentos esse ano mostraram duas tendências diferentes. O MAS do Evo Morales jogaram um papel de frear os protestos. O MAS foi baseado no movimento dos cocaleros da região de Chapare, e Evo Morales só teve 45.000 votos menos que Lozada nas eleições de 2002. O MAS tem participado nos movimentos mas com uma postura mais moderada, e sob influência do PT brasileiro. Depois da renúncia de Lozada em 2003 Evo Morales apoiou Mesa, o que levou a sua expulsão da COB. O MAS votou contra a renúncia de Mesa em março e também era contra a reivindicação de nacionalização do petróleo e do gás. Em vez, o MAS enfatizava o aumento do imposto das empresas petrolíferas e a necessidade de uma nova constituição. Evo Morales foi sempre rápido em suspender os protestos quando teve alguma pequena concessão.

“Temos que entender que ele [Rodriguez] é o novo presidente e ele tem expressado um compromisso em ouvir as nossas reivindicações. A eleição dele amenizou as tensões e nós vamos aceitar uma trégua”, disse Morales segundo a BBC, pedindo aos movimentos suspenderem os protestos e repetindo o que ele dizia de Mesa anteriormente.
Foi somente no último período, com toda a pressão do movimento, que ele deu apoio à renúncia de Mesa e à reivindicação de nacionalização. A estratégia do Evo Morales foi de garantir suas chances de ser eleito em 2007, e foi criticado pelos outros movimentos por causa disso. Ele enfatiza uma “saída constitucional da crise”, em vez de colocar a necessidade dos movimentos tomarem o poder.

A questão agora é se ele vai ganhar a nova eleição presidencial esse ano. Ele perdeu apoio para esquerda e para a direita. Ele é acusado de ser responsável pelo caos no país na imprensa e perdeu apoio nas cidades. Ao mesmo tempo ele perdeu autoridade entre muitos ativistas dos movimentos. Numa pesquisa eleitoral recente publicada nos jornais El Delber e Los Tiempos ele só está no quarto lugar com 6 por cento (comparado aos 20 por cento nas eleições 2002). Segundo a pesquisa 33 por cento ainda não tem candidato, 18 por cento votariam no ex-presidente Jorge Quiroga, 17 por cento no ex-presidente Carlos Mesa e 13 por cento em Samuel Doria. Essa pesquia é porem feita em quatro cidades e Evo Morales tem apoio maior no campo. A imprensa tenta mostra Evo Morales como um novo Chavez, mas como presidente ele seria, provavelmente, um novo Gutierrez, que depois de ser eleito presidente em Equador fez um rápido giro à direita e foi derrubado por protestos massivos. Evo Morales estaria desde o primeiro dia sob pressão para implementar a nacionalização do petróleo e gás, e enfrentaria a desconfiança de grande parte do movimento.
No outro lado, movimentos como COB, Fejuve, o sindicato dos mineiros e o dos professores não só reivindicaram a nacionalização mas também o fechamento do parlamento corrupto.

“Todas as organizações sociais e populares nós vão proclamar uma grande assembléia popular e forjar o novo governo que vai substituir o vácuo de poder. As empresas petrolíferas querem um outro palhaço no governo para defender seus interesses, mas nós vamos fazer um governo do povo do que hoje surge na Assembléia Popular sob a linha da nacionalização dos hidrocarbonetos”, proclamou o líder do sindicato dos mineiros, Miguel Zubieta, no ato do dia 6 de junho, segundo a Econoticias.

“Não há solução nesta sociedade podre… Nós, bolivianos, temos que expulsar as transnacionais e recuperar nossas riquezas naturais. Nós, trabalhadores, estamos nos orientando para tomar o poder político e econômico no país e construir o governo de trabalhadores e camponeses”, disse Vilma Plata no mesmo ato.

A direção da COB decidiu mais tarde no mesmo dia estabelecer um “Comando Revolucionário Popular”, com a tarefa de aglutinar sindicatos, movimentos populares, organizações políticas e estudantis atrás da “estratégia do poder dos trabalhadores, camponeses e da classe média empobrecida”. Porem, esta estratégia ainda tem que tomar forma em carne e osso.

Existe elementos de “”duplo poder” (quando uma estrutura de poder alternativa é construída em competição com o poder estabelecido), especialmente em El Alto e parte de La Paz, onde comitês locais organizaram abastecimento durante os bloqueios. É correto chamar pela construção de assembléias/comitês locais com representantes dos diferentes movimentos, e elas serem vinculadas em uma assembléia nacional. Existe precedentes disso na própria Bolívia. Em 1970 uma “Assembléia Popular” foi fundada, que havia uma representatividade da classe trabalhadora, mas essa foi esmagada por um golpe militar.

As assembléias têm que construir uma unidade em torno de um programa socialista, pela nacionalização do petróleo e gás, os bancos e grandes empresas, sob o controle e a gestão democrática dos trabalhadores e seus aliados. Os delegados das assembléias têm que ser revogáveis e não devem ter nenhum privilégio, para barrar o crescimento de uma nova burocracia.

O movimento também tem que ter uma estratégia para se dar com o exército. O exército tem sido relutante em intervir diretamente no conflito, mas isso pode mudar se o sistema capitalista estiver ameaçado.

“As forças armadas da nação deram mais um exemplo de seu respeito pela democracia… As forças armadas conservaram o respeito pelo sistema, ao mesmo tempo que os políticos fracassaram em honrar a democracia e a liberdade… Isso é uma advertência para o futuro. Um aviso para que se os políticos não souberem proteger a democracia, as forças armadas vão fazer isso por eles”, escreve o jornal El Diario em La Paz – um aviso claro.

Comitês de soldados têm que ser estabelecidos, reivindicando a democratização do exército, com eleições de oficiais. As assembléias têm que organizar auto-defesa, algo que COB levanta.

O que falta para aglutinar o movimento atrás de um programa socialista revolucionário é um partido socialista de massas com clareza na estratégia, nas perspectivas e no programa. A construção desse partido é uma tarefa chave para ativistas socialistas na Bolívia.

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