Capitalismo em crise – uma explicação marxista
O sistema só oferece saídas ruins
O papel da crise é de eliminar grande parte do excesso de capital, principalmente do capital especulativo e fictício. Mas o fato é que a economia mundial está mais dependente de crédito hoje pela complexidade da produção em escala mundial, com divisão de trabalho mundial, além do fato que uma parcela cada vez maior vá para a especulação. Nos EUA, por exemplo, cada novo dólar de crescimento do PIB requeria US$ 1,50 de crédito durante o “boom” pós-guerra. Nos anos 90, isso aumentou para US$ 3,00, e em 2007 chegou a US$ 4,50! Reduzir essa montanha de crédito significará um crescimento mais baixo no mundo, um aumento da pobreza e do desemprego.
Mas o que está acontecendo agora é que grande parte dessa montanha de capital fictício está sendo transformado em dívida pública, que em algum momento tem de ser paga. A presente crise marca o fim da fase recente da globalização, que tem sido dominada por uma especulação frenética que, por sua vez, foi alimentada por uma maré de crédito barato. Essa orgia de especulação, alimentada pelo crédito, chegou a seus limites e resultou num enorme aperto de crédito. O enorme peso morto das dívidas agora paira em cima da economia mundial, arrastando-a em direção a uma recessão global.
Economia mundial desequilibrada
“A crise de crédito atual, então, é muito mais que um sintoma de deficiência do sistema financeiro. É também um sintoma de uma economia global desequilibrada. A economia mundial talvez não possa mais depender da disposição das famílias americanas consumirem mais do que ganham. Quem vai substituí-las?”, perguntou Martin Wolf, no Financial Times 21 de agosto de 2008.
A economia mundial teve um período inédito de cinco ano de crescimento de mais de 5% anuais. Mas isso não levou a um aumento geral da prosperidade, nem nos países que mais cresceram. Muito pelo contrário, cresceram as desigualdades, e os desequilíbrios entre os países com superávit ou déficit aumentaram. Isso é algo insustentável, e vai continuar a gerar novas convulsões.
O papel do dólar
Qualquer tentativa de diminuir esse desequilíbrio tem de passar por um reajuste do dólar. Mas uma tentativa de rebaixar o valor do dólar pode levar a uma queda descontrolada, como foi a tentativa de 1985-86, e que resultou na crise de 1987. Se o dólar enfraquecer ao ponto dos grandes detentores de ativos em dólar começarem a abandoná-los e a vendê-los (gerando mais queda no valor do dólar), isso tornará impossível para os EUA financiarem suas dívidas acumuladas nos últimos 25 anos. Isso levaria a um ajuste doloroso que forçaria os consumidores a diminuírem o consumo, cortando seu padrão de vida em geral.
Se o dólar fosse seguir as regras econômicas do capitalismo, ele deveria perder valor, devido ao enorme déficit comercial que o país tem há muito tempo. Por outro lado, a moeda chinesa deveria valorizar-se, devido ao enorme superávit.
Quando o Brasil estava na mesma situação que os EUA nos anos 90, os juros chegaram a 50%, não só para tentar manter a inflação baixa, mas principalmente para atrair capital.
O dólar super-valorizado tem como efeito mercadorias importadas mais baratas para os consumidores estadunidenses. Por outro lado, as exportações ficam mais caras, o que ajuda a agravar o déficit comercial.
A China tem resistido em valorizar o reminbi, já que isso ia afetar as suas exportações. O país também tem grandes investimentos em papéis dos EUA, e uma queda do dólar comparado com a moeda chinesa, desvalorizaria os seus ativos.
Mas os países com grandes reservas em dólar não podem contar que a moeda norte-americana mantenha seu valor para sempre, por isso há um movimento para aumentar as reservas em outras moedas fortes, como o euro ou o iene japonês. Mas qualquer movimento brusco pode causar a fuga do dólar e uma queda descontrolada.
Um terço das exportações da China é produzida por empresas dos EUA. Um total de 60% das exportações é de empresas estrangeiras. Por outro lado, a China tem se tornado um dos principais mercados para a GM, que vendeu cerca de 700 mil carros o ano passado, e lucrando nisso, algo que ela tem dificuldade em fazer nos EUA.
A contradição entre um sistema global…
Tudo isso é reflexo de que faz muito tempo que o capitalismo cresceu além dos estado-nações. A produção não pode ser vista somente do ponto de vista de um país. Na ausência de uma moeda mundial, existe o dólar. Mas o dólar é, no final das contas, dependente da economia estadunidense e isso gera grandes contradições.
O sistema Bretton-Woods, gerado após a 2ª Guerra Mundial, tinha o dólar americano como moeda mundial. Keynes tinha proposto a criação de um Banco Central Internacional, com uma moeda internacional, mas as diferentes classes dominantes dos países não estariam preparadas para desistir de sua autonomia a esse grau. O valor do dólar era garantido pela maior reserva de ouro do mundo. Nos anos 70 os EUA foram forçados a abandonar o padrão-ouro, mas o dólar continuou a ser moeda mundial. A garantia era o enorme peso da economia estadunidense. Mas o peso dos EUA na economia mundial é menor agora. Os EUA são um país com grandes dívidas, e começam também a perder posições em setores chaves. Os EUA caíram para o terceiro lugar entre os maiores exportadores do mundo. A GM não é mais a maior montadora de automóveis do mundo, e a Boeing foi ultrapassada pela Airbus européia como a maior construtora mundial de aviões. Tudo isso enfraquece a base do dólar que será uma fonte de enormes crises no futuro.
Enquanto os EUA têm uma dívida externa líquida de US$ 5,4 trilhões, existem enormes reservas nos bancos centrais e fundos soberanos concentrados em alguns países. Calcula-se que os países emergentes tenham US$ 9 trilhões em reservas, e que os EUA contam que estas continuem a ser uma fonte de financiamento para os seus déficits (na verdade grande parte dessas reservas já são aplicadas em dólar, seja em títulos estadunidenses ou outros investimentos).
… e os interesses nacionais
Em algum momento, esses recursos serão usados para desafiar o poder dos EUA. Os investimentos dos fundos soberanos de países emergentes já estão gerando inquietação entre partes da classe dominante da maior potência do mundo. Qual será a reação se empresas com GM, Boeing etc. caírem na mãos de países árabes ou da China? Também na Europa há essa preocupação.
Silvio Berlusconi, o premiê da Itália, disse recentemente: “há notícias de que países produtores de petróleo, que têm muitos recursos, estão comprando maciçamente em nossos mercados. No momento, é uma ótima ocasião para aqueles que, dispondo de capital – e penso nos fundos soberanos –, façam uma ofensiva [sobre empresas européias enfraquecidas]” (Folha de São Paulo, 16/10).
O presidente Sarkozy, também na mesma linha, propõe que os países da União Européia criem seus próprios fundos soberanos para evitar que as empresas caiam em mãos do capital externo. “Não gostaria que os cidadãos europeus, dentre de alguns meses, descubram que as empresas européias pertencem a capitais não-europeus que as compram a preço baixo nas bolsas”, diz ele (Folha de São Paulo, 22/10).
Philip Stephens do Financial Times, expressa em um artigo titulado “Globalização colide com ‘neonacionalismo’” essa contradição do capitalismo (entre o Estado-nação e a economia mundial) dizendo “A economia e as finanças podem ser mundiais, mas a política continua local”
Hoje, uma nova grande guerra mundial está descartada entre as grandes potências que contam com armas nucleares. Mas é possível guerras via agentes; guerras menores por controle de recursos importantes, como o petróleo, mas que mesmo assim podem ser devastadoras. A guerra no Congo, de 1997-2003, foi uma guerra por controle de ricos recursos minerais, com vários outros países intervindo, mas também grandes interesses empresariais. A guerra contou com mais de 5,4 milhões de vítimas e a situação pode explodir de novo a qualquer momento.
Há também a possibilidade de que em certo momento se abra uma guerra econômica, comercial, com o aumento do protecionismo, que pode ter um efeito devastador na economia semelhante aos anos 30.
A alternativa descartada, sob o capitalismo, é um desenvolvimento harmônico no qual as melancias se encaixem no andar do caminhão.
Deflação ou inflação?
Por mais de 60 anos a crise de deflação tem sido uma memória do passado. O grande risco tem sido a inflação. Quando o Japão teve um período de deflação nos anos 90, isso foi visto como algo isolado. Mas agora o fantasma da crise deflacionária está assombrando de novo. Os preços ao consumidor dos EUA teve em outubro a maior queda da história do índice, criado em 1947, o que levantou os temores de deflação.
Desde os anos 80, o mundo passou por um período de desinflação (diminuição da inflação). Nos países capitalistas avançados a inflação média caiu de 7,1% em 1970-89, para somente 2,7% em 1990-2001.
A queda dos preços, vista em vários casos desde o ano passado, refletem a super-capacidade crônica, a queda na demanda e o estouro das bolhas de ações e imobiliárias. Isso que dizer que a deflação dos preços é vinculada à estagnação do capitalismo.
O Japão não conseguiu reverter a deflação nos preços apesar de juros de quase 0%, grandes pacotes do govero e um aumento massivo de dinheiro. Já constatamos que os EUA entram nesta crise com mais problemas que o Japão tinha quando entrou em sua crise em 1990. Uma crise deflacionária nos EUA levará a uma estagnação e a uma crise mundial prolongada.
Se os preços caem, isto não é bom? Pode ser sim, se estiver vinculado a um período de crescimento. Mas se vem num período de crise, o efeito pode ser extremamente negativo. Quando os preços caem, as pessoas fazer de tudo para adiar as suas compras. Por que comprar hoje, se ficará mais barato amanhã? Os mercados encolhem, e também os lucros. Os capitalistas respondem com demissões e cortes nos salários, o que diminui o consumo mais ainda. Mas o efeito mais nocivo, especialmente na situação atual, é que a deflação aumente as dívidas automaticamente, já que o valor do dinheiro sobe.
Os juros nos EUA já foram rebaixados para 1% e no Japão para 0,3%. Não há muito mais o que o banco central possa fazer, já que os juros não podem cair abaixo de zero, isso significaria os bancos pagarem para os clientes pegarem dinheiro emprestado!*
Em algum momento os governos podem ser tentados a buscar uma saída inflacionária. Isso é mais provável nos EUA. Na Europa, a classe dominante teme mais a inflação, ainda traumatizada pelas experiências de hiperinflação.
A inflação tem a vantagem de permitir juros negativos (abaixo da inflação), o que ajuda diminuir o peso das dívidas. Com a perda do valor da moeda, a dívida também perde valor. Nos EUA, o juro do Banco Central já é negativo (1% de juros, mas a inflação está em 5%), mas a maioria paga juros mais altos do que isso.
O ex-presidente do Fed, Alan Greenspan, fala sobre essa possibilidade numa entrevista com a Folha de São Paulo (13/10). Ele também está na linha que a saída da crise é comprar ações nos bancos. Segue um trecho do artigo:
“Outra pergunta: de onde virá tanto dinheiro? Para Greenspan, enquanto ‘houver confiança na moeda de papel, basta o Fed emitir’. Haverá inflação, mas esse é um ‘bom problema para lá na frente’, até porque ‘uma coisa que o Fed sabe fazer é combater a inflação’. Os juros poderão, numa segunda fase da crise, suber para ‘5%, 10%’, ou mais, deu entender o ex-chefe do BC dos EUA.”
Essa também é uma receita para deixar os trabalhadores pagarem a crise, minando o poder de compra dos salários. Além disso, os trabalhadores vão pagar com desemprego pela diminuição de investimentos que segue juros altos, enquanto os especuladores vão sair ganhando de novo.
Além disso, um problema é se o dólar vai manter uma “confiança na moeda de papel”, devido aos grandes déficits e dívidas dos EUA. O risco é que isso leve a uma queda incontrolada do dólar, ou até em hiperinflação. Por isso, qualquer tentativa de imprimir notas durante um período de crise como essa, pode rapidamente levar a uma crise inflacionária. A linha entre inflação e deflação é bastante tênue nessa situação.
Uma correção abrupta dos desequilíbrios da economia mundial teria resultados catastróficos a ia significar uma depressão mundial. Por outro lado, sem essa correção, o risco é da economia mundial ter um longo período de crescimento fraco, com surtos levando a novas bolhas, desequilíbrios e crises.
Não há saída ordenada dentro dos marcos do sistema capitalista. Os interesses antagônicos dos diferentes países e grandes grupos econômicos, junto com o funcionamento anarquista do mercado, torna isso impossível.
Os capitalistas no mundo tiveram uma chance histórica de provar que o seu sistema funciona. Desde a queda do stalinismo e o enfraquecimento da classe trabalhadora, tiveram duas décadas onde puderam implementar seu programa com pouca resistência. O resultado foi catastrófico. Os que argumentam que o keynesianismo seria a solução devem lembrar que essa foi a política dominante durante o período pós-guerra, que foi o período de maior crescimento da história da humanidade. Mas esse teste também falhou.
Na verdade, a crise não é de um regime político ou teoria econômica, mas sim do sistema como um todo.
* Juros negativos foram de fato introduzidos em vários países, o que só reforça quão profunda foi a crise.