Sobre a democracia real já
Os movimentos de juventude que têm tomado as praças das principais capitais mundiais nos últimos meses têm posto em xeque a tão propalada “estabilidade” e “prosperidade” que o capitalismo neoliberal supostamente traria para a sociedade. A partir da crise econômica de 2008, governos de todos as matizes correram para socorrer os bancos em apertos financeiros, e agora a conta dessa operação de resgate está sendo imposta à classe trabalhadora e à juventude da Grécia, Espanha, EUA e mundialmente.
Esse ano de 2011 começou de maneira memorável com os movimentos de massas que derrubaram as ditaduras do Oriente Médio (Egito e Tunísia). O exemplo de milhares de pessoas ocupando a praça Tahrir, no Cairo, está dando o tom para a juventude da Espanha e Grécia, e para o movimento Ocupe Wall Street. De um ponto de vista liberal, os movimentos árabes tinham sentido, porque se insurgiam contra ditaduras no poder há 20, 30, 40 anos. É claro que a derrubada dessas ditaduras é um fato imensamente progressivo, mas o que vem depois delas? Para os povos árabes, assim, estaria colocado o caminho da “democracia”, substantivo simples e bonito, uma espécie de palavra-chave que parece resumir tudo. Todos os problemas que levaram as pessoas à luta contra Mubarak e Ben Ali, pobreza, repressão, corrupção extremas, falta de perspectivas para uma juventude que se vê jogada em uma situação desesperadora, iriam se resolver se o povo tivesse a chance de escolher os seus governantes. Bastava eleger pessoas que se preocupavam com o povo e seus problemas sociais, para que as soluções começassem a ser encontradas.
Mas o que dizer então dos movimentos que ocorrem nos países chamados “democráticos”? Qual a razão de protestarem, se têm a oportunidade de escolherem livremente quem governa o país e, caso não se sintam satisfeitos com as políticas de seus governantes, podem substitui-los por outros que tenham um programa diferente? Qual é a razão então de tanta amargura contra o sistema político que, supostamente, é a síntese de todas as aspirações da humanidade?
A resposta para esse enigma talvez esteja no slogan levantado pela juventude que ocupou a Puerta del Sol, em Madrid: “Democracia real já!”. Opa, espere ai! Como é que então não existe democracia na Espanha, nos Estados Unidos, na Grécia? Como podem dizer isso? Se o que se tem nos Estados Unidos não é democracia, o que seria então?
Democracia é uma palavra muito usada, tão usada que talvez seu conteúdo esteja desvirtuado pelo excesso de uso. Todos os meios de comunicação, todos os partidos, todos os políticos profissionais, fazem apologia da democracia, substantivo sem adjetivo, palavra que, à maneira da alavanca de Arquimedes, parece mover o mundo. Mas o que realmente entendem por essa palavra? Talvez seja o caso de tentarmos precisar o que significa isso.
Democracia vem do grego e quer dizer “governo do povo”. Pergunte a qualquer político ou “democrata” profissional o significado dela e ele lhe dirá que o povo tem a chance de escolher seus representantes em eleições livres e justas, que por sua vez representam melhor os desejos do povo.
Essa é a concepção mais comum de democracia que temos. Na sua origem, entretanto, ela significava que o povo exercia diretamente o poder político através do exercício das funções públicas (república vem de “res publica”, coisa pública). É o que está na constituição de vários países: “Todo o poder emana do povo, e em seu nome será exercido”. Certo, o poder emana do povo (afinal, é ele quem dá sustentação e dele os governos buscam tirar sua legitimidade). Certo, o poder será exercido em nome do povo, mas quem o exerce, e com que objetivos?
Para esclarecer um pouco essa questão, basta dizer que ditaduras como a brasileira faziam juras sobre juras de seu amor pela democracia (afinal, foi em nome dos valores “democráticos” e “cristãos” do povo brasileiro que os militares deram o golpe: eles queriam preservá-los para o povo, como uma mãe esconde o brinquedo do filho que não tem cuidado suficiente para preservá-lo). Ou seja, reconheciam que seu poder era emanado do povo, e em nome dele governavam. Isso não quer dizer que se preocupassem em ouvir o que o povo tinha a dizer sobre coisas que o afetavam diretamente, como saúde, educação, habitação, ou mesmo sobre as figuras que o governavam em seu nome.
Ou seja, em qualquer governo, mesmo um que se diga democrático (aliás, desde o início do século XX pouquíssimos governos na História foram abertamente contrários à democracia), a questão é quem exerce o poder de fato, de quem controla as decisões de seus agentes e a quem estes prestam contas. E o que significa poder aqui? Poder é a possibilidade de alterar ou modificar as condições de sua existência, de ter controle sobre os aspectos mais essenciais de sua vida.
Na sociedade em que vivemos, uma pessoa, digamos um trabalhador de uma fábrica ou de uma loja, pode ser nominalmente cidadão e exercer seu direito ao voto. Pode protestar contra a negligência do Estado frente à saúde pública, por exemplo. Mas, no seu local de trabalho, ele é livre para expressar abertamente suas opiniões, reclamar sobre o que considera errado, até mesmo sobre coisas que afetam sua saúde como trabalhador? Se fizer isso, é demitido. Ele deve se submeter à autoridade do patrão, do encarregado, do chefe imediato. Já vemos, então, que há uma separação entre a esfera “pública” e a “privada”.
Aqui começamos a nos aproximar do X da questão. O poder político, em última instância, é sempre uma questão de poder econômico. Como uma democracia pode funcionar se os votos de milhões de cidadãos comuns não possuem o mesmo peso político que um punhado de milionários cuja influência se faz valer por mil maneiras, legais e ilegais? A juventude de hoje tem razão ao dizer que representam 99% da sociedade, que está arcando com a crise que o 1% restante causou. Mas esse 1% detém todos os mecanismos de poder: as instituições financeiras, a grande mídia, os organismos multilaterais. A democracia política em um país pouca eficiência tem contra o poder de grandes corporações, cujo rendimento é superior ao PIB de vários países. Se a Volkswagen sofre de baixos lucros em um país, ele fecha suas instalações e se muda para outro lugar, não se importando com as conseqüências sociais que a perda desses empregos pode causar.
O melhor exemplo de hoje em dia é a Grécia. É mais do que evidente que a esmagadora maioria do povo grego se opõe aos pacotes de ajuste econômico que são ditados pela chamada “Troika” (FMI, União Europeia e Banco Europeu), no entanto, todos os partidos no governo e na “oposição”, contra os desejos das próprias pessoas que os elegeram, baixam a cabeça frente aos ditames dos representantes políticos da burguesia internacional.
O atual movimento de contestação que a juventude mundialmente vem fazendo, portanto, tem que buscar atacar os fundamentos econômicos do poder das grandes corporações. Como fazer isso? A democracia real que exigem deve começar com a democratização das empresas, onde as decisões fundamentais sobre investimentos, produção, segurança, estejam sob o controle e gestão dos trabalhadores e pessoas diretamente afetadas, como os consumidores. Depois se espalhar para os bairros, em questões como segurança comunitária, habitação, saúde, questionando em profundidade toda a maneira como a sociedade se organiza hoje em dia.
Para que a atual onda de lutas não chegue a um beco sem saída, esgotando-se por si mesmo, os jovens devem buscar exemplos na História, que mostra que isso pode ser feito. Fatos como os conselhos operários russos e alemães, os cordões industriais do Chile, os comitês de bairro na Tunísia, estão todos ai para nos mostrar como a sociedade pode ser reorganizada a partir de baixo, com o envolvimento ativo dos trabalhadores, jovens e camponeses. Mas tais iniciativas, quando iniciadas, devem se ligar a nível local, regional e estadual, criando laços de solidariedade com as lutas de todo o mundo.
Para isso, a juventude de hoje, em sua luta por um futuro melhor, deve se ligar com os trabalhadores em luta, aprender com seus métodos e a sua história. Além de ocupar praças, os manifestantes devem ocupar os locais de trabalho, as fábricas, e mostrar uma nova maneira de gerir a sociedade, rumo a uma mudança estrutural, democratizando todos os seus espaços.