Che Guevara: Símbolo de luta

Na Bolívia

Durante este segundo giro o Che redigiu outro diário que intitulou Otra Vez (Este diário, que cobre três anos da vida do Che, nunca fora publicado na sua totalidade. Foi transcrito por sua viúva, Aleida March, depois da morte de Che. Esteve à disposição do escritor Jon Lee Anderson que o utilizou amplamente para sua famosa biografia, Che Guevara- Uma Vida Revolucionária, publicada em 1997. Como reflexo do começo desta viagem escreveu: “Desta vez, o nome do companheiro mudou; agora Alberto se chama Calica, mas a viagem é a mesma: duas vontades dispersas que se estendem pela América sem saber precisamente o que buscam ou onde está o norte”.

Che e seu companheiro chegaram a La Paz, a capital boliviana, em julho de 1953. Imediatamente se viram envolvidos nas convulsões revolucionárias que sacudiam um dos mais pobres e “indígenas” países americanos. Doze meses antes havia estalado uma revolta de massas de camponeses e mineiros do estanho predominantemente indígenas. Este levante de massas levou ao poder o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), radical.

O novo regime, enquanto tentava manter sob controle o movimento de massas, se viu obrigado, ante as convulsões revolucionárias que se sucediam, a levar a cabo um amplo programa de reformas. Os camponeses, mediante uma série de ocupações de terra, arrancaram um programa avançado de reforma agrária. As minas de estanho, a principal fonte de ingressos na Bolívia naquela época, foram nacionalizadas. Os mineiros e os camponeses saíram em armas, setores do exército se puseram do lado dos trabalhadores e camponeses. Criou-se uma milícia e, durante um curto período de tempo, o exército foi formalmente dissolvido. Sem dúvida, a revolução não se completou com a criação de um novo regime de democracia operária e o movimento foi finalmente derrotado.

Durante estes acontecimentos revolucionários os mineiros de estanho jogaram um papel dirigente fundando uma nova central sindical independente, a Central Obrera Boliviana (COB). Refletindo o levante revolucionário que ocorrera, a COB inclusive referendou formalmente o Programa de Transição, escrito por Trotsky em 1938.

Em La Paz, o Che passou muito de seu tempo em cafés e bares conhecendo imigrantes políticos que haviam chegado de toda América. Durante o curso da revolução, a Bolívia se converteu numa Meca política, já que radicais e revolucionários de esquerda iam ali atraídos pelos turbulentos acontecimentos que haviam estalado.

“La Paz é a Xangai das Américas. Uma rica gama de aventureiros de todas as nacionalidades vegetam e pululam na cidade policromática e mestiça”, escrevia Che em seu Otra Vez. Ali se misturou com uma variedade de ativistas políticos e entabulou debates e discussões com eles. Entrou em Contato com parte da comunidade argentina que residia em La Paz. Entre aqueles que conheceu se encontrava um argentino no exílio chamado Nogues.

A influência dos poderosos acontecimentos que se davam na Bolívia ficou refletida nos comentários do Che sobre este dirigente da expatriada comunidade argentina. “Suas idéias políticas ficaram antiquadas no mundo há muito tempo, mas as mantém independentemente do furacão proletário que se tem desatado em nossa belicosa esfera”.

Mediante estes contatos sociais o Che levou uma dupla existência em La Paz, que se alternava entre observar os movimentos revolucionários e a elevada vida em que se viu introduzido através da comunidade argentina. Numa ocasião, o irmão de Nogue, depois de haver retornado da Europa, mostrou a Che e a Calica um convite que havia recebido para as bodas do magnata grego Aristóteles Onasis.

A chama da Revolução

Sem dúvida, foi o processo revolucionário que presenciou em La Paz que deixou a impressão mais profunda sobre Che. Ele escreveu a seu pai em julho queixando-se de que queria permanecer mais tempo na Bolívia porque ” … este é um país muito interessante que atravessa um momento de particular efervescência. Em dois de agosto se aprova a reforma agrária, e se esperam fracassos e lutas por todo o país. Temos visto procissões incríveis de gente armada com maúseres e “piripipis” (metralhadoras) que disparam apenas para se divertir. A cada dia se pode escutar disparos e há feridos e mortos por armas de fogo”.

Che, que queria ver por si mesmo os renomados mineiros bolivianos, visitou a mina de Balsa Negra nas imediações de La Paz. Antes da revolução, os guardas da companhia haviam aberto fogo de metralhadoras contra os mineiros em greve. Agora, a mina estava nacionalizada. O Che se encontrou com caminhões carregados de mineiros armados que regressavam da capital onde manifestaram seu apoio a favor da reforma agrária e a luta campesina. Com seus “pétreos rostos e os capacetes de plástico vermelho pareciam guerreiros provenientes de outros mundos”.

Apesar de presenciar a tremenda força dos mineiros bolivianos, o Che nunca chegou a absorver realmente o papel potencial da classe operária na revolução socialista, mesmo em países como a Bolívia, onde esta constituía uma minoria da população. Esta debilidade, combinada com outros fatores, teria um peso direto nas idéias que mais tarde desenvolveu.

Não obstante, neste período da evolução política do Che basta resenhar o impacto que tiveram os acontecimentos da Bolívia em sua visão política. Pela primeira vez em sua vida foi tocado diretamente pelo calor da chama revolucionária. Apesar da magnitude dos acontecimentos, ainda continuava sendo um observador mais que um participante ativo.

Depois de prolongar sua estada em La Paz quase um mês, Che e Calica se puseram em marcha. Passaram algum tempo no Peru e, em Lima, voltaram a ver o doutor Pesce e também a Gobo Nogues. Gobo assegurou que comeram em várias ocasiões no Country Club e no hotel mais caro de Lima, o Gran Hotel Bolívar.

Logo seguiram até o Equador onde forjaram novas amizades com um grupo de aventureiros. A intenção do Che teria sido viajar com Calica à Venezuela. Depois de várias excursões, Calica e o Che se separaram, o primeiro se dirigindo à Caracas e o último, com um novo companheiro, Gualo, à Guatemala. Como se encontravam sem dinheiro tiveram que trabalhar para pagar a passagem de barco. Antes de chegar à Guatemala passaram por Costa Rica, Panamá e Nicarágua, conhecendo e discutindo com pessoas e grupos no caminho.

Ao viajar ao norte, até a América Central, o Che se introduziu num mundo diferente do que existia no cone sul da América Latina. O imperialismo dominava os países do sul, em conjunção com uma classe capitalista nacional debilitada. Existia uma classe operária e uma população urbana relativamente forte nas cidades e as sociedades tendiam a estar mais desenvolvidas.Este era inclusive o caso dos países mais pobres de então, como Bolívia e Peru.

Numa série de países da América Central o imperialismo norte-americano impôs arrogantemente tiranos locais como chefes de estado ditatoriais que permitiram que companhias tão odiadas e desprezadas como a Coca Cola ou a United Fruit saqueassem as economias. Como o Che chegou a comentar, “… os países não eram autênticas nações, mas estâncias privadas”.

Isto acontecia apenas cinqüenta anos depois do imperialismo norte-americano ter criado o Panamá, governando-a como um estado cliente para manter o controle do canal que havia construído com motivos comerciais e interesses estratégicos. A Nicarágua havia sido governada durante 30 anos pela ditadura corrupta de Somoza. El Salvador foi governado por uma sucessão de ditaduras que pretendiam defender os interesses dos proprietários das plantações de café, e Honduras estava virtualmente governada como um armazém da United Fruit Company.

A United Fruit Company simbolizava a exploração do continente pelo imperialismo. O poeta preferido de Che, Pablo Neruda, escreveu um poema irônico, La United Fruit Co., que refletia os sentimentos da América Latina sobre sua dominação imperialista:

Quando soou a trombeta, estava tudo preparado n’A Terra, e Jeová repartiu o mundo entre Coca Cola Inc., Anaconda, Ford Motors, e outras entidades: A companhia frutera Inc., reservou para si o mais suculento, a costa central de minha terra, a doce cintura de América …

O poema de Neruda continua denunciando a companhia por criar o “Reino Tirânico das Moscas”, os ditadores da América Central: Trujillo, Tachos, Ubico, Martínez, Garias, “o domínio sangrento das moscas”.

Até a Guatemala

Se os acontecimentos da Bolívia haviam abalado o Che, os da Guatemala, onde se comprometeu ativamente pela primeira vez, haveriam de mudar o rumo de sua vida. Chegou à cidade da Guatemala às vésperas do Natal, identificando-se abertamente com uma causa política e com certa idéia de com o que agora pretendia comprometer sua vida.

Pouco antes de sua chegada havia escrito uma carta com data de 10 de dezembro em que perfilava seus pontos de vista políticos a sua tia Beatriz, com quem mantinha uma relação especialmente próxima. Estas idéias eram, sem dúvida, um reflexo do efeito que lhe haviam causado os acontecimentos da Bolívia. Pela primeira vez se identificou ideologicamente com as idéias socialistas:

“Minha vida tem sido um mar de resoluções encontradas até que tive o valor de abandonar minha bagagem e, com a mala ao ombro, sai com o companheiro García até o caminho sinuoso que nos trouxe até aqui. No caminho tive a oportunidade de atravessar os domínios da United Fruit, convencendo-me uma vez mais de quão terríveis são estes polvos capitalistas. Jurei ante um quadro do velho e querido Stalin que não descansarei até que veja estes polvos capitalistas aniquilados. Na Guatemala me aperfeiçoarei para ter o que necessito para ser um autêntico revolucionário”. Terminou a carta, “de teu sobrinho da constituição de ferro, o estômago vazio e a fé luminosa no futuro socialista. Tchau, Chango”.

Até 1953, o governo de tendência populista de esquerda da Guatemala, presidido pelo Coronel Jacobo Arbenz, estava pego num enfrentamento com o imperialismo norte-americano e a elite rica da Cidade da Guatemala. Arbenz seguia um programa reformista iniciado pelo governo predecessor que havia chegado ao poder durante os anos 40 depois de ter derrotado a impiedosa ditadura de Ubico.

O imperialismo norte-americano foi bastante tolerante com esta administração reformista. Mas em 1952 a administração de Arbenz ultrapassou os limites, promulgando um decreto de reforma agrária que abolia o sistema latifundiário e nacionalizava as propriedades da odiada United Fruit Company.

Esta medida provocou a ira da elite criolla branca guatemalteca, mas teve o apoio massivo dos camponeses rurais pobres, de ascendência fundamentalmente indígena e mestiça, e da classe operária urbana. A United Fruit Company e a administração Eisenhower estavam encolerizadas. Seria só questão de tempo antes que a CIA instigasse a derrubada do governo de Arbenz.

A experiência “socialista” da Guatemala havia atraído milhares de pessoas de toda a América Latina para ver de primeira mão este desafio ao imperialismo norte-americano. As mobilizações de massas se sucediam e se criavam numerosas milícias tanto pelo governo como por vários partidos políticos. A nível geral, estas milícias não estavam armadas. Sem dúvida, as forças reacionárias começaram a armar-se e se mobilizarem.

Entre os que se encontravam presentes durante o drama guatemalteco, fora Che Guevara, estavam muitos dos futuros dirigentes de organizações de esquerda latino-americanas, incluindo Rodolfo Romero, futuro dirigente da FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional) nicaragüense que derrubou a ditadura de Somoza em 1979.

Che conheceu numerosos ativistas políticos e entabulou discussões com eles. Assegurou um emprego como médico num hospital e lhe apresentaram Hilda Gadea, dirigente no exílio da ala juvenil do movimento peruano radical populista, APRA. Ela, por sua vez, lhe apresentou ativistas e dirigentes de vários grupos políticos e lhe ofereceu obras políticas para estudo, incluindo alguns escritos de Mao Tse Tung.

Foi durante estes acontecimentos quando o Che conheceu alguns exilados cubanos. O regime de Arbenz lhes havia oferecido asilo político e haviam participado numa tentativa de assalto em 26 de julho de 1953 contra os quartéis militares de Moncada em Cuba. Pela primeira vez o Che começou a descobrir a luta desenvolvida contra o regime cubano de Batista.

Frente Popular

A velocidade com que se desenvolveram os acontecimentos na Guatemala também ajudou na maduração das idéias de Che.Começou a criticar os partidos comunistas que haviam adotado uma política de ‘Frentes do Povo’ ou ‘Populares’.Isto os levou à alianças com setores da classe capitalista nacional. A direção dos partidos comunistas defendia erroneamente que uma aliança tática com este setor “progressista” da classe capitalista nacional era necessária na luta contra o imperialismo, para defender e ampliar a democracia parlamentar. Argumentavam que era necessário um período de ‘democracia capitalista e desenvolvimento econômico’ antes da classe operária poder lutar por e ter esperanças em obter o socialismo.

Esta política resultou em que os dirigentes do Partido Comunista puseram limites nas lutas da classe trabalhadora para impedir que desafiassem os interesses do capitalismo. O movimento operário se viu freqüentemente paralisado por esta estratégia que, freqüentemente, tinha como resultado a derrota sangrenta nas mãos da reação. Setores decisivos da classe capitalista estavam dispostos a abolir os direitos democráticos e a utilizar métodos repressivos de governo para defender seus próprios interesses de classe.

Che, ainda que não apresentou de forma clara uma alternativa a esta política, sentia que os partidos comunistas se estavam afastando das massas para conseguir apenas uma porção de poder num governo de coalizão. Ele argumentava erroneamente neste período que nenhum partido na América Latina poderia continuar sendo revolucionário se concorresse às eleições.

Ainda que começasse a articular seu pensamento, as idéias de Che não ficaram plenamente formuladas até mais tarde. Enquanto isso, os acontecimentos na Guatemala transbordaram a polêmica que ele acabava de entabular. Os EUA haviam tirado a conclusão de que o governo devia ser derrubado. O exemplo do movimento da Guatemala começava a se estender por todos os países centro-americanos. Em Honduras estalou uma greve geral. O ditador nicaragüense, Somoza, temia que sua própria população pudesse seguir o exemplo dos acontecimentos nos países vizinhos.

A CIA havia maquinado um plano para derrubar o governo guatemalteco. Uma figura decorativa chamada Castillo Armas foi cuidadosamente selecionada para substituir Arbenz como presidente. Uma força paramilitar foi infiltrada na Nicarágua e todos os amigos dos EUA dentro do exército guatemalteco se implicaram num complô contra o governo.

Arbenz se negou a tomar medidas contra aqueles que dentro do exército simpatizavam com os golpistas e tentou apaziguar o exército. Vários dias antes de seu governo ser derrubado em 1954 pelos conspiradores, fez um chamamento ao próprio exército para distribuir armas às milícias que haviam se formado. O comando militar se negou e o governo caiu. A maquina estatal capitalista existente havia ficado intacta e não se haviam criado comitês alternativos de trabalhadores e camponeses de onde se poderia fazer um chamado aos soldados rasos. Esta derrota e o fracasso de Arbenz em tomar medidas contra o aparato estatal capitalista haveriam de deixar uma impressão duradoura no Che, que não haveria de duvidar quando se desenrolou a revolução em Cuba.

Depois de buscar asilo político na embaixada argentina e se ocultar durante um tempo, Che finalmente se dirigiu ao México até setembro. Como ativista recente, seus movimentos não haviam passado desapercebidos. A CIA o fichou pela primeira vez e nos aos vindouros sua ficha haveria de converter-se numa das mais espessas jamais recopiladas por eles contra nenhum outro individuo.

Foi enquanto o Che estava no México quando conheceu pela primeira vez um dos dirigentes do Movimento 26 de Julho que lutava contra a ditadura de Batista em Cuba, Fidel Castro. Seu primeiro encontro foi durante 1955, depois do qual Che finalmente se uniu ao Movimento.

Depois de sua experiência na Bolívia e, em particular, de sua participação nos acontecimentos da Guatemala, Che entrou na fase seguinte de sua vida, já não mais como doutor em medicina e observador social. De agora em diante se converteu num ativo participante e finalmente num dirigente dos acontecimentos históricos.