A guerra na Ucrânia significa mais fome na África
A fome no mundo está crescendo a níveis alarmantes devido a combinação tóxica entre guerra, aquecimento global, capitalismo e latifúndios, junto com apocalípticos aumentos de preços e o abalo à distribuição de alimentos pela guerra na Ucrânia. A guerra exacerbou a espiral global de preços de alimentos e combustíveis.
Entretanto, antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, o mundo já encarava a crise de insegurança alimentar e o preço global dos alimentos, que tem se elevado desde a metade de 2020 e se mantém em alta.
A crise também tem piorado devido ao crescimento do protecionismo alimentar.
O problema não é que existe muita gente para ser alimentada, é produzida comida suficiente para alimentar todo o planeta. O problema é, e até as Nações Unidas admitem, “acesso e distribuição de comida, que tem cada vez mais sido impedido pelos múltiplos desafios, incluindo a pandemia de COVID-19, conflitos, mudança climática, desigualdade, austeridade e tensões internacionais. As pessoas ao redor do mundo estão sofrendo o efeito dominó de desafios que não tem fronteiras”.
O que está impedindo de acabar com a fome e alcançar a distribuição global de comida necessária é o modo de produção capitalista – baseado na propriedade privada e controle da produção, recursos, riquezas, distribuição e a barreira representada pelos “Estado-nação”. Esse é particularmente o caso agora, quanto mais o capitalismo se torna parasitário, o que podemos chamar de “capitalismo de desastre”.
“As condições agora são muito piores que durante a Primavera Árabe de 2011 e a crise de preços de alimentos de 2007-2008, quando 48 países foram atingidos por tumultos políticos, motins e protestos”, alertou recentemente o diretor executivo do Programa Comida para o Mundo, David Beasley.
África Oriental
A África Oriental é a parte que mais sofre no mundo, onde a crise de fome é extremamente aguda. O número de crianças com desnutrição severa aguda na Etiópia, Quênia e Somália cresceu mais de 15% nos últimos 5 meses. “Há uma estimativa de 386 mil crianças na Somália neste momento necessitando desesperadamente de tratamento para desnutrição severa aguda – ultrapassando as 340 mil crianças que foram atingidas com a crise de fome de 2011”. Um infanticídio está iminente no Chifre da Africa, constatou UNICEF no dia 7 de junho.
“Uma pessoa morre de fome a cada 48 segundos na região da Etiópia, Quênia e Somália. O número de pessoas vivendo sob miséria extrema nesses três países mais do que dobrou no último ano, de 10 milhões para mais de 23 milhões. Isso somado a dívida pública devastadora que mais que triplicou na última década – de 20,7 bilhões de dólares em 2012 para 65,3 bilhões de dólares em 2020 – sugando os recursos desses países que seriam para os serviços públicos e proteção social”, de acordo com o novo relatório das ONGs Oxfam e Save the Children, “Perigo do atraso: o custo da inatividade”, publicado em 18 de maio de 2022.
A África Oriental está vivendo a pior e mais duradoura seca dos últimos 40 anos, depois da quarta temporada de chuvas consecutiva abaixo da média. A última temporada de chuvas, de março a maio deste ano, foi mínima. “A temporada de chuvas de março a maio de 2022 bateu recorde de seca, acabando com meios de sobrevivência e aumentando a insegurança alimentar e necessidade de comida e água. Estima-se perda de 3,6 milhões de gados no Quênia (1,5 milhões) e Etiópia (2,1 milhões). Nas áreas mais afetadas da Somália, estima–se que um a cada três gados morreram desde meados de 2021. E há um grande risco que a próxima temporada de chuvas de outubro a dezembro não seja suficiente” (Organização de Meteorologia Global, 31 de maio).
Depois da crise de fome na Somália em 2011, a elite poderosa do mundo disse “nunca mais”, mas agora o desastre está novamente acontecendo e ainda mais gente está em risco de morrer de fome.
É necessário 4,4 bilhões de dólares para assistir essas 30 milhões de pessoas na Etiópia, Quênia e Somália, de acordo com o relatório da Oxfam e Save the Children. Essa soma equivale a 0,5% do gasto anual do exército dos EUA, ou só metade do que a gigante Shell paga aos acionistas em dividendos (na forma de esquemas de recompra de ações) nos primeiros 6 meses do ano.
Os capitalistas impedem ação
O capitalismo e as políticas governamentais impedem que os recursos existentes sejam distribuídos para os que necessitam. O Fundo das Nações Unidas para a Infância, UNICEF, recebeu até agora somente um quinto do necessário para acabar com a fome e prover água potável.
Os governos dos países mais ricos fornecem ou cortam a ajuda a países pobres segundo seus próprios propósitos e interesses. Os fundos de ajuda são redirecionados para financiar os crescentes gastos militares. O governo alemão decidiu ampliar os gastos militares reduzindo a verba que seria para ajuda a países pobres, enquanto todos os governos na Escandinávia estão usando esses fundos para financiar gastos alegados com refugiados ucranianos – isso significa que o governo sueco é o maior recebedor de seu próprio fundo de ajuda ao desenvolvimento.
Na Grã Bretanha, apesar da aguda crise, “publicaram no relatório anual do FCDO (Departamento de Estrangeiros, Segurança Social e Desenvolvimento) do último ano, que no fundo nacional de ajuda humanitária do Reino Unido para Etiópia cairia de 241 milhões de libras em 2020/21 para 108 milhões de libras em 2021/22, um corte de 55%; para o Quênia de 67 milhões de libras para 41 milhões de libras, um corte de 39%; e para a Somália 121 milhões de libras para 71 milhões de libras, um corte de 41%”. (The Guardian, 22 de maio).
Crise climática
Os governos capitalistas dos países mais ricos fizeram muitas promessas de melhoria ambiental e planos de “ajuda” para países pobres se adaptarem às mudanças climáticas, mas nunca entregaram. Isso acrescenta insulto ao sofrimento de um mundo que vai enfrentar cerca de 560 desastres anuais até 2030, comparado a 350-500 desastres anuais nos últimos 20 anos, devido à mudança climática e ao impasse do capitalismo.
“O custo econômico dos eventos climáticos extremos só em 2021 foi estimado em 329 bilhões de dólares em todo o mundo, o terceiro mais alto já registrado. Aproximadamente o dobro do total arrecadado pelas nações ricas e direcionado aos países em desenvolvimento nesse ano”. (Oxfam, 7 de junho).
A necessidade de ajuda e assistência imediata é urgente, mas acabar com a crise requer lutar por mudanças revolucionárias – justiça climática, redistribuição global e um mundo socialista e democrático.
Como em 2011, os alarmes que avisam que a África Oriental está entrando em uma nova onda de fome soam alto e claro. Já em meados de 2020, havia perigos de seca na região e as previsões a longo prazo apontavam para um agravamento devido à falta de chuvas. A pandemia aprofundou ainda mais a crise que já existia.
“A África Oriental coloca em destaque a profunda desigualdade da crise climática. É uma das regiões menos responsáveis pela crise climática — emitindo coletivamente menos de 0,05% do CO2 global — mas, na última década, tem sido repetidamente atingida por choques climáticos. É cada vez mais evidente que tais choques também funcionam como um multiplicador de ameaças, estimulando o conflito e a fragilidade. Até 2030, mais de 100 milhões de pessoas em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, podem ser empurradas para baixo do limiar da pobreza por eventos extremos cada vez mais frequentes e pela crise climática. A crise climática irá simultaneamente exacerbar os conflitos existentes e reduzir a capacidade das pessoas para sobreviver aos seus efeitos. O aumento da exposição a choques também agrava as desigualdades nas comunidades, suprime o crescimento económico e compromete o impacto dos esforços de redução da pobreza a longo prazo. Embora o nível de necessidades em 2022 seja impressionante, a mais recente análise do UNDRR (Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres) indica que o que ainda está por vir será muito pior”, escreve o relatório “Perigo do atraso: o custo da inatividade”.
Enquanto a África Oriental tenha sido atingida por secas extremas devido ao aquecimento global, quatro terríveis tempestades tropicais varreram Madagáscar neste ano e a África do Sul foi atingida por enchentes. Em toda a África, a insegurança alimentar está aumentando. A África Ocidental é atingida pela sua pior crise alimentar na última década, com 27 milhões de pessoas passando fome. Este número deverá subir para 38 milhões em junho deste ano — um novo recorde histórico e já há um aumento de 25% comparado ao ano passado.
Se as atuais tendências se confirmarem, outras 100 milhões de pessoas serão empurradas para a pobreza extrema até 2030, resultado de condições climáticas extremas e desastres relacionados com o clima.
A Guerra na Ucrânia significa fome na África. Quase todo o trigo e óleo de girassol importado pela África Oriental vem da Ucrânia ou da Rússia. A guerra fez disparar os preços destes produtos. O preço do trigo aumentou 20% e na Etiópia o preço do óleo de girassol aumentou 215%. Só a Somália importava 92% do seu trigo da Rússia e da Ucrânia — mas as linhas de abastecimento agora estão bloqueadas.
Sudão e Somália – crise e legado do Imperialismo
No Sudão, a guerra na Ucrânia, juntamente com colheitas fracas, regime militar e conflitos armados recorrentes, estima-se duplicar o número de pessoas passando fome. O Sudão importa mais de metade do seu trigo da Ucrânia e da Rússia, e o preço de uma tonelada de trigo, que representa um quinto do consumo total de calorias, é agora 180% superior ao de um ano atrás. Ao mesmo tempo, os preços elevados dos combustíveis afetam também as padarias.
Apesar da crise, não são alimentos, água potável e medicamentos que a administração Biden decidiu enviar para a Somália, mas sim tropas estadunidenses, 500 soldados. As operações militares dos EUA na Somália, que começaram na década de 1990 supostamente seria uma ação humanitária contra a fome, mas terminaram em batalhas de rua desastrosas na capital do país, Mogadíscio, em outubro de 1993, que mataram centenas de somalis, incluindo civis. 19 soldados estadunidenses foram mortos e 73 feridos, e dois helicópteros Black Hawk foram abatidos. A batalha através de Mogadíscio durou dois dias e foi decisiva para o imperialismo dos EUA, dando origem à “Síndrome da Somália” de não atravessar “a linha Mogadíscio” e arriscar perder mais prestígio e a vida dos soldados estadunidenses.
A intervenção militar dos EUA e da ONU na Somália foi um fracasso e não impediu o islamista al-Shabab de continuar a aterrorizar a população.
“Os EUA têm tentado combater al-Shabab com a força militar há 15 anos, e não funcionou — pode até ter prolongado o conflito” (Sarah Harrison, do International Crisis Group, ao New York Times, em 16 de maio).
Mais recentemente, al-Shabab parece ter conseguido controlar novas áreas na Somália, que corre o risco de se tornar um novo Afeganistão, onde os níveis de segurança alimentar afundaram a um ritmo terrível, deixando metade da população com fome aguda.
Apenas a luta contra o capitalismo pode colocar fim na crise
Como sempre, as massas africanas pagam o maior preço pela crise e pela guerra do imperialismo internacional. Só uma luta unida dos trabalhadores e dos pobres contra a divisão política e as políticas de governo do imperialismo e do capitalismo doméstico para uma transformação socialista internacional do continente pode traçar um caminho longe da opressão, pilhagem e desastres que fazem da vida um pesadelo sem fim no continente africano.