Mao – A história desconhecida, de Jung Chang e Jon Halliday
Uma tentativa de desacreditar a revolução chinesa e, por associação, as idéias do socialismo
A revolução chinesa derrotada em 1925-27 – liderada pelos imortais trabalhadores de Xangai e Cantão – representou um dos mais magníficos movimentos da história da classe trabalhadora internacional.
A revolução vitoriosa de 1944-49, longe de ser como os marxistas a concebiam, é o segundo maior evento da história humana, depois da Revolução de Outubro na Rússia, liderada pelos bolcheviques de Lenin e Trotsky, em 1917. Isso é contestado pelos autores. Ainda que o autor Ian Johnson, correspondente do Wall Street Journal, tenha escrito recentemente um relato antipático, nós podemos ver: “Logo após a tomada do poder em 1949, o Partido Comunista desfrutou de alguns sucessos. Ele uniu a China pela primeira vez em um século, pôs o povo para trabalhar e redistribuiu a terra. Mesmo quando os desastres vieram – e eles vieram rápido – o partido não teve que se preocupar muito com distúrbios.” [ Grama Selvagem – A revolução chinesa vista de baixo , por Ian Johnson, Penguin 2004.] Cinco milhões de trabalhadores e camponeses chineses, mantidos ao nível de animais pelo latifúndio e pelo capitalismo, com seu país desmembrado em “esferas de influência” imperialistas, finalmente entraram em cena na história mundial.
Mao Tsé-Tung
A Revolução chinesa ressoou pela Ásia e pelo mundo. Mao Tsé-Tung foi o líder do exército vermelho que presidiu a revolução. Ele era, como admitiu, um “stalinista” e construiu não um estado operário democrático nas linhas da Rússia de 1917-23, mas um regime similar ao que existia na Rússia stalinista. O capitalismo e o latifúndio foram gradualmente eliminados à medida que uma economia planificada tomou forma, mas esta foi presidida por um regime totálitário de partido único, com o poder nas mãos de uma elite privilegiada no partido, no estado, no exército e na economia.
Mao Tsé-Tung, diferente de Stalin, que não jogou nenhum papel principal na Revolução Russa, liderou as forças do Exército Vermelho na derrota dos nacionalistas capitalistas de Chiang Kai-shek e na tomada do poder. O regime criado não era “socialista” como entendido por Marx e os grandes marxistas, mas representava uma ruptura com o capitalismo e o imperialismo. Portanto, sua evolução e as forças que representou, o tipo de equilibrio que Mao criou, é digno de uma ampla análise para que os jovens e trabalhadores de hoje possam se beneficiar na luta pelo socialismo.
Este livro, infelizmente, não fornece isso. O genuíno marxismo, o trotsquismo, teria analizado cada estágio do fenômeno do maoismo, a figura do próprio Mao e o regime construido na China. Este livro não é uma “história desconhecida”, como pretende, embora tenha muitos novos fatos sobre os erros de Mao, tanto antes como depois da revolução, e o terrivel preço que o povo chinês teve que pagar pela criação de um estado stalinista ao invés de uma democracia operária. Se a classe trabalhadora chinesa tivesse tomado o poder em 1925-27, com tal estado poderia ter se construido uma economia planificada mas com democracia operária, o que teria transformado o mundo. Não há nem mesmo uma análise dos eventos de 1925-27 neste livro, apenas uma escassa referência passageira.
A figura de Mao é pintada como quase totalmente formada – como Minerva saindo da cabeça de Jupiter – apresentando todas as suas posteriores tendências ditatoriais, egoismo falta de simpatia pelos camponeses e muitos outros traços de cobiça. Ainda que Mao, como milhares de outros, tenha sido atraido para o comunismo pelo exemplo da revolução russa. Além disso, nos dizem os autores, ele foi influenciado por Chen Duxiu, o “pai” do marxismo chinês e por uma época o Líder do Partido Comunista Chinês (PCC), que depois rompeu com Stalin e o stalinismo se se moveu em direção ao trotsquimo. De fato, o próprio Mao foi acusado do pecado do “trotsquismo” por seus adversários dentro do PCC em certa época.
A ascensão de Mao e das forças do Exército Vermelho está diretamente ligada à derrota da revolução de 1925-27, o que levou à completa desagregação do PCC e de suas bases entre a classe trabalhadora e nas cidades. Em 1929 apenas 3% dos membros do PCC eram trabalhadores industriais, que diminuiram para 1.6% em 1930. A classe trabalhadora, contudo, era a maior força capaz de realizar uma revolução socialista. Estes números indicavam que o PCC não era mais um partido da classe trabalhadora no sentido marxista do termo.
Os líderes operários do PCC, incluindo Mao, se retiraram para o interior do país. Como Mao revelou, e como o livro explica, eles inicialmente não conseguiram um grande eco entre o campesinato e foram mesmo hostilizados. Isso porque os camponeses estavam acostumados com exércitos invadindo e pilhando seu território, e portanto, os destacamentos vermelhos foram vistos apenas como outro exército saqueador.
Hávia vários exércitos “vermelhos”, incluindo o de Mao na provincia de Hunan, o qual se tornou o líder político de todo o exército vermelho, com Zhu De como líder militar. Apesar dos argumentos dos autores, esta força encontrou um grande eco entre os camponeses pobres em particular. Em outubro de 1934, o Exército Vermelho começou o que ficou conhecido como a “longa marcha”. Os autores alegam que Mao estava, de fato, “implicado” na Longa Marcha e que Chiang Kai-shek, o ditador militar da China, “permitiu” Mao escapar por suas próprias razões militares e estratégicas. Se foi o caso – não aceito ainda como um fato estabelecido – então Chiang Kai-shek calculou completamente mal, pois Mao e seu Exército Vermelho causaram sua queda 15 anos depois.
Em 1932 quando o exército vermelho camponês estava acumulando brilhantes vitórias sobre o Kuomintang (KMT), Trotsky pôs a questão do que aconteceria quando este exércto, depois da derrota dos latifundiários, entrasse nas cidades? Ele pontuou que muitos soldados vermelhos eram ex-trabalhadores, sendo que a força principal de seus exércitos era composta predominantemente de camponeses, ex-camponeses ou trabalhadores sem terra, e também de fugitivos de vários senhores da guerra.
Nas próprias publicações do PCC, e sublinhado no livro, queixas foram ouvidas sobre a admissão no Exército Vermelho de lumpéns proletarios e da população agrícola lumpén. Por milhares de anos, tais exércitos, tradicionalmente de caráter agrícola, insurgiram-se contra a exploração dos latifundiários. O que poderia acontecer se esse “exército vermelho”, vitorioso no interior, entrasse nas cidades? Poderia entrar em colisão com a classe trabalhadora e talvez se fundir à classe capitalista, resultando num clássico desenvolvimento capitalista. Havia paralelos na história chinesa para isto.
Mas não foi o que aconteceu na revolução de 1944-49. Nada disso é explicado por Halliday ou Chang; de fato, eles parecem simpatizar com a fraseologia que usam, para a inadequação do latifúndio e capitalismo chinês, e sua expressão política, o “Generalissimo” Chiang Kai-shek e o Kuomintang. Por exemplo, eles citam os “enclaves” dos poderes estrangeiros, que eram de fato territórios brutalmente conquistados pelos diferentes imperialismos, na qual governavam brutalmente, com leis e as condições da escravidão estrangeira, sobre os trabalhadores e camponeses chineses.
Além disso, 20 milhões de pessoas foram mortas desde a derrota da revolução de 1925-27 pela repressão brutal de Chiang Kai-shek e a escravidão de milhões pelo imperialismo japonês em particular. Com a derrota e retirada deste, um vácuo se abriu na sociedade chinesa. O cansaço de guerra do povo europeu e em particular do americano ao fim da II Guerra Mundial impediu o imperialismo americano de intervir militarmente em favor do KMT. Ele fez, contudo, fornecimento de armas – subsequentemente capturadas pelo Exército Vermelho e usadas contra os EUA na Guerra da Coréia – e bilhões de dólares em ajuda.
Isto implica para Chang e Halliday que Chiang Kai-shek foi derrotado por causa de um “pobre julgamento” de personalidades, da fraqueza de seu “caráter”, e não por razões econômicas e sociais. Pelo contrário, Mao derrotou Chiang por causa da bancarrota do capitalismo e latifúndio chinês, a incompetência e corrupçãodo regime de Chiang Kai-shek – detalhada em parte pelos autores. Havia um apoio massivo ao programa do PCC de “confiscar o capital burocrático”, código para a eliminação do capitalismo – nacionalização do capital controlado pelo imperialismo, os chefes do KMT e seus apoiadores, e uma profunda reforma agrária. Uma massiva inflação também corroeu qualquer apoio ao KMT, particularmente entre a classe média.
Ao mesmo tempo, o Exército Vermelho mostrou hostilidade a qualquer movimento independente da classe trabalhadora nas cidades, alertando contra “greves” que deveriam ser suprimidas. Mao olhava para Moscou como seu modelo de estado: “Em junho de 1949 Mao enviou Liu Shao-chi à Russia para aprender sobre o modelo soviético em detalhes. Um estado stalinista foi sendo construido antes mesmo de Mao assumir forlmalmente o poder.” Ao mesmo tempo, os negócios privados não foram tocados imediatamente, a nacionalização veio um pouco depois, a “coletivização da agricultura não foi realizada até meados dos anos 50”.
Completa ausência de corrupção
Não havia uma corrupção completa no início na China, como era o caso na Rússia stalinista, devido às condições de vida muito baixas na China. Contudo, havia privilégios para os oficiais da burocracia, muitos deles vindos do antigo regime do KMT, particularmente através de uma “condição de vida privilegiada, que era minuciosamente graduada hierarquicamente. [e o] estilo de vida pessoal [de Mao] era de uma real auto-indulgência, praticada com tremendos custos para o país”.
O livro está semeado de exemplos de prédios e palácios, os recintos especiais que Mao e a burocracia concederam a eles mesmos. Tal era seu medo, ao que parece, de um ataque, que não havia apenas veículos que o transportava diretamente para seu recinto, “algumas vezes mesmo o trem de Mao corria até sua vila – ou falando exatamente, até a frente do jardim… Em muitos lugares, um túnel subterrâneo exclusivo seguia o caminho da vila até o aeroporto militar local… Por todo o seu reino, ele vivia em seu próprio país como se estivesse em uma zona de guerra.”
Como todo regime stalinista, com o arbitrário poder exercido de cima, Mao era sujeito aos mesmos zigzags que Stalin os quais, devido ao tamanho do país, eram feitos com colossais consequências negativas, que prejudicava as vantagens de um plano de produção. Como na Rússia, a coletivização foi levada a cabo com o trabalho forçado, como os autores indicam, e foi usada contra o campesinato em particular, na tentativa de acumular forças para a industrialização forçada.
Um estado democrático dos trabalhadores poderia ter procedido de forma inteiramente diferente da abordagem de Mao. Lenin e Trotsky pontuaram que a construção de cooperativas agrícolas, nunca a coletivização, deveria ser implementada por métodos voluntários por decisões democráticas tomadas entre a indústria e a agricultura, com bens industriais sendo fornecidos aos camponeses pela indústria nacionalizada. Os métodos arbitrários e ditatoriais de Mao resultaram, de acordo com os autores, em pelo menos 22 milhões de mortos.
Uma catástrofe similar resultou do “Grande Passo Adiante”, com a aceleração do crescimento envolvendo “fornos de quintal” e a extorsão da população. Em um país atrasado como a China, onde uma revolução teve lugar, isolado e sem democracia operária, de fato, o regime procura para realizar as tarefas que o capitalismo é incapaz de resolver, mas muitas vezes com os mesmos custos do capitalismo.
Na China, isso foi complementado pela louca tentativa de Mao de tentar criar um status de superpotência através da aquisição de armas nucleares. Quatro milhões de chineses foram envolvido em projetos para a aquisição de adquirir tecnologia nuclear. Isso foi combinado com a “teoria” de Mao de que uma terceira guerra mundial era provável, e mesmo desejável, na qual o “socialismo” chinês poderia emergir vitorioso. Isso fez o alarme soar em Washington e em Moscou. Esse livro revela que não há nada de novo na doutrina de George W. Bush de “ataque militar preventivo”. O presidente John F Kennedy, o grande “liberal”, considerou um ataque nuclear às instalações nucleares da China, antecipando em mais de 20 anos o ataque de Reagan ao Irã em 1981.
Uma parte significativa do livro lida com a Revolução Cultural, na qual Mao mobilizou 22 milhões de “Rebeldes Vermelhos” contra a ala da burocracia representada por Liu Shao-chi, que tinha rebaixado Mao depois da catástrofe do Grande Salto Adiante. O propósito desta “pseudo-revolução” era restaurar Mao de volta ao poder e também coibir os excessivos privilégios da burocracia. Mas, saindo dos limites da elite burocrática, Mao desencadeou forças, algumas das quais foram muito além de Mao na direção de uma maior democracia e a contestação à burocracia. Isso é muito bem detalhado no livro.
Isso também ilustra que, apesar da fraseologia de Mao sobre “revolução”, ele temia um movimento independente da classe trabalhadora, como aconteceu na Alemanha Oriental em 1953 e na Hungria em 1956. Em ambos os casos, ele apoiou Khrushchev na repressão a esses movimentos que procuravam por uma revolução política – não o retorno ao capitalismo – preservando a planificação da economia mas com uma democracia operária. Tendências similares se desenvolveram na revolução cultural, embora não no mesmo nível que na Hungria e Alemanha Oriental.
Morte de Mao
A morte de Mao, como é bem conhecido, levou à re-ascensão de Deng Xiaoping, que tinha caido em desgraça na Revolução Cultural e que iniciou os primeiros passos que resultaram no renascimento do capitalismo chinês, o curso dominante na China de hoje.
A publicação deste livro está organicamente ligado a este processo. Ele recebeu elogios ardentes em todos os jornais capitalistas e está no topo na lista dos best sellers “não-ficção de capa dura” nas livrarias britânicas. É irônico que um dos autores, Jon Halliday, era ligado à New Left Review, que no auge do fervor maoista adotou uma abordagem acrítica ao fenômeno Mao. Ex-maoistas se enfileiram para encher o livro de louvores. Como Solzhenitsyn na Rússia, que escreveu excelentes denúncias fictícias sobre o stalinismo, Cisnes Selvagens de Jung Chang era de um filão similar mas contra o stalinismo chinês. Solzhenitsyn escreveu O arquipélago Gulag, denunciando os campos de concentração de Stalin e os processos de expurgo mas sem mencionar que os principais acusados eram Trotsky e os trotsquistas. Seu livro foi usado para desacreditar não apenas o stalinismo mas também as idéias do genuino marxismo e socialismo democrático.
Infelizmente, este novo livro cumpre a mesma função em relação à China. Os capitalistas de todo o mundo anseiam em usar os crimes do stalinismo para desacreditar o socialismo e a idéia da economia planificada e, fazendo isso, acelerar o processo de transição capitalista na China, que abriria a expectativa de enormes mercados e lucros para eles. Infelizmente, o regime chinês cada vez mais capitalista adere teimosamente à formula de Mao aplicada à Stalin mas agora aplicada pelos governantes chineses a ele: “70% bom, 30% ruim”, com pôsteres e estátuas de Mao dominando a praça Tiananmen. Isso é feito com a intenção de facilitar a transição “tranquila” ao capitalismo enquanto mantêm os principais elementos da repressão estatal de Mao.
Eles estão prontos, portanto, a dar boas vindas ao livro, mas não o podem os socialistas e marxistas, particularmente quando, nas primeiras páginas, é declarado: “Diferente da maioria dos ditadores fundadores – Lenin, Mussolini, Hitler – Mao não inspira seguidores apaixonados”. Colocar Lenin ao lado dos açougueiros dos trabalhadores alemães e italianos é uma abominação. Além disso, mesmo quando pontos corretos são feitos sobre os erros e crimes de Mao, estes são feitos no contexto de um ataque ao socialismo e à economia planificada.
Portanto, se os leitores forem abrir caminho entre as mais de 700 páginas deste livro, devem fazê-lo com um olho crítico. A nova geração de trabalhadores jamais retornarão às abominações do stalinismo. Eles irão rejeitar sem restrições o futuro capitalista para a China implícito neste livro, que será uma uma catástrofe, eclipsando os muitos desastres sob o maoismo, tanto para o povo chinês quanto para o mundo.