1968: uma lembrança necessária
Como que por uma ironia do destino, contra todos os prognósticos da imprensa burguesa, a rebeldia da juventude volta a ganhar projeção nacional com a renúncia do reitor da UNB, Timothy Mulholland, um dos responsáveis pela privatização dessa universidade, e responsável pelo desvio de R$ 470 mil das verbas de pesquisa para comprar móveis de luxo para o seu apartamento. Reafirmou-se um aumento expressivo das mobilizações estudantis, que já vinham ocorrendo de maneira mais nítida desde o ano de 2007, com as ocupações das universidades federais durante as aprovações criminosas do chamado projeto de expansão universitária do governo Lula, o REUNI. Toda essa efervescência da juventude acontece, justamente, no ano em que se completam 40 anos das mobilizações do emblemático ano de 1968. Mas o que representou este fatídico ano na realidade das lutas da classe trabalhadora?
Da contracultura à luta pelo socialismo libertário
As disputas imperialistas da Guerra Fria na década de 60 embalavam o mundo no desespero. Por um lado o burocratismo soviético negava os preceitos mais básicos que construíram a revolução russa em 1917, tais como a democracia operária, o internacionalismo e a liberdade como princípio de organização social baseada na coletividade. Por outro, o bloco capitalista, liderado pelos EUA, mantinha o seu avanço contra as democracias mais limitadas para manter o seu padrão de acúmulo de capital e afastar o “perigo subversivo”, instalando uma “caçada às bruxas” em escala internacional, patrocinando dezenas de golpes militares pelo mundo em nome de uma dita “liberdade”. Este barril de pólvora geopolítico ganhava ainda mais instabilidade com o avanço das armas nucleares e dos conflitos por áreas de influência pelo mundo entre as duas potências imperialistas.
A necessidade de uma transformação global da sociedade não poderia se dar nem no âmbito do capital imperialista, nem da burocracia soviética. A ativismo político se apresentaria na década de 60 com uma nova característica fundamental que era refundar os preceitos da crítica contra o sistema social vigente. O ano de 1968 expressa, necessariamente, a rebeldia contra uma sociedade que se internacionalizava a partir dos desmandos do capital, do burocratismo e da violência. Não é a toa que as formas de luta vão se preocupar com aspectos antes ignorados pelo dogmático marxismo stalinista, tais como o feminismo, a ecologia, racismo, orientação sexual, a arte e diversos aspectos da cultura.
É sintomático que, apesar de não haver uma articulação internacional orgânica, a juventude ter mostrado sua rebeldia na Primavera de Praga, no México, Alemanha, França e tantos outros países. A contracultura, as lutas de libertação nacional e os movimentos guerrilheiros buscavam rejuvenescer a perspectiva de transformação social, ainda que com limitações.
Este espasmo internacional de mobilização da juventude chega ao Brasil e, de alguma forma, atinge o imaginário dos estudantes brasileiros, e em alguns pontos, traz certas similaridades com o processo internacional. A busca por participação política, reforma no sistema educacional, busca por alternativas de esquerda alternativas ao marxismo soviético-stalisnista, luta contra o imperialismo, negação da sociedade do consumo, ligação entre arte e política e transformação de costumes são alguns dos elementos que perpassam as experiências de rebeldia da juventude internacionalmente. Mas afinal, qual foi a identidade particular do nosso 1968?
É proibido, proibido, proibido…
A ditadura militar se instala no Brasil em 1964, e todo os movimentos sociais são acometidos duramente pelo autoritarismo e violência do novo regime. No dia seguinte ao Golpe Militar, a sede da UNE é queimada pelos partidários dos golpistas. Abriu-se uma série de inquéritos nas universidades a fim de incentivar a delação e no final do mesmo ano é aprovada a Lei Suplicy, que visava controlar as entidades representativas do movimento estudantil.
As mobilizações ganhavam vulto com a truculência dos governos, além disso, o nível de vida baixava expressivamente com o arrocho salarial, a inflação e a liberalização de entrada e saída de capitais para o exterior. A política econômica se mostrava desastrosa para os trabalhadores, pois enquanto a economia crescia baseada no capital internacional, se via um crescente aumento das falências das pequenas e médias empresas e o aumento do custou de vida (queda de 24% do poder de compra do salário mínimo em 4 anos de ditadura militar).
O clima de insatisfação começava a crescer na sociedade. Em 1965 houve uma retumbante vaia ao general Castelo Branco que se apresentava na UFRJ e a partir dali tomavam corpo mobilizações no interior das universidades e escolas pelo Brasil. Um plebiscito sobre a Lei Suplicy se realizou no mesmo ano, em que a maioria ampla dos estudantes da UFRJ votou contra a lei.
Os militares cercaram de todas as formas as mobilizações estudantis, e no meio do ano de 1965 a UNE assume a clandestinidade e elege a sua nova diretoria. Ocorre posteriormente a “setembrada”, em que vários protestos agitaram as principais cidades do país contra a violência da repressão militar, com destaque para a manifestação na Faculdade de Medicina da UFRJ, que foi invadida por policiais militares e centenas de estudantes foram presos. Esta ebulição de resistência contra a repressão militar tem uma inflexão e já no ano de 1967 ocorre um certo recuo das mobilizações.
Neste período, o governo militar aprofundava as suas medidas contra a educação pública. Um acordo firmado com os estadunidenses já em 1964, o chamado Acordo MEC-Usaid (a fusão das siglas Ministério da Educação (MEC) e United States Agency for International Development), estabelecia a imposição do modelo estadunidense de educação para o Brasil. Os primeiros passos para a privatização do ensino estavam sendo dados, e que acabaram desembocando no fechamento de vários restaurantes universitários e com o corte de verbas da assistência estudantil.
Edson Luis vive!
No começo de 1968, um Conselho Nacional da UNE buscava redefinir a política frente às novas demandas que surgiam a partir das mobilizações. Houve uma polêmica em relação a duas possibilidades táticas: 1) priorizar a crítica à política geral contra o governo ditatorial. 2) priorizar as lutas no interior da universidade a respeito das questões setoriais dos universitários e secundaristas. Com uma pequena diferença nos votos ficou decidido que a UNE priorizaria a segunda opção. As lutas estudantis de janeiro e fevereiro deste ano priorizariam a questão dos chamados “excedentes” (estudantes que possuíam notas suficiente para ingressar na universidade, mas não havia vagas para recebê-los) e dos estudantes do Calabouço (restaurante estudantil dos secundaristas pobres).
Já em março, o movimento pelo aumento de vagas nas universidades. Em São Paulo ocorre a manifestação dos estudantes de filosofia da USP, da Fundação Getúlio Vargas e da PUC, com acampamento nas reitorias.
A luta do Calabouço conquista a sua reabertura, mas em condições precárias, o que fomenta a mobilização dos estudantes novamente. Numa quinta-feira, 28 de março, no Rio de Janeiro, os estudantes se preparavam para o ato, quando chegaram os policiais da Tropa de Choque. Estes receberam ensurdecedoras vaias. Os policiais invadiram o restaurante universitário com armas na mão, o que fez as vaias só aumentar diante da truculência da polícia. Aleatoriamente os policiais atiraram contra os estudantes e acabaram por matar Edson Luis de Lima Souto, além de ferir outros com tiros e cassetetes. Tamanha brutalidade fez os estudantes levarem o corpo de Edson Luis de Lima Souto para a Assembléia Legislativa, na Cinelândia, e se recusaram a entregá-lo às autoridades, pois sabiam que o corpo poderia desaparecer no intuito de omitir as provas da violência do regime militar.
A notícia se espalhou de maneira avassaladora, e no dia seguinte, a praça pública estava tomada pelo povo, ocorrendo passeatas em todo o país. Numa das manifestações ocorridas em Goiânia a polícia acabou matando mais um estudante, o que gerou ainda maior indignação e acirramento das lutas. Uma sucessão de atos da juventude se espalhou ainda mais fortemente pelo país em que acontecia no 1º de abril uma manifestação que relembrava os quatro anos do Golpe Militar e no dia 4 de abril a missa de sétimo dia de Edson Luis. Nesta, a polícia mais uma vez atacou aqueles que se solidarizavam com a morte absurda do estudante, prendendo e ferindo vários manifestantes na saída da igreja da Candelária, no Rio de Janeiro.
As recorrentes violências da polícia contra os estudantes levam a um retorno defensivo dos estudantes para as escolas para que pudessem recompor suas forças contra a ditadura. Ainda em 1968, em junho, as reivindicações estudantis se fortalecem a partir de bandeiras como: mais verbas para a educação, mais vagas nas universidades, aperfeiçoamento dos currículos, além de métodos de ensino democráticos e transformadores. Uma série de lutas se sucedeu novamente dando grande visibilidade nacional para o movimento: a grande greve dos estudantes da UFRJ com a participação de mais de 16 mil estudantes e em São Paulo, a União Estadual dos Estudantes de São Paulo promoveu uma grande ocupação.
No dia 20 de junho, a UFRJ é palco de uma grande conquista dos estudantes, em que ao longo de 8 horas de debate professores foram intimados a se posicionar sobre os problemas da universidade diante de centenas de estudantes presentes no Conselho Universitário. Mais uma vez a polícia foi acionada para reprimir os estudantes. Cercaram a UFRJ, prendendo centenas de estudantes encurralados na Rua General Severiano. O acontecimento levou a revolta da população, quando as fotos da repressão policial contra os estudantes foram divulgadas. No dia seguinte, no calor da revolta do dia anterior, aconteceu a “sexta-feira sangrenta”, em que mais estudantes acabaram sendo mortos por se rebelar contra os assassinatos ocorridos. A batalha durou mais de sete horas e teve a prisão de mais de mil estudantes. A população revoltada com as atitudes fascistas da polícia demonstrava o seu apoio aos estudantes jogando objetos dos prédios contra os policiais que massacravam os estudantes. Enquanto isso, em outros estados, a violência também se espalhava. Em Brasília, a UNB, também foi invadida, enquanto no dia 24 de junho, São Paulo, Fortaleza, Belo Horizonte e Porto Alegre eram palco de mais resistência estudantil.
No dia 26 de junho, o Rio de Janeiro puxa uma passeata, e, pressionado pela sociedade, o governo retira a polícia das ruas, abrindo um flanco para o ato que viria a marcar a história como a Passeata dos Cem Mil. Tamanho impacto da manifestação constrói uma “Comissão dos Cem Mil” que visava abrir negociações com o governo sobre, principalmente, à libertação dos estudantes que haviam sido presos injustamente pela polícia. Nada acontece de concreto, o que leva a uma dispersão desta comissão.
O movimento continuava com passos firmes e no dia 3 de julho ocorre a manifestação pacífica dos 50 mil. Logo depois, acontece a ocupação da Faculdade de Filosofia e do Conjunto Residencial da USP, em que se colocavam novas experiências para o movimento estudantil. Grupos de estudo e pesquisa discutiam propostas de currículo, além de haver uma organização coletiva que garantia a gestão do espaço universitário, tendo como base de reivindicação a luta pelas comissões paritárias.
Nos meses de agosto e setembro de 1968, as correntes disputavam os rumos da UNE. Em meio a este debate interno ocorre a prisão de vários líderes estudantis. As forças para-policiais surgem com toda a força, como foi o caso do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que espalhavam a violência contra os estudantes. O líder da UME (União Metropolitana dos Estudantes), Vladimir Palmeira, é preso em agosto. As passeatas começam a escassear em pessoas e após sucessivas prisões de tantos líderes estudantis, o movimento vai paulatinamente perdendo a sua articulação regional e nacional.
No dia 11 de outubro, o Congresso Nacional da UNE se preparava para recompor o movimento diante dos ataques contínuos da ditadura, e na clandestinidade, inicia seus trabalhos na cidade de Ibiúna, São Paulo. E mais uma vez, mais de 700 delegados estudantis são presos. Percebendo a desmobilização estudantil, a polícia busca esmagar qualquer vestígio de mobilização invadindo universidades, hospitais e Igrejas, espalhando o terror. Com tantas prisões, mortes e perseguições o movimento estudantil acabou perdendo suas forças, só podendo retornar com força novamente no processo de abertura política no início da década de 1980.
A Contestação e a Contracultura contra a ditadura
A mobilização dos estudantes atraiu amplos setores que discordavam do terrorismo de Estado executado pela ditadura militar. Artistas das mais diversas áreas, além de vários profissionais liberais e religiosos se juntavam em apoio à luta dos estudantes. Franciscanos, beneditinos e dominicanos, por exemplo, cediam prédios e igrejas para as reuniões clandestinas dos estudantes, tendo papel crucial na articulação da UNE e das UEE’s. Apesar de grandes limitações impostas à classe operária houve uma certa mobilização, ainda que com severas debilidades no ano de 1968. Como foi o caso da famosa greve da cidade industrial Contagem, em Minas Gerais, o apedrejamento do governador de São Paulo Abreu Sodré no 1º de maio e a greve em Osasco com ocupação da fábrica, no mês de julho.
No campo da arte, os festivais de música popular apresentavam a rebeldia contra o conservadorismo capitalista, conquistava-se espaço para uma música que não se pautava pelos parâmetros de mercado, mas pelo engajamento político e experimentação artística. No ano de 1967, ocorria o lançamento da peça de teatro “O rei da Vela” de Oswald de Andrade e José Celso Martinez Correa. Em 1968 é lançado o filme “Terra em Transe” de Glauber Rocha, redefinido a concepção de cinema brasileiro. O movimento Tropicalista com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e os Mutantes contestava os padrões dominantes de cultura. No Rio de Janeiro, estreava em 1968 a peça de Chico Buarque e José Celso Martinez Correa, “Roda Viva”. Um mês depois os artistas fazem uma greve contra a censura da ditadura militar. Posteriormente voltam à greve pela morte de Edson Luis, em março. Logo, atores, cineastas, músicos, escritores, jornalistas e profissionais liberais passariam a participar ativamente das manifestações.
Boa parte dos estudantes era parte expressiva do público que freqüentava cinemas, festivais de música e peças de teatro, que fervilhavam de inovação e contestação, o que mostra o quanto a juventude estava ligada às manifestações culturais mais engajadas. O vestuário com cores variadas, a minissaia, a crítica à rotina, a pílula anticoncepcional e a experimentação musical eram algumas das transgressões que se apresentavam no âmbito da cultura, mas, em muitos casos, se mantinham intimamente ligadas com as lutas sociais que se desenvolviam no período no Brasil e no mundo.
A atualidade das lutas da juventude trabalhadora
O saldo desta memória é uma experiência histórica que é muito útil para a nossa atual realidade de luta contra o avanço do neoliberalismo, mas também pela construção de uma sociedade realmente justa que só pode ser construída no socialismo. Relembrar estas lutas é compreender o quanto o capitalismo mantém e reforça a miséria humana nas suas mais variadas formas e o quanto é necessário reavivar maneiras de lutar não só contra o conservadorismo burguês, mas também contra o marxismo dogmático stalinista.
A juventude experimenta a opressão quando lhe é negada o direito a um emprego digno, ou quando se prolifera a privatização das universidades públicas (REUNI), ou quando as universidades privadas primam pela precarização do ensino e pelas altas mensalidades. As lutas de 1968 só nos faz relembrar o quanto é necessário lutar contra o capitalismo que se nutre da exploração da juventude em escala monumental.
Hoje, quando nos deparamos com diversos líderes da juventude de 1968 como José Dirceu, Gabeira, Sirkis, Guschiken, José Genoíno, Vladimir Palmeira em defesa descarada dos interesses da burguesia, se sujando com a corrupção, uma aura de desânimo pode querer nos tomar de assalto. No entanto, não significa que a luta foi em vão. Pelo contrário, aqueles que abandonaram princípios em prol de interesses individuais devem ser combatidos, pois o legado histórico permanece e os indivíduos simplesmente passam. Queiram eles ou não.
As inovações projetadas na luta dos estudantes em 1968 devem ser compreendidas e enriquecidas com novas práticas políticas. É urgente a construção de um movimento de juventude da classe trabalhadora, que compreenda a sua real inserção na sociedade do trabalho precarizado atual, compreendendo a manifestação cultural como campo essencial a ser socializado, juntamente com o acesso a ação política e aos meios de produção de nossa sociedade.