Primeira Guerra Mundial – Cem anos do grande massacre
A Primeira Guerra Mundial começou há 100 anos, desencadeando um massacre numa escala sem precedentes. Este aniversário foi apresentado com destaque na mídia capitalista. A maior parte da imprensa, porém, fracassa em tentar explicar por que milhões de pessoas da classe trabalhadora foram enviadas para a morte nos infernos das trincheiras da guerra: a busca do capitalismo por lucro, exploração, matérias-primas e mercados.
Artigo publicado originalmente em Socialism Today, a revista do Partido Socialista (CIT na Inglaterra e País de Gales)
As batalhas travadas na Primeira Guerra estão entre as mais sangrentas na história. Na batalha de Ypres, na Bélgica, o exército britânico perdeu 13 mil soldados em três horas só para avançar 100 metros! No primeiro dia da batalha do Somme, morreram 60 mil, a maior perda já sofrida pelo exército britânico. Isto apesar do fato de que, nos seis dias anteriores, as linhas alemãs tinham sido atingidas por três milhões de granadas!
O total de vítimas na batalha do Somme foi de 1,1 milhões de soldados em ambos os lados. Até o fim da guerra, em 1918, os Aliados (liderados pela aliança da Entente, entre Grã-Bretanha, França e Rússia) contabilizaram 5,4 milhões de mortos e sete milhões de feridos. Seus opositores das Potências Centrais (Alemanha, Áustria-Hungria, o Império Otomano e Bulgária) sofreram quatro milhões de mortes, 8,3 milhões de feridos. Foram principalmente recrutas jovens, da classe trabalhadora, que faleceram.
Foi o primeiro conflito verdadeiramente global. Ele terminou uma época histórica, abriu outra e reformulou as relações internacionais entre as classes. Ele abriu o caminho para os EUA substituírem a Grã-Bretanha como a principal potência imperialista do mundo. Acima de tudo, a Primeira Guerra atuou como parteira para o maior evento na história da humanidade: a Revolução Russa em 1917. Lá, a classe trabalhadora foi capaz de assumir o controle da sociedade. Ao mesmo tempo, uma onda revolucionária varreu pela Europa.
A perspectiva de uma revolução socialista em uma série de países europeus foi colocada. Na Alemanha, o imperador foi forçado a abdicar quando uma revolução operária varreu o país entre 1918 e 1919. Na Baviera, foi declarada uma república soviética e conselhos de trabalhadores foram estabelecidos em Berlim e em outras cidades alemãs. Na Hungria, uma república soviética foi brevemente estabelecida entre março e agosto de 1919. Grandes greves e mais de cinquenta motins no exército e na marinha ocorreram na Grã-Bretanha. No entanto, com a exceção da Revolução Russa, estes movimentos foram finalmente derrotados por conta das políticas equivocadas adotadas pelos líderes dos trabalhadores. A derrota das revoluções na Europa abriu o caminho para a Segunda Guerra Mundial, 1939-1945 – deste modo, a Segunda Guerra também pode ser atribuída ao legado deixado pela carnificina de 1914-18.
A guerra representou um teste decisivo para o movimento internacional dos trabalhadores. Excluindo uma pequena minoria – Lenin, Trotsky e demais revolucionários russos, Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, na Alemanha, e um punhado de outros – as lideranças dos poderosos partidos dos trabalhadores da Europa capitularam uma após a outra. Eles abandonaram uma posição anti- guerra, socialista e internacionalista, passando ao invés disso a apoiar as classes dominantes de seus países.
A luta pelos mercados
O estopim para a carnificina foi o assassinato do arquiduque austríaco Francisco Ferdinando em Sarajevo, em 28 de junho de 1914. Contudo, isso realmente poderia ser a causa de um conflito tão global? Embora centrada na Europa, a guerra atingiu a África, Ásia, América Latina e, é claro, os EUA. Enquanto o assassinato do arquiduque pode ter sido o pretexto para desencadear a guerra, haviam outras causas subjacentes. A guerra irrompeu como uma luta massiva em defesa de interesses econômicos, mercados, poder político e prestígio.
No período até 1914, a Grã-Bretanha era a potência mundial dominante, com um vasto império que abrangia 25% da superfície da Terra. O império era uma fonte de matérias-primas e mercados. No entanto, o poder econômico da Grã-Bretanha estava em declínio. A França, outra grande potência europeia na época, tinha um império centrado principalmente na África e no Extremo Oriente. Embora significativo, o seu império tinha apenas cerca de um quinto do tamanho do império britânico e sua industrialização estava muito atrasada.
A Alemanha, unificada apenas em 1871, tinha colônias com apenas cerca de um terço do tamanho do império francês. No entanto, ela tinha experimentado uma rápida industrialização e tinha uma produtividade maior do que a Grã-Bretanha. Enquanto a Grã-Bretanha estava produzindo seis milhões de toneladas de aço por ano, a Alemanha produzia doze milhões. No entanto, a Alemanha estava precisando desesperadamente de mais colônias que lhe prestassem matérias-primas e mercados muito maiores – a lógica do desenvolvimento econômico capitalista. Porém, a Grã-Bretanha e a França já dominavam a maior parte das colônias. No leste europeu, a Alemanha estava bloqueada por um império czarista russo em expansão e os interesses anglo-franceses.
Esta luta por mercados criou o fundamento para a guerra em 1914. O desenvolvimento das forças produtivas – indústria, ciência e técnica – tinham superado as limitações impostas pelos estados nacionais. Isso já tinha trazido a Grã-Bretanha, França, Bélgica, Portugal e Alemanha a um embate na chamada “Partilha da África”, durante o século XIX. Durante as quatro décadas após a Guerra Franco-Prussiana de 1870-71, houve um período de crescimento econômico. Entre 1870-1914, houve uma significativa integração econômica global, algo até então sem precedentes.
Este processo traz alguns paralelos com a situação que se desenvolveu no período recente, especialmente desde o colapso dos antigos estados stalinistas na Rússia e na Europa Oriental. Assim como hoje, entretanto, isso não quis dizer que o Estado-Nação ou os interesses nacionais das classes dominantes haviam se tornado obsoletos, ou um resquício de um período histórico anterior do capitalismo – como a própria guerra de 1914-18 demonstrou.
Haviam também outros fatores históricos interligados por trás das ações das classes dominantes. O final do século XIX até 1914 foi um período marcado por um enorme rearmamento por todas as potências europeias. A Guerra Franco-Prussiana de 1870-1871 resultou na criação de uma Alemanha unificada e abriu o caminho para o seu rápido desenvolvimento econômico, enquanto a França saiu enfraquecida, perdendo parte do seu território da Alsácia-Lorena.
A eclosão da Guerra dos Balcãs, em 1912, foi um passo decisivo para a guerra de 1914-18. O Império Austro-Húngaro, que estava entrando em colapso, foi obrigado a agir contra as tentativas da Sérvia de expandir seus territórios na região dos Balcãs. A Rússia czarista apoiou a Sérvia, a fim de estender os seus interesses na região, enquanto a Alemanha apoiou a Áustria. Assim, quando a Rússia ordenou uma mobilização militar total em resposta à declaração de guerra da Áustria-Hungria contra a Sérvia, em 28 de julho de 1914, a Alemanha respondeu declarando guerra à Rússia e França (1-3 agosto 1914). Quando a Alemanha invadiu a Bélgica, a fim de marchar sobre a França, a Grã-Bretanha declarou guerra à Alemanha.
A direção desse processo estava clara para o movimento internacional dos trabalhadores. Já em novembro de 1912, mais de 500 delegados da Segunda Internacional reuniram-se em Basileia, na Suíça. Eles votaram uma resolução contra a Guerra dos Balcãs e a ameaça de guerra em toda a Europa, em favor da luta internacional da classe trabalhadora. Escandalosamente, quando a Primeira Guerra se iniciou, um por um os líderes dos partidos social-democratas capitulou e apoiou suas próprias classes capitalistas no conflito.
A eclosão da guerra
O expansionismo econômico dominou os 40 anos que antecederam a guerra. Em 1913, greves e protestos eclodiram em todos os principais países quando os trabalhadores exigiram a sua parte do crescimento econômico. O partido dos trabalhadores alemães, o SPD, havia feito importantes ganhos nas eleições de 1912. Ao mesmo tempo, em 1913 houve o início de uma crise econômica. As classes dominantes temiam que isso pudesse levar a uma intensificação da luta de classes e, assim, a ameaça de guerra foi utilizada em todos os países para tentar frear esse processo.
A propaganda nacionalista em ambos os lados resultou inevitavelmente em uma enorme onda patriótica com a eclosão da guerra. Todos os governos alegaram, como é sempre o caso, de que a guerra era uma causa justa e que ela seria breve.
Houve manifestações contra a guerra, na maioria dos países. Na Alemanha, centenas de milhares de pessoas participaram de protestos pela paz. No entanto, o clima predominante no início da guerra foi de uma febre patriótica.
Onda revolucionária
A onda de patriotismo deu lugar à oposição maciça quando a realidade da guerra de trincheiras foi vivenciada por milhões de pessoas em ambos os lados do conflito. A grande Revolução Russa de 1917 foi a primeira ruptura decisiva como o massacre incessante. A chegada ao poder dos bolcheviques pôs fim oposição ao conflito em ambos os lados.
Isto, juntamente com a matança agora aparentemente fútil, teve um impacto decisivo, transformando a visão de milhões de pessoas, especialmente os soldados e marinheiros. Motins eclodiram nos exércitos franceses e britânicos. No norte da França, as tropas no front ocidental receberam ordens para começar uma segunda desastrosa batalha do Aisne, sob a promessa que ela acabaria com a guerra. O ataque falhou e o ânimo das tropas mudou de um dia para o outro. Quase a metade das divisões de infantaria francesas no front ocidental se revoltaram, inspiradas na Revolução Russa. Três mil e quatrocentos soldados enfrentaram corte marcial.
Em agosto de 1917, houve um motim a bordo do navio de guerra alemão Prinzregent Luitpold, ancorado no porto de Wilhelmshaven. Quatrocentos marinheiros desembarcaram e se juntaram a um protesto exigindo o fim da guerra. Em 3 de novembro de 1918, os marinheiros da frota em Kiel se amotinaram e hastearam a bandeira vermelha, provocando uma onda revolucionária em toda a Alemanha.
Estes eventos, sobretudo a Revolução Russa, foram decisivos para finalmente pôr fim à guerra, agora odiada. Seu término inaugurou uma onda revolucionária em toda a Europa, que aterrorizava as classes dominantes. Com exceção da Rússia, no entanto, esses movimentos em massa não resultaram na tomada e manutenção do poder pela classe trabalhadora.
O fim da guerra marcou o início de uma nova situação mundial e mudou o equilíbrio de poder entre as potências imperialistas. O triunfo dos bolcheviques na Rússia introduziu um fator inteiramente novo para as classes capitalistas. A Alemanha foi obrigada, pelo Tratado de Versalhes, a pagar enormes reparações de guerra após a sua derrota, o que teve um impacto devastador sobre a economia. A parcela final dessa dívida só foi paga em 2010 – 92 anos após o fim da guerra! O fracasso da revolução alemã e as políticas equivocadas dos partidos operários alemães abriram o caminho para o triunfo dos fascistas e Hitler em 1933, levando à eclosão da guerra de novo em 1939. As consequências da Primeira Guerra Mundial também aceleraram o declínio do imperialismo britânico, abrindo o caminho para os EUA se tornarem a potência imperialista dominante.
O fracasso da revolução socialista na Alemanha e no resto da Europa também significou que a Rússia revolucionária ficou isolada. Eventualmente, isso resultaria na degeneração da Revolução Russa e do surgimento do regime stalinista burocrático na União Soviética. Apesar da distorção monstruosa do socialismo que este regime representava, juntamente com a imposição de regimes semelhantes na Europa Oriental após a Segunda Guerra Mundial, o bloco stalinista manteve as potenciais imperialistas em cheque. Eles tiveram que se manter unidos – e conseguiram, em grande parte, mascarar suas diferenças – contra um inimigo comum que representou um sistema social alternativo ao capitalismo, baseado em uma economia planificada nacionalizada.
Novas guerras
No entanto, com o colapso desses regimes e o restabelecimento do capitalismo, foram reabertas as velhas tensões (e novas tensões surgiram) entre as potências capitalistas. A globalização da economia mundial, que já atingiu um nível sem precedentes, – ainda maior do que em 1870-1914 – novamente mostra como as forças produtivas superaram a existência dos Estados-Nação. No entanto, os recentes conflitos que eclodiram entre as potências mundiais têm revelado que o estado nacional ainda não é obsoleto, já que cada classe dominante age para defender seus próprios interesses econômicos, políticos, militares e estratégicos. As crescentes tensões entre os EUA e a China na Ásia, a crise na União Europeia, o conflito da década de 1990 nos Balcãs, os conflitos no Oriente Médio e o choque atual entre a Ucrânia e a Rússia, são todos indicações do choque entre as várias potências imperialistas e capitalistas. No fundo, estes também são parte de um esforço para adquirir novas esferas de influência e mercados, como foi o caso na guerra de 1914-18.
Muitos da nova geração se perguntam se isso significa que uma nova guerra mundial é possível. Embora os EUA seguem dominando a política mundial, eles são uma potência em declínio, como a Grã-Bretanha foi no início do século XX. Mesmo assim, continua a ser a maior das potências mundiais, ainda muito à frente de China e Japão. As outras potências emergentes, como Rússia, Índia e Brasil, permanecem muito atrás, mas se esforçam para estender sua influência em suas próprias áreas. A posição enfraquecida do imperialismo dos EUA tem sido claramente demonstrada recentemente por sua incapacidade de intervir diretamente na Síria ou no conflito entre Ucrânia e Rússia. As consequências catastróficas da invasão do Iraque, em 2003, tornaram muito mais complicado para o imperialismo dos EUA e de outras potências a realização de intervenções militares.
No entanto, como os acontecimentos recentes têm revelado, a perspectiva de conflitos e guerras regionais se colocam nesta era de renovada crise capitalista e da luta por mercados e recursos limitados. Apesar disso, o equilíbrio de forças sociais e de classe torna difícil, no curto e médio prazo, a eclosão de uma guerra mundial, como em 1914-1918 e novamente em 1939-1945. As consequências de um conflito desses, com a existência de armas nucleares que significariam a total destruição da humanidade, juntamente com o medo das classes dominantes das convulsões sociais e revoluções que surgiriam, agem como um obstáculo sobre os governantes do imperialismo e do capitalismo hoje.
A dura realidade dos horrores da guerra e da miséria e do sofrimento humano que surgem dos desastres que se desdobram na Síria, Iraque, Rússia/Ucrânia, Isreal/Palestina e em outras áreas, indicam as consequências sangrentas e brutais do capitalismo na era moderna. Se o capitalismo e o imperialismo não forem derrotados, novos conflitos ainda mais horríveis ocorrerão no futuro. Uma nova geração de jovens e trabalhadores precisa tirar lições da matança desencadeada entre 1914-1918. A necessidade de partidos dos trabalhadores independente que lutem por uma alternativa socialista e internacionalista ao capitalismo, que combatam o nacionalismo das classes dominantes é tão relevante hoje como era em 1914 para que banhos de sangue futuros sejam evitados.
Só um mundo socialista, com base no planejamento democrático da economia, pode oferecer uma alternativa à luta pelos mercados e interesses econômicos, que são as consequências inevitáveis do capitalismo e a fonte das guerras.