Nagorno-Karabakh: Azerbaijão e Armênia caminham para uma guerra aberta
A nova explosão de conflitos militares em torno de Nagorno-Karabakh não é acidental, mas um resultado das crises globais que atualmente afetam o mundo, dos crescentes conflitos entre as potências imperialistas, da escalada da crise econômica global e da incapacidade da elite burguesa de resolver quaisquer problemas.
A guerra eclodiu mais uma vez no território da ex-União Soviética. Uma longa disputa não resolvida sobre o enclave armênio de Nagorno-Karabakh entre as repúblicas caucasianas da Armênia e do Azerbaijão se transformou em um conflito, no qual Rússia e Turquia estão apoiando lados diferentes. Tudo isso está ocorrendo com o fedor de petróleo no ar.
Nos últimos dias, Nagorno-Karabakh e sua capital Stepanakert, bem como partes do Azerbaijão e da própria Armênia, sofreram fortes combates com o uso generalizado de artilharia. Tanques foram destruídos e aeronaves foram abatidas enquanto reclamações e relatórios de cada lado indicam que o número de soldados mortos agora chega às centenas de civis, incluindo crianças.
Um estado de conflito militar foi declarada no próprio Nagorno-Karabakh e em várias regiões do Azerbaijão, enquanto uma mobilização geral e uma lei marcial foram declaradas na Armênia. O Irã reclama que alguns projéteis de artilharia têm caído em seu território, enquanto a Armênia alega que uma de suas aeronaves foi abatida por um caça turco.
Conflito enraizado no imperialismo do século XIX
Muitos comentaristas explicam o conflito como devido a um ódio profundo entre os armênios cristãos e os azeris turcos. É verdade, evidentemente, que a região caucasiana é um quebra-cabeças de nacionalidades e religiões. Desde o colapso da União Soviética, ela tem sido o cenário de muitos conflitos, incluindo duas terríveis guerras chechenas, a guerra civil na Geórgia, a guerra russo-georgiana de 2008 e a guerra de 1991-94 sobre Nagorno-Karabakh, que custou pelo menos 20 mil vidas e desde então permaneceu sem solução.
Muitos destes conflitos têm uma história nas divisões semeadas no período anterior à Revolução Russa, quando a região era o foco de um intenso conflito entre as potências imperialistas, incluindo a Grã-Bretanha, a Rússia e a Turquia. Este período deixou marcas profundas em toda a região, particularmente o massacre dos armênios pelo regime turco no período iniciado em 1915, que deixou 1,5 milhões de mortos, só recentemente reconhecido como genocídio por governos como os EUA, que não queriam perturbar suas relações com a Turquia.
A Revolução Russa ofereceu a esperança de um futuro melhor. Inicialmente, a esmagadora maioria da população armênia de Nagorno-Karabakh escolheu permanecer como parte da Armênia, o que os bolcheviques concordaram, este plano foi perturbado pela burocracia stalinista que, a fim de apaziguar a Turquia e facilitar a administração da região, transferiu Nagorno-Karabakh para o controle do Azerbaijão. Como muitas outras partes do Cáucaso, Nagorno-Karabakh sofreu com as políticas criminosas do stalinismo, estas incluíram a coletivização forçada e a deportação da etnia curda da Armênia para apaziguar a Turquia na década de 1930. Mais de 100 mil azeris foram expulsos de Erevãapós em 1945 por medo de se tornarem uma “quinta coluna” se a Turquia escolhesse invadir. No geral, no entanto, após a guerra, a região se desenvolveu economicamente graças às vantagens da economia planejada.
A perestroika de Gorbachev deflagrou conflitos nacionais
No entanto, quando a União Soviética começou a se fragmentar no final dos anos 80, surgiram manifestações na capital da Armênia. Sobre questões ambientais, contra vazamentos da fábrica química local e a presença de uma usina nuclear em uma zona de atividade sísmica, elas foram inicialmente ignoradas por Gorbachev. Mas quando ele enviou tropas, provocou oposição em massa e greves, que depois se transformaram na demanda pelo retorno de Nagorno-Karabakh à Armênia. Como disse um estudante na época: “A questão nacional não é o motivo dos protestos, mas a desculpa: somos contra toda a opressão”.
À medida que o movimento se espalhou para Stepanakert, as autoridades comunistas locais, parte da liderança do partido do Azerbaijão, organizou ataques contra a população armênia. Isso levou à eclosão de um conflito étnico brutal que causou dezenas de mortes e depois uma guerra entre os dois novos países. Mais de meio milhão de azeris foram forçados a abandonar o próprio Nagorno-Karabakh e algumas áreas ao seu redor. Apesar de um cessar-fogo em 1994, o conflito não foi resolvido e por um curto período em 2016 explodiu novamente, resultando em fatalidades.
A nova explosão do conflito militar não é acidental, mas um resultado das crises globais que atualmente afetam o mundo, dos crescentes conflitos entre as potências imperialistas, da escalada da crise econômica global e da incapacidade da elite burguesa de resolver as injustiças históricas de uma forma aceitável para todas as partes.
A crise do coronavírus no Cáucaso
Com uma população conjunta de apenas 13 milhões de habitantes, os dois países registraram cerca de 100 mil casos de coronavírus. Naturalmente, isto coloca muita pressão sobre os dois governos.
Na Armênia, como consequência do lockdown, o Banco Central acredita que o PIB terá caído 6% até o final deste ano, ainda que o governo tenha anunciado um programa de estímulo baseado em cem projetos de construção. O banco não espera que a economia se recupere até 2023.
Nikol Pashinyan, primeiro-ministro da Armênia, apresenta-se como um pragmático que chegou ao poder como resultado da Revolução de Veludo dois anos atrás. Seu partido disputou as eleições anteriores em uma plataforma pró-europeia, mas desde que chegou ao poder, ele tem seguido uma linha amigável com a Rússia. Ele não tem problemas com as bases militares russas na Armênia, o que, diz ele, ajuda a proteger a fronteira turco-armênia.
O Azerbaijão é, ao contrário, um país rico em petróleo e abertamente autoritário. Em linha com a queda no preço global do petróleo, o preço do petróleo azeri caiu para um terço de seu valor anterior durante a pandemia. Espera-se que o país veja uma queda de 4% no PIB este ano, apesar de o governo gastar 3% de seu PIB em um pacote de estímulos. Uma queda semelhante nos preços do petróleo foi um precursor do curto conflito com a Armênia em 2016.
Até recentemente, o governo Aliyev argumentou que gostaria de melhorar o nível de vida, mas enquanto houvesse a necessidade de defender o país da Armênia, não haveria recursos disponíveis. Ele mantém seu poder, em parte, ao criar um estado de medo sobre a possibilidade de uma nova guerra.
O combate de julho
As tensões entre os dois governos se espalharam no mês de julho, quando os combates eclodiram na fronteira entre os dois países. Usando artilharia e drones, cerca de vinte pessoas perderam suas vidas, incluindo oficiais militares de alto escalão de ambos os lados. De acordo com a PGI, uma consultoria de Segurança, ambos os lados neste conflito tinham como objetivo “principalmente distrair o público interno crítico da gestão da crise do coronavírus (COVID-19) por parte de cada governo, em vez de provocar uma escalada militar”. Argumentou que este conflito, que ocorreu a 300 quilômetros de Nagorno-Karabakh, seria limitado, pois ambos os lados temiam que afetasse o fornecimento de energia. A área então afetada ficava a uma curta distância a pé dos principais oleodutos do Azerbaijão até a Turquia, enquanto o governo do Azerbaijão ameaçava que atacaria a usina nuclear da Armênia.
A elite dominante em ambos os países certamente usou a situação para desviar a atenção de suas próprias falhas, particularmente durante a pandemia. Na capital do Azerbaijão, Baku, manifestações grandes e vociferantes a favor da guerra foram encorajadas. A liberdade de expressão é particularmente restrita no Azerbaijão, onde as pessoas frequentemente têm medo de falar abertamente em suas próprias casas. No entanto, o regime não tem problema em permitir que sejam feitos apelos públicos “para que as terras ocupadas sejam libertadas” ou para “matar armênios”.
Baku esperava que quando Pashinyan chegasse ao poder em Erevã, a posição armênia se abrandasse comparado com o governo anterior, visto como próximo ao “partido Karabakh”. Pashinyan logo destruiu essa esperança quando começou a afirmar publicamente que “Karabakh é terra armênia” e que “a Armênia não tem terra para ceder”. As autoridades armênias também têm fomentando o sentimento nacional arrogante e agressivo.
Negociações de paz rejeitadas
O Nagorno-Karabakh, que é uma região montanhosa, pode parecer estar longe do centro da política global, mas agora é o cenário de uma guerra por procuração que se desenvolve entre as potências imperialistas. A Rússia há muito tempo trata a região como seu quintal. Ela tem tentado equilibrar a elite dominante dos dois países e tem vendido armas ativamente para ambos os lados, mais para o Azerbaijão, pois tem mais dinheiro do petróleo para pagar. Tem proposto a mediar negociações de paz entre os dois lados, mas nenhum dos dois ainda confia em seu vizinho do norte. O Azerbaijão, porque a Armênia tem um pacto de defesa mútua com a Rússia, bem como com as grandes bases militares russas. Pashinyan, por sua vez, rejeitou prontamente a proposta da Rússia, argumentando que as negociações são impossíveis quando há uma luta tão intensa.
A motivação da Rússia para intermediar um acordo de paz é, em parte, porque não pode arcar com outro conflito militar aberto no Causasus, quando já está enfrentando uma nova crise econômica dramática, uma segunda onda de Coronavírus e problemas em Belarus e em suas próprias regiões orientais. Mas também teme a crescente influência da Turquia na região. Se a Turquia forjar uma aliança mais forte com o Azerbaijão, e a Rússia perder sua influência em Belarus, a Rússia não terá, de fato, nenhum país “amigável” ao longo de sua fronteira oeste/sudeste, desde a Lituânia, passando por Belarus e Ucrânia até a Geórgia e Azerbaijão.
A Turquia certamente tem aumentado as apostas desde o conflito de julho. Ela tem tido uma relação de “vai e vem” com a Rússia desde o colapso da União Soviética, provavelmente atingindo um ponto baixo em 2015, quando os caças turcos derrubaram uma aeronave russa perto da fronteira turco-síria. Isto levou a um período de sanções da Rússia contra a Turquia, mas esforços diplomáticos intensos levaram, desde então, a uma melhoria significativa nas relações.
Turquia e Rússia: relações instáveis
Entretanto, enquanto os dois países mantêm uma cara amigável ao lidar um com o outro e estão preparados para apoiar um ao outro contra os EUA, em muitos outros aspectos seus interesses estão em conflito direto. No Oriente Médio, eles se encontraram em lados opostos do conflito na Síria. A Rússia apoiou o governo Assad, enquanto a Turquia apoiou a oposição, na Líbia a situação é inversa. Em parte isto explica porque a Armênia está reclamando amargamente que a Turquia está recrutando mercenários da Síria para lutar no Azerbaijão, enquanto Baku responde alegando que Erevã está usando combatentes do PKK.
A Turquia está enfrentando problemas econômicos crescentes, agravados pelo Coronavírus. A resposta de Erdogan é intensificar a repressão e lançar uma campanha “patriótica” sugerindo que a Turquia está fortalecendo sua influência no exterior.
O Azerbaijão, com sua população predominantemente muçulmana e língua turca é visto como um aliado natural, de fato algumas figuras do governo turco falam de “um povo, dois estados”. Mas há razões mais profundas.
O fornecimento de petróleo à Turquia sob ameaça
Em julho, as autoridades turcas ficaram preocupadas com os combates nas regiões de Tovuz do Azerbaijão e de Tavush da Armênia, que se aproximaram desesperadamente dos principais corredores de transporte e energia. O oleoduto Baku-Tbilisi – Ceyhan e o gasoduto Sul do Cáucaso não só abastecem a Turquia com 20% de seu abastecimento de gás, mas são uma fonte alternativa que reduz a dependência do país em relação à energia russa. O interesse estratégico da Turquia é fortalecer sua posição no Azerbaijão, para que ela possa negociar com Moscou a partir de uma posição mais forte. A urgência aumentou provavelmente nesta questão, dadas as tentativas do Kremlin de “mediar” o conflito no Mediterrâneo Oriental com a marinha russa conduzindo exercícios com fogo real nas proximidades de navios de pesquisa sísmica turcos.
O Irã tem uma fronteira comum com ambos os países e minorias nacionais significativas. Normalmente ao lado da Armênia, ele quer, acima de tudo, manter a estabilidade na região por medo de perturbações que se espalhem pelo próprio Irã. Sob o governo Trump, conforme expresso por John Bolton em 2018, os EUA têm pressionado a Armênia a abrir sua fronteira com o Azerbaijão e a Turquia e fechar a fronteira com o Irã. Dado o medo histórico da Armênia em relação à Turquia, isto sem dúvida aumentou o sentimento de insegurança da Armênia.
Paradoxalmente um dos mais fortes aliados do Azerbaijão é Israel, que se apoia nele como um contrapeso ao Irã, à Turquia e à Rússia, mas o mais importante é manter fortes laços comerciais. 40% do petróleo de Israel vem do Azerbaijão e este, em troca, faz importantes compras de armas.
Grande petróleo
Os outros grandes atores são, é claro, os EUA e a União Europeia, que têm ambos grandes interesses na região. A maior parte do petróleo e do gás do Azerbaijão é produzida pela BP, de propriedade dos EUA e do Reino Unido, enquanto os EUA apoiam o gasoduto do Sul do Cáucaso. Dentro de algumas semanas, a União Europeia deve começar a importar gás do país como parte de sua política de diversificação, para diminuir sua dependência dos suprimentos russos. Este gás fluirá através do porto mediterrâneo oriental da Turquia, Ceyhan. Embora os recentes combates tenham sido próximos aos gasodutos, isto ainda não afetou os preços mundiais do petróleo, pois a demanda caiu significativamente devido ao colapso econômico global.
Os conflitos étnicos que assolaram o Cáucaso durante e após o colapso da União Soviética foram um reflexo de diferenças profundas, mas seguiram um período em que as diferentes nacionalidades, religiões e grupos étnicos puderam viver em relativa harmonia.
Mas à medida que o capitalismo começou a ser restaurado na região, o gatilho para a renovação dos conflitos foi muitas vezes encontrado na luta entre os diferentes setores da elite dominante pelo controle da riqueza e dos recursos naturais. Hoje em dia não é diferente. Seja em Baku autoritário ou no Erevã democrático liberal, as elites governantes estão defendendo seu poder e seus privilégios através da criação de sentimentos militaristas e tensões étnicas, um conflito complicado pela intervenção dos regimes autoritários da Turquia e da Rússia e a ganância das empresas ocidentais de petróleo e gás.
Quem pode parar a guerra
A guerra tem que ser detida, isso só pode ser feito, não confiando na intervenção de “mediadores” imperialistas, que durante trinta anos não conseguiram resolver o conflito, mas na mobilização ativa dos trabalhadores e da juventude de ambos os países em um poderoso movimento anti-guerra com manifestações e greves e na solidariedade ativa de movimentos similares na Rússia, na Turquia e em outros lugares. As potências estrangeiras não deveriam ter o direito de intervir na região.
Porém, para acabar com a guerra, as causas da guerra precisam ser removidas. Não deve haver mais brigas da elite dominante sobre como roubar a riqueza e os recursos naturais da região. Esses, incluindo os campos de petróleo e gás e os oleodutos, devem ser tornados em propriedade pública com uma economia democraticamente planificada e utilizada para o benefício de todos os povos da região.
Os governos da região, sejam “autoritários” ou “democráticos”, não representam os interesses das pessoas comuns. São necessários partidos de massa da classe trabalhadora, mulheres, jovens e outras camadas oprimidas para tomar o poder político em suas próprias mãos.
A divisão dos trabalhadores e da juventude em linhas nacionais ou étnicas tem que acabar. Sindicatos independentes, partidos de trabalhadores ou comitês de defesa para resistir à guerra devem ser organizados com base no princípio da “unidade dos trabalhadores”, atravessando as tentativas da elite dominante de nos dividir. Isto permitiria uma autodeterminação genuína – o direito dos povos de decidir como vivem sem conflitos étnicos ou limpezas.
Tudo isso leva à conclusão de que o Cáucaso deveria ser libertado da exploração, repressão e conflito, pondo fim ao capitalismo e substituindo-o por uma sociedade socialista genuinamente democrática em uma federação voluntária de estados socialistas.