Mulheres na linha de frente: a nossa luta tem história!

Nos últimos anos aumentam as manifestações com pautas específicas das mulheres, com um novo ascenso, intensificando também o protagonismo das mulheres nas lutas gerais. Em pleno século XXI, as mulheres seguem com desigualdade salarial em relação aos homens, com mais tempo ainda destinado a tarefas domésticas levando a dupla, tripla e às vezes até quádrupla jornada de trabalho. Nesse cenário de agudização da crise econômica e política, nossas condições de vida se agravam, com aumento de casos de feminicídio e sendo mais impactadas nas políticas de ajuste fiscal.

Assumir o protagonismo das lutas para barrar o ajuste fiscal e o conservadorismo que se intensifica em tempos de crise do capital é uma necessidade da qual somos empurradas. É uma tarefa que é histórica e temos inúmeros exemplos disso.


O protagonismo não é de hoje

Revoluções e processos de transformação social são antecedidos por momentos de crise econômica, instabilidade política, que produzem impactos diretos na vida da maioria da população, da classe trabalhadora, dos subalternos, dos oprimidos. A história provou que a ausência do elemento subjetivo, capaz de canalizar os anseios e o descontentamento, portanto, de expressar um novo projeto de sociedade, pode fazer com que este cenário de barbárie se arraste por muito tempo.

Se é verdade que o conjunto dos trabalhadores sentem isso no seu cotidiano, existem ainda os que sentem mais. As mulheres têm assumido este papel de esteio, último degrau, sobretudo as negras, não brancas, não heteronormativa. Esta experiência empírica nos coloca em situação de alerta e muitas vezes, levando a situações onde há reação, e a luta é a única saída para a defesa das nossas vidas. Portanto, o papel protagônico em muitas lutas não é um processo do acaso, mas fruto das condições objetivas e da vida na sociedade.

As mulheres sempre estiveram ativas nos processos revolucionários e insurrecionais, pelo mundo a fora. Segundo Wendy Goldman em Mulher, Estado e Revolução, as mulheres na Revolução Francesa foram ativas enquanto classe. Marcharam, protestaram, se alistaram no exército, construíram clubes de mulheres. As mulheres trabalhadoras também foram ativas, mas sua ação ainda estava muito associada a família, compuseram as marchas por pão, já que garantir alimentos era uma das suas tarefas.

Ângela Davis em Mulheres, Raça e Classe apresenta um importante trabalho capaz de dar luz ao papel das mulheres, sobretudo das mulheres negras, na construção da luta abolicionista e sufragista.  Apesar de não se caracterizarem como lutas revolucionárias, possibilitaram avanços substanciais no que se refere aos direitos sociais das mulheres e do povo preto. Interessante como ela apresenta processos de desobediência civil, de mulheres negras no início do século XIX, em ensinar a ler, criar escolas, grupos para enfrentar a violência sexual que sofriam. Resistiam ao assédio sexual dos homens brancos, envenenavam os senhores, defendiam suas famílias, participavam de paralisações e rebeliões, sendo as mais aguerridas e firmes na luta.

O final do século XIX foi agraciado por uma aurora, ainda que pálida, segundo Trostky, da revolução operária: a Comuna de Paris. Apesar da duração de apenas 72 dias, de não ter se consolidado, foi a primeira experiência da classe trabalhadora em tomar o poder.  A condição de vida dos trabalhadores e dos pequenos proprietários, às vésperas da Comuna, era de extrema pauperização e radicalização, tanto que, apenas entre 13 e 17 de março de 1871, ocorreram 150 mil protestos.

As mulheres partiram primeiro. Em de 18 de março de 1871, em estado de sítio, haviam recebido uma ração de miséria – não esperaram seus homens. Rodearam as metralhadoras interpelando os chefes “é indigno o que estás fazendo aí” – os soldados se calam (Lissagaray, 1995).  As mulheres impediram que as armas fossem retiradas dos soldados pelas tropas do governo, chamando os trabalhadores a tomar Paris. Paris tinha o controle das armas e o apoio dos soldados e da população já no dia 18 de março. A manhã do dia 19 foi despertada com a vitória da Comuna sobre os conservadores de Versalhes.

A própria antessala da Comuna contou com a participação das mulheres na construção de reuniões públicas, onde o programa a ser defendido foi gestado. Figuras femininas entraram para história como fortes combatentes, como Louise Michel, Nathalie Lemel ou Elisabeth Dmitrieff, que pegaram em armas e defenderam a “sua” revolução, mas muitas outras trabalhadoras anônimas compuseram esta luta.

Estes processos servem como acúmulo para as lutas futuras, não se prendem no tempo e na memória da classe. A revolução Russa expressa esse acúmulo da classe. As lições das experiências anteriores, os limites e erros cometidos na Comuna foram importantes para a revolução de 1917. No que se refere ao papel das mulheres, a Revolução Russa corrobora a tese de que o papel protagonico não é fruto do acaso histórico.

Vito Giannotti e Claudia Santiago construíram uma cartilha que remonta a história do 8 de março, pois questionam a versão de que o 8 de março teria começado a partir de uma greve ocorrida em 1857 em Nova Iorque, quando teriam morrido 129 operárias queimadas vivas. A obra lembra que o Dia Internacional da Mulher tem origem socialista, e que a data 8 de março foi fixada a partir de uma greve iniciada no dia 23 de fevereiro de 1917, na Rússia, em uma manifestação organizada por tecelãs e costureiras de Petrogrado, estopim da primeira fase da Revolução Russa.

Na Rússia, o início do século XX já foi antecedido por congressos e conferências de mulheres onde debatiam a necessidade de pautas especificas serem incorporadas pelo conjunto da classe trabalhadora, como condição para uma revolução socialista de fato.

E como bem apontou Goldman, direitos sociais, jamais conquistadas por países capitalistas até então, foram garantidos nos primeiros anos da Revolução: Direito ao aborto, casamentos livres, direito ao divórcio, lavanderias e restaurantes coletivos, a descriminalização das relações homoafetivas. Tudo isso fruto da luta revolucionária da classe trabalhadora, que apesar da degeneração estalinista, comprovou que só através de um processo revolucionário será possível a garantia de pelos direitos às mulheres.

Em síntese, a história revela que as mulheres sempre estiveram na primeira fileira dos processos revolucionários, ainda que ao longo dele tenham enfrentando, dentro e fora, batalhas importantes para se reafirmar e reafirmarem as nossas pautas rumo a emancipação humana. A história revela que lutas efetivas contra as opressões devem estar associadas a luta contra o sistema capitalista, pois este se utiliza das opressões para manter o padrão de acumulação de capital: pagando menores salários, criando um exército de trabalhadores vulneráveis e ampliado o espaço das tarefas do cuidado, abandonadas pelo Estado e necessárias a reprodução do capital as mulheres.

A história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa.

De fato, é inegável os elementos trágicos que impõe as mulheres à linha de frente das lutas insurrecionais e revolucionárias já que isso decorre do fato de sermos duplamente agredidas: oprimidas e exploradas enquanto classe, enquanto 99%.

No entanto a não clareza da nossa tarefa e ao mesmo tempo a ausência de instrumentos capazes de articular e canalizar este descontentamento pode nos levar as farsas, já repetidas e apresentadas em outros momentos históricos como solução para os nossos problemas.

A Primavera Árabe foi um dos mais importantes eventos do século XXI, rumo a luta por direitos democráticos, contra as ditaduras que se instalavam em boa parte dos países envolvidos. Este revelou-se um período memorável de ativismo e mudança para as mulheres. Segundo Vânia Martins, do blog A Comuna, é necessário recuperar o papel das pioneiras feministas no movimento egípcio de 1919 pela independência, ou o importante lugar das mulheres na Revolução Argelina, elementos capazes de remontar uma memória história de luta que não e perde com o tempo.

Na Tunísia, as mulheres saíam às ruas para protestar levando seus filhos, na grande maioria das vezes. No Egito, os protestos massivos que levaram a derrubada de Mubarak contaram com um vídeo de uma jovem garota nas redes sociais que circulou o mundo. No Iémen, como na Síria, mulheres se organizaram e chamaram protestos. Ainda segundo Martins, na Síria as mulheres bloquearam estradas para exigir a libertação de seus maridos e filhos presos. Na Líbia, cidades identificadas como reduto do fundamentalismo muçulmano, foram tomadas pelos protestos das mulheres contra Kadafi.  Importante lembrar que as mulheres muitas vezes enfrentaram conflitos no interior das manifestações para continuar lutando, criando cordões de segurança e proteção contra o assédio e estupros, ações comuns em países onde as mulheres são consideradas propriedade dos homens, pais e maridos, perante a lei.

Certamente as razões da Primavera árabe estão associadas à situação de pobreza, precarização da vida, e ausência de direitos democráticos, provocadas pelo capitalismo neoliberal, que vive uma das suas maiores crises. Dentre as ativistas haviam mulheres de todas as classes sociais. Todavia eram as trabalhadoras que superam o debate da igualdade perante a lei, reivindicando direitos trabalhistas e igualdade salarial.

Contudo, a ausência de uma referência capaz de apresentar uma real alternativa ao sistema de conjunto, fez com que hoje muitos destes países sofressem com o retrocesso. A Primavera Árabe não foi levada até as últimas consequências. Muitos dos governos derrubados foram ocupados por grupos religiosos, fundamentalistas, a exemplo da Irmandade Mulçumana, no Egito, fazendo com que a situação das mulheres em alguns países retrocedesse. Na Síria por exemplo, a guerra civil tem utilizado dos estupros como armas de combate e destruição. A situação dos refugiados, símbolo de uma das maiores crises humanitárias, é um reflexo deste processo revolucionário que não se completou.

O que nos leva a reforçar a tese de que a luta pelos direitos das mulheres, não terá resultados efetivos se não for uma luta de conjunto contra a sociedade capitalista. Adolph Reed, cientista político norte americano, chama atenção para o que denomina neoliberalismo de esquerda, as políticas de identidades. Identifica o limite do debate de opressões, quando feito descolado do debate de classes sociais, da totalidade das relações sociais. Este risco nos leva a acreditar na falsa possibilidade de que o problema das opressões pode se resolver com soluções técnicas dentro do próprio capitalismo. A luta do povo árabe é prova cabal disso, mas não apenas.

As farsas construídas em torno de nomes de mulheres, por exemplo, como forma de garantia de melhores condições e de ampliação de direitos, a exemplo de Dilma no Brasil, ou de Kishiner na Argentina, são facilmente descontruídas ao analisarmos os dados brutos que revelam o quanto a condição de vida das mulheres piorou nos últimos anos. O feminicídio, no caso destes países, é uma triste realidade. Isso tudo potencializado pelos cortes orçamentários no setor de serviço em detrimento da manutenção da política neoliberal, agravado no caso especifico de política para mulheres.

Essas experiências históricas precisam ser resgatadas, seus acertos e erros, aproveitando esse momento de fôlego da luta das mulheres, avançando na construção de um feminismo internacionalista e classista, que  permitirá ganhos efetivos para nossas pautas tão urgentes!

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