Resenha: “Império” – Um novo Manifesto Comunista?

Império, por Michael Hardt e Antonio Negri, Editora Record, 2001.

 Existem poucos livros de teoria política que receberam uma publicidade tão grande quanto Império, por Michael Hardt e Antonio Negri (Hardt & Negri). Ele foi descrito como “neo-marxista” ou mesmo como o “novo Manifesto Comunista”.

Ed Vuilliamy escreveu no The Observer (15 de julho de 2001): “Um livro improvável escrito por um acadêmico de esquerda e um prisioneiro italiano está fascinando a América”. “O livro reabilita a palavra ‘comunismo’”.

Este livro de 500 páginas, porém, não é um Manifesto Comunista para o século 21 e nem um belo trabalho que analisa seriamente o capitalismo global e suas contradições. Os autores prometem muito mais do que realmente oferecem e, enquanto algumas vezes clamam seguir os passos de Karl Marx, eles terminam por perder o contato com a realidade.

Um Império sem um centro?

O ponto de partida é que “O império está se materializando diante de nossos olhos. Nas últimas décadas, a começar pelo período em que regimes coloniais eram derrubados, e depois em ritmo mais veloz quando as barreiras soviéticas ao mercado do capitalismo mundial finalmente caíram, vimos testemunhando uma globalização irresistível e irreversível de trocas econômicas e culturais” (Prefácio, p. 11) . Isto, por sua vez, significa que “a soberania tomou nova forma, composta de uma série de organismos nacionais e supranacionais, unidos por uma lógica ou regra única. Esta nova forma global de economia é o que chamamos de Império” (Prefácio, p. 12). Duas páginas depois eles concluem que “o imperialismo acabou” (Prefácio, p. 14). e que nenhum Estado-nação, nem mesmo os Estados Unidos, “ocupará a posição de liderança mundial que as avançadas nações européias um dia ocuparam (Prefácio, p. 14). Um comentário notável dado que os EUA são a única superpotência restante e sua posição com relação aos seus dois principais rivais capitalistas (os estados da União Européia e o Japão) fortaleceu-se no curso dos últimos dez anos. De fato, nunca na história uma força ocupou tal posição dominante nos âmbitos militar, diplomático e econômico. O imperialismo dos EUA controla aproximadamente um terço da produção mundial, enquanto no fim dos anos 80 controlava 22%.

A dominação do imperialismo dos EUA em termos militares é ainda mais chocante. Os EUA não possuem nenhum rival real em equipamento militar de alta tecnologia. Nas palavras recentes de um comentarista: “Alguns anos atrás os EUA eram responsáveis por aproximadamente 36% de todo o gasto mundial com defesa; sua porção agora provavelmente está próxima de 40%, se não mais… Nada assim já existiu com tal disparidade de poder: nada. Eu revisei todas as estatísticas comparativas de gastos de defesa e de pessoal militar ao longo dos últimos 500 anos e nenhuma nação se aproxima disto. A Pax Britannica pareceu extremamente barata, o exército britânico era muito menor do que os exércitos europeus e mesmo a Marinha Real era igual às duas marinhas próximas – atualmente a combinação de todas as marinhas não abalaria a supremacia marítima norte-americana. O império de Charlemagne tinha seu alcance meramente na Europa ocidental. O Império Romano atingiu um campo maior, mas existia um outro grande império na Pérsia e um maior na China. Entretanto, não há comparação” (Paul Kennedy, London Financial Times, 2 de fevereiro de 2002).

O poder e a influência do imperialismo dos EUA são, de muitas maneiras, maiores do que os dos poderes coloniais europeus ao fim do século XIX, quando a dominação do imperialismo britânico foi minada pelo rápido desenvolvimento do capitalismo alemão e o surgimento do imperialismo dos EUA. Negar o papel dominante do imperialismo dos EUA hoje é negar a realidade.

Porém, de acordo com os autores de Império: “Nossa hipótese básica, entretanto, de que uma nova forma imperial de supremacia surgiu, contradiz ambas as teorias [que descrevem os EUA como a única superpotência que “simplesmente vestiu o manto do poder global deixado cair pelos países europeus” (Prefácio, p.13)]. Os Estados Unidos não são, e nenhum outro Estado-nação poderia ser, o centro de um novo projeto imperialista. O imperialismo acabou. Nenhum país ocupará a posição de liderança mundial que as avançadas nações européias um dia ocuparam. De fato, os Estados Unidos ocupam posição privilegiada no Império, e esse privilégio decorre não de semelhanças com antigas potências imperialistas européias mas de diferenças em relação a elas. Essas diferenças podem ser reconhecidas mais claramente concentrando-se a atenção nos alicerces propriamente imperiais (não imperialistas) da constituição dos Estados Unidos. Entenda-se aqui por constituição tanto a constituição formal, o documento escrito com suas emendas e seu aparelho legal, como também a constituição material, ou seja, a formação e re-formação contínua da composição de forças sociais” (Prefácio p. 13-14, destaque dos autores). A implicação disto é que as respostas sobre qual estágio o capitalismo mundial entrou serão encontradas nas idéias imperiais por trás da constituição norte-americana e que os EUA não podem ser descritos como um Estado-nação. “Essa concepção imperial [a dos autores da constituição dos EUA] sobreviveu e amadureceu ao longo da história da constituição dos Estados Unidos, e surgiu agora em escala global, na sua forma plenamente desenvolvida” (Prefácio, p. 14). Mas em que momento da história uma nova ordem global foi formada por causa de certas idéias imperiais por trás de uma constituição? Esta noção é puramente abstrata e idealista. Mais tarde no livro, todavia, os autores tentam modificar sua posição quando afirmam que os EUA são a única superpotência restante “que detêm a hegemonia sobre o uso global da força – uma superpotência que pode agir sozinha mas prefere fazê-lo em colaboração com outros, debaixo do guarda-chuva das Nações Unidas” (p. 331). A última afirmação, porém, é um exagero, os EUA desejam estar no comando e a chamada colaboração é dentro das condições dadas pelo imperialismo dos EUA. Após a guerra da OTAN contra a Iugoslávia de Milosevic em 1999, quando outros países no quartel-general da OTAN tiveram influência na conduta de guerra o Pentágono concluiu: “Nós nunca deveremos fazer isto novamente”. Deste então, os EUA agem “como se uma notícia dada pelo Pentágono fosse uma encíclica papal… O machismo atual de Donald Rumsfeld, o Secretário de Defesa norte-americano, afirma que os EUA devem sempre definir seus próprios interesses e agir por eles, sem se restringir por coalizões ou alianças” (The Times, 12 de junho de 2002).

A guerra contra o Afeganistão reforçou esta falsa idéia de que os EUA podem sozinhos ditar os eventos mundiais e de que “ou você está conosco ou está contra nós”. “Os EUA estão em momento egocêntrico”, destacou a revista alemã Der Speigel, após o discurso à nação do presidente George W. Bush em janeiro de 2002.
EUA: superpotência militar e econômica

Na base de seu preeminente poder militar e econômico, os EUA podem intervir decisivamente em certas situações, tal como foi na Guerra do Golfo em 1990-91 e no Afeganistão. Entretanto, mesmo os EUA não são fortes o suficiente para manter uma estabilidade internacional ou garantir o desenvolvimento sustentável da economia capitalista mundial. Eis o porquê de não existir muita ordem na “nova ordem mundial” proclamada por George Bush pai em 1991.

O imperialismo dos EUA exibe hoje a arrogância do poder. Ele retorna ao velho ditado “O que é bom para os EUA é bom para o resto do mundo”. Esta política, é claro, será minada pela iminente crise do capitalismo global, revoltas de massas de pobres e da classe trabalhadora e a crescente discórdia dentro dos campos imperialistas.

Imperial ou imperialismo não é uma questão de terminologia ou meras distinções intelectuais. A questão não é chamar ou não os EUA de “império americano”. Porém, diferentemente do Império Britânico, o qual dominou a cena mundial no fim do século XIX, o imperialismo dos EUA não possui qualquer colônia. O imperialismo dos EUA prefere exercer poder e influência por meio de marionetes locais. Este é um traço do imperialismo desde 1945, quando o comando colonial direto foi substituído pelo neo-colonialismo. Todavia, usando termos populares, teria certo sentido descrever a posição e as ações do imperialismo dos EUA hoje, em sua natureza, como “um império americano”.

Mas isto é algo diferente do que os autores de Império têm em mente. Se nós aceitarmos as conclusões tiradas pelo livro, então o mundo terá alcançado um estágio onde rivalidades, antagonismo e competição entre diferentes nações ou blocos capitalistas deixaram de existir e, como conseqüência, os conflitos, mesmo os armados, entre nações estão superados. Não que um reino de paz tenha surgido. De fato, o Império, de acordo com Hardt & Negri, é um estado de crise quase permanente, porém “entramos na era dos conflitos menores e internos. Toda guerra imperial é uma guerra civil, uma ação policial (…) Hoje é cada vez mais difícil para os ideólogos dos Estados Unidos citar um único e unificado inimigo; ao contrário, parece haver inimigos menores e esquivos em toda parte. O fim da crise da modernidade deu origem a uma proliferação de crises menores e indefinidas, o, como preferimos, a uma onicrise” (p. 209). Há certa verdade nesta afirmação.

Desde o 11 de setembro (11S), o imperialismo dos EUA usou termos tais como “guerra prolongada contra o terrorismo” e “estados criminosos” para promover seus interesses internacionais. Da mesma maneira como usou a linguagem tal como “luta contra o comunismo” (o “império do mal”) que serviu para o propósito de promover os interesses imperialistas dos EUA durante a “Guerra Fria”.

A campanha de “proteger a terra natal” lançada recentemente pelo presidente Bush, demonstra como a presente administração tenta unificar a nação contra uma ameaça ou um inimigo específico. Isto não funcionará por um período muito prolongado. O início do século XXI não é como o período entre 1945 e 1990, quando o mundo estava dividido entre dois blocos antagonistas – imperialismo e stalinismo.

“Guerra contra o Terrorismo”

A “Guerra contra o terrorismo”, foi usada para reafirmar o poder do imperialismo dos EUA, para superar a síndrome do Vietnã e para implementar novas leis repressivas. A popularidade de Bush logo começará a reverter quando a doença do capitalismo dos EUA e suas instituições políticas corruptas ficarem sob fogo cerrado e quando a arrogância e sede por poder do imperialismo dos EUA tem o efeito oposto.

Entretanto, nos dias atuais, quando a administração dos EUA está sob pressão, fala-se sobre um iminente ataque terrorista. Além disso, a “guerra contra o terrorismo” é usada como meio de expandir a influência dos EUA, estabelecendo novas bases militares e abrindo novas áreas de investimentos na antiga URSS e também, por exemplo, na América Latina. “O jogo que os americanos estão jogando [na região próxima do Mar Cáspio] é uma das maiores apostas que está acontecendo. O que eles estão tentando nada mais é do que o maior lance por uma nova esfera de influência desde que os EUA engajaram-se no Oriente Médio 50 anos atrás. O resultado pode ser o comprometimento de décadas em que os EUA estarão expostos à ameaça de incontáveis guerras e perigos” comentou o Business Week de 27 de maio de 2002. Esta expansão inevitavelmente desafiará outros poderes na região. Este é o imperialismo clássico e os EUA nem mesmo se importam em fantasiar suas políticas e ações fingindo que estão agindo a favor da “comunidade internacional” ou alguma outra causa similar.

Tensões entre o Paquistão e a Índia pela Caxemira, o potencial de uma nova guerra no Oriente Médio e o enorme número de conflitos na África ilustram como as ações do capitalismo e do imperialismo abrem caminho para um círculo vicioso de guerras, terror e guerras civis. Estes conflitos não podem ser simplesmente descritos meramente como de “menor importância” ou localizados. Infelizmente, o livro repete outro mito pós-modernista de que “velhas guerras” travadas entre nações estão superadas.

Sentimentos anti-imperialistas e crescentes tensões dentro do bloco imperialista estão ascendendo na medida em que o imperialismo dos EUA tenta expandir seu poder, influência e dominação ao custo de outros. Isto, por sua vez, torna impossível qualquer tipo de estabilidade ou equilíbrio restante na nova ordem mundial. De fato, é o oposto do que Império diz.

Império não leva em conta que após o colapso do stalinismo, que servia como a cola que segurava os países imperialistas juntos, não existe mais tal laço. A época presente é, entretanto, caracterizada por crescentes rivalidades dentro dos campos imperialistas, o que incluirá o ressurgir do nacionalismo, populismo de direita e protecionismo, na medida em que as diferentes classes capitalistas agem para defender seus interesses.

Os autores, seguindo a errada suposição de que o Estado-nação está morto, não possuem nada além do que o desprezo pela luta para alcançar a libertação democrática nacional. Parece não existir diferença entre o nacionalismo dos oprimidos e o dos opressores. Sintomaticamente, o capítulo que trata da luta democrática nacional é chamado “A Dádiva Envenenada da Libertação Nacional” (p. 149). A luta dos palestinos, dos curdos ou da Caxemira, tal como Império considera, está morta. Os autores de Império não reconhecem que a luta das massas para eliminar a opressão do imperialismo, por genuína libertação nacional, poderia ser uma ponte rumo à revolução socialista; que a luta contra o imperialismo no mundo neocolonial irá parcialmente expressar-se na luta pela verdadeira independência. A luta pela libertação nacional é uma característica importante da luta global contra o capitalismo e o imperialismo e deve ser apoiada por socialistas e anti-capitalistas.

Companhias transnacionais “sem lar”?

Os autores também aceitam o velho mito pós-moderno que afirma que nós vivemos em um mundo sem fronteiras comandado por companhias multinacionais “sem lar”. Se o imperialismo está morto, então uma forma inteiramente nova de capitalismo precisa ter substituído o capitalismo monopolista.

É verdade que o setor de serviços emprega mais pessoas que a indústria e que sua cota na economia cresceu ao longo dos anos. Mas o fato do número de trabalhadores industriais ter diminuído não expressa toda a história. Devido a um crescimento na produtividade as indústrias dos EUA agora produzem o dobro com o mesmo número de trabalhadores que existia em 1973. A produção industrial ou manufaturada ainda ocupa um papel chave em qualquer economia moderna e cada emprego na manufatura gera entre quatro e cinco empregos no setor de serviços. Foi estimado que quase 45.000 empregos estariam em risco se a enorme fábrica de veículos Rover de Longbridge em Birmingham (Inglaterra) fechasse em 2000. “O número entre 4.000 e 5.000 empregos que se espera perder em Longbridge atingiria outro número entre 15.000 e 20.000 em companhias de fornecimento. Espera-se que desapareçam outros 5.000 empregos desde negócios locais até lojas e bancas de revistas – para não mencionar cabeleireiros. Até 15.000 empregos dentre os vendedores da Rover estão ameaçados” (The London Times, 5 de abril de 2000). Esta é apenas uma forma de descrever a importância da manufatura e as interações e interdependências dos serviços e da indústria. Nós estamos longe de uma sociedade sem-fio baseada em “trabalho imaterial”. Além de apontar a manufatura como já superada, os autores cometem um erro ainda pior ao negligenciar a classe trabalhadora, particularmente a classe trabalhadora industrial.

Depois de reduzir a classe trabalhadora, os autores, seguindo a moda, inventam uma nova força social chamada “operário social”, que luta por todo o povo – “democracia absoluta em ação” (p. 434). Isto nunca torna-se mais concreto do que aquilo, apesar das muitas promessas de que a multidão irá se revoltar e sua revolução será bem-sucedida porque “A militância atual [em contraste com a do passado?] é positiva, construtiva e inovadora” (p. 436). “Essa militância faz da resistência um contrapoder e da rebelião um projeto de amor” (p. 437).

O “operário social”

Império usa o mundo “imperial” para descrever uma nova forma de capitalismo – uma sociedade pós-industrial baseada principalmente em serviços. “A transição para uma economia informacional” (p. 310), tal como Hardt & Negri descrevem, onde o trabalho torna-se, crescentemente, “imaterial” e onde há um novo tipo de operário, “o operário social” ou “operários socializados”. Nos anos 70, Negri formulou a teoria de uma nova classe trabalhadora composta pelo “operário social”. Um comentarista, em simpatia com Negri, afirmou que a correta tradução deveria ser de “operários difusos”. De qualquer forma, esperava-se que o “operário social” tornaria-se a nova força revolucionária na sociedade, superando o papel da velha classe trabalhadora industrial. Esta, supostamente, estaria sob controle dos sindicatos e não seria mais capaz de estar na linha de frente da luta.

Negri argumentou no início dos anos 80 que uma geração sem memória é, por conseguinte, mais revolucionária. “… Os jovens de Zurique, os proletários napolitanos e os trabalhadores de Gdansk não necessitam de memória… Transições comunistas é ausência de memória (citado em Storming Heaven, por Steve Wright pp. 174-75). Mas que movimento que coloca para si mesmo a tarefa de transformar a sociedade poderia alcançar isto sem extrair as lições do passado e se basear em tradições e experiências anteriores (o conceito de memória)? “Aqueles que não conseguem lembrar o passado, estão condenados a repeti-lo”, tal como o filósofo, poeta e novelista nascido na Espanha, George Santayana, destacou.

Negri e outros ofereceram diferentes justificativas teóricas para apoiar a idéia de um “operário social”. Já foi dito que o estudo do livro “Grundrisse” de Karl Marx, levou Negri à idéia de “operário social” – todo trabalho torna-se produtivo, na medida em que o processo de socialização prossegue sob o capitalismo. Negri argumenta que a nova classe trabalhadora está, primeiramente, produzindo trabalho intelectual (Grundrisse nunca foi publicado por Marx, mas é uma série de anotações compiladas em um livro publicado no início dos anos 40).

O fato das mais diferentes seções dos trabalhadores, nos dias de hoje, estarem envolvidas na produção de mais-valia não significa que o trabalho tornou-se imaterial ou que, tal como escrevem Negri & Hardt, “põe em questão a velha noção (comum à economia clássica e à economia política marxista) segundo a qual a força de trabalho é concebida como ‘capital variável’, isto é, uma força ativada e tornada coerente apenas pelo capital, porque os poderes cooperativos da força de trabalho (particularmente da força de trabalho imaterial) dão ao trabalho a possibilidade de se valorizarem” (p. 315).

As conclusões políticas tiradas por Negri nos anos 70 – depois da classe trabalhadora italiana ter falhado em tomar o poder, apesar de anos de luta determinada que, até certo ponto, chegou a alcançar um nível maior do que o da França durante os atormentados eventos de 1968 – estavam erradas naquele período e até hoje não foram provadas. Suas idéias tornaram-se ainda mais confusas e contraditórias nas páginas de Império.

A força do que é chamado de multidão é, de fato, uma fraqueza do movimento. A multidão é descrita por não falar uma linguagem comum (a luta hoje é “incomunicável” de acordo com Hardt & Negri), as forças estarem dispersas, não agirem como força coletiva, carecerem de organização e um programa. Mesmo assim este agente é descrito como uma força poderosa que não pode ser barrada. Ao fim do livro, os autores repetem que a multidão ainda não está organizada como uma força política, porém: “A organização da multidão como sujeito político, como posse, começa portanto a aparecer na cena mundial. A multidão é auto-organização biopolítica” (p. 434). “O único evento que ainda estamos esperando é a construção, ou melhor a insurreição, de uma poderosa organização. A cadeia genética é formada e estabelecida em ontologia, o andaime é continuamente construído e renovado pela nova produtividade cooperativa, e dessa maneira esperamos apenas a maturação do desenvolvimento político da posse. Não dispomos de qualquer modelo a oferecer para esse evento. Só a multidão, pela experimentação prática, oferecerá os modelos e determinará quando e como o possível se torna real” (p. 435). Em certo momento as idéias consideradas tornam-se ridículas. Ao negar o fato de que os oprimidos expressaram seu poder por meio da ação coletiva e não “por meio da deserção e do êxodo”, eles passam a falar da emergente “nova horda nômade, uma nova raça de bárbaros, se erguerá para invadir e evacuar o Império” (p. 233)!

Visão estática e rígida de luta de classes

Os autores possuem uma visão muito estática e rígida na consideração do impacto da luta e seu ímpeto. A luta hoje é apresentada como “incomunicável”, mas a experiência dos protestos anti-capitalistas, junto com seu caráter global, é um exemplo mostrando o oposto. A globalização trabalha em dois caminhos. Por um lado, os mercados para o capital, mercadorias e serviços estão mais integrados do que nunca foram, mas, por outro lado, a globalização leva a uma tendência para uma sincronização muito maior de fluxos e refluxos econômicos, de crises sociais e políticas e da luta de classes. Enquanto este texto é escrito (19 de junho de 2002), funcionários que controlam o trânsito aéreo nos aeroportos de cinco países europeus estão em greve. Trabalhadores em luta estão procurando apoio e solidariedade de seus irmãos e irmãs, como nós vimos quando trabalhadores da Marks & Spencer francesa foram para Londres protestar contra o fechamento de empregos. A greve geral de trabalhadores italianos contra a “flexibilização do trabalho” em abril de 2002 teve um papel importante no encorajamento do chamado à greve geral dos sindicatos espanhóis em 20 de junho (no mesmo dia da abertura da reunião da União Européia em Sevilha).

Os autores não levam em conta que toda grande batalha enfrentada fornece experiência e muda a consciência e a perspectiva política dos trabalhadores e da juventude. São principalmente os grandes eventos que colocam as bases para o desenvolvimento de uma consciência classista e socialista. Mas o trabalho (campanhas, propaganda e agitação) de grupos e partidos socialistas também possuem um papel no processo rumo à superação dos efeitos políticos negativos do colapso do stalinismo e da traição dos velhos partidos de massas dos trabalhadores (os social-democratas, os socialistas ou os comunistas) e a direita move-se na cúpula do movimento sindical.

“Considerem-se as lutas mais radicais e poderosas dos últimos anos do século XX: os eventos da Praça Tiananmen, em 1989; a intifada contra a autoridade estatal de Israel; a revolta de maio de 1992 em Los Angeles; o levante em Chiapas, que começou em 1994; a série de greves que paralisou a França em dezembro de 1995, e a que imobilizou a Coréia do Sul em 1996 (…). Nenhum desses eventos inspirou um ciclo de lutas, porque os desejos e necessidades que expressavam não podiam ser traduzidos para contextos diferentes” (p. 73).

Aqui não há menção aos movimentos que derrubaram os regimes stalinistas e que estes movimentos desencadearam uma luta continental por democracia, particularmente na África. Além disso, todas as lutas mencionadas em Império tiveram repercussões políticas. Por exemplo, a greve geral na França em 1995 foi um fator crucial na cadeia de eventos que conduziram à derrota dos partidos tradicionais de direita nas eleições gerais de 1997 na França. Toda luta mencionada teve um impacto global e ainda possui no caso da luta dos palestinos. Império não leva em conta que todas as lutas desde o colapso do stalinismo e do fim da velha ordem mundial estabelecida após a II Guerra Mundial aparecem um terreno político totalmente novo.

Efeitos do colapso do stalinismo

O colapso do stalinismo teve um efeito profundo na consciência e na coesão política da classe trabalhadora, assim como toda uma geração de ativistas por todo o mundo ficaram confusos e desmoralizados. Alguns abandonaram o ativismo, outros trocaram de lado e viraram inimigos de classe. Este fato forneceu a base para a transformação final dos partidos social-democratas e um conjunto de antigos partidos comunistas em formações capitalistas. Movimentos guerrilheiros na América Central e na África acabaram chegaram a um beco sem saída ideológico e político e não viram outro caminho senão tentar fazer um acordo, nas bases do capitalismo, com a classe dominante.

Isto por sua vez abriu caminho para uma grande ofensiva pelas classes dominantes, as quais estavam prontas para implementar cortes draconianos nos serviços sociais e na cota dos trabalhadores no produto interno bruto. O lucro aumentou ao preço de salários e condições de vida, o que parcialmente explica a razão do “boom” nos anos 90 ter se prolongado.

Levará tempo e experiência nos eventos e nas lutas, antes da classe trabalhadora e dos oprimidos superarem estes obstáculos e criarem novas organizações de massas combativas. A falta de uma alternativa política ao capitalismo, organizações de classe independentes e direções combativas são as principais razões pelas quais a globalização ainda não resultou em um movimento que supere as tumultuosas lutas dos anos 70 e que colocarão a questão de estabelecer uma nova ordem mundial socialista.

Lênin sobre o Imperialismo

O advento do imperialismo representou um novo estágio para o capitalismo mundial. Em seu livro “Imperialismo, fase superior do capitalismo”, escrito em 1916, Lênin define as principais características desta nova fase no desenvolvimento do capitalismo mundial: “A época da mais recente fase do capitalismo mostra-nos que determinadas relações entre os grupos capitalistas crescem baseadas na divisão econômica do mundo, enquanto que de forma paralela e em conexão com isto, crescem determinadas relações entre grupos políticos, entre os estados, na base da divisão territorial do mundo, da luta por colônias, da ‘luta por território econômico’”.

Depois, no mesmo livro, Lênin explica: “Se fosse necessário oferecer a definição mais resumida possível de imperialismo deveríamos dizer que o imperialismo é a fase monopolista do capitalismo. Tal definição incluiria o principal, pois, por um lado, o capital financeiro é o capital bancário de alguns grandes bancos monopolistas fundidos com o capital dos grupos monopolistas de industriais e, por outro lado, a divisão do mundo é a transição da política colonial que se estende sem obstáculos às regiões ainda não apropriadas por alguma potência capitalista para a política colonial de posse monopolista dos territórios do globo que já foram completamente divididos”.

“Mas definições muito resumidas, ainda que convenientes, pois contém o principal, são inadequadas, já que traços muito importantes do fenômeno que é preciso definir devem ser especialmente deduzidos. Assim, sem esquecer o valor condicional e relativo de todas as definições em geral, que nunca podem abranger todos os aspectos de um fenômeno em seu desenvolvimento completo, devemos dar uma definição do imperialismo que inclua seus seguintes cinco traços fundamentais: 1)a concentração de produção e capital se desenvolveu a um grau tão elevado que criou monopólios que desempenham um papel decisivo na vida econômica; 2) a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, nas bases deste “capital financeiro”, de uma oligarquia financeira; 3) a exportação de capital diferentemente da exportação de mercadorias adquire importância excepcional; 4) a formação de associações internacionais monopolistas que dividem o mundo entre si; 5) a divisão territorial de todo o mundo entre as maiores forças capitalistas é terminada. O imperialismo é o capitalismo na fase de desenvolvimento em que a dominação dos monopólios e do capital financeiro se estabeleceu; na qual a exportação de capital adquiriu marcada importância; na qual a divisão do mundo entre trusts internacionais começou; na qual a divisão de todos os territórios do globo entre as maiores forças capitalistas terminou”.

O que Lênin analisou foi a fase inicial do imperialismo. Ainda baseado no domínio colonial – mas onde gigantes monopólios começaram a desempenhar um papel dominante na economia mundial. O período precedente à I Guerra Mundial (1870-1914) foi um período de rápido crescimento e da criação de um mercado mundial. Existiam razões econômicas, assim como políticas, por trás do colonialismo. O colonialismo foi um meio de abrir mercados e de explorar novas áreas do mundo, assim como, de ganhar prestígio e poder na cena mundial. “A divisão de todos os territórios do globo entre as maiores forças capitalistas foi terminado”, escreveu Lênin. Uma nova re-divisão do mundo, refletindo as relações de força reais (o surgimento do imperialismo dos Estados Unidos e da Alemanha) poderia continuar somente na esteira de crises econômicas e derrotas da classe trabalhadora e de guerras. O período entre 1914-1945 foi de guerras, revoluções, depressão econômica e protecionismo (o comércio mundial entrou em colapso colapsou nos anos 30).

As conseqüências da II Guerra Mundial criaram uma nova divisão do globo. Ninguém poderia ter previsto o caráter da II Guerra Mundial e suas conseqüências. Assim como ninguém poderia ter previsto que os líderes social-democratas reformistas e os stalinistas (os partidos comunistas) seriam capazes de salvar o capitalismo na Europa e, portanto, atrasar a revolução socialista no mundo por décadas.

Relações pós II Guerra Mundial

As novas relações mundiais criadas como conseqüência da II Guerra Mundial viram o imperialismo dos EUA tornar-se a força dominante e suprema no mundo capitalista e o enorme fortalecimento do regime stalinista na União Soviética – o que ajudou a estabelecer o stalinismo em metade do território da Europa após o Exército Vermelho ter derrotado a Alemanha nazista.

A divisão do mundo e a formação de duas super-potências, os EUA e a União Soviética, que lutaram para manter e expandir suas respectivas esferas de influência, lançou uma sombra sobre todos os grandes eventos internacionais. Esta rivalidade abriu caminho para uma disputa por armamento nuclear, para a maior construção militar da história e para a Guerra Fria. Na esteira de uma disputa militar insana e destruidora um influente complexo militar-industrial formou-se, o qual ainda é um enorme fardo na sociedade. Esta ordem mundial terminou em 1989-90, quando o muro de Berlim caiu e os regimes stalinistas entraram em colapso.

No período pós-guerra, os grandes movimentos por independência nacional e o crescimento no custo do comando imperialista direto compeliram as forças imperialistas a desistir do colonialismo. O imperialismo colonial saiu para a entrada do neo-colonialismo – uma nova fase ou estágio do imperialismo. Os velhos poderes cederam independência política, mas mantiveram o controle econômico direto ou indireto sobre os antigos territórios coloniais. Este controle econômico foi exercido efetivamente com um crescimento excepcional do capitalismo monopolista durante 1950-75. Os monopólios ocidentais controlaram totalmente, e ainda controlam, a produção e o comércio mundial.

Muitos fatores econômicos e políticos estavam por trás do fim do longo crescimento capitalista, a época dourada do capitalismo, que se construiu sobre as ruínas da II Guerra Mundial. Porém, entre 1974-75, o mundo experimentou sua primeira crise e recessão econômica simultânea (desde o fim da II Guerra Mundial). A queda no lucro e, ao mesmo tempo, a crescente inflação (a taxa de aumento dos preços) mandou aos capitalistas uma clara mensagem de que o boom esgotou a si mesmo. “Globalização” tornou-se um meio de tentar restaurar a lucratividade e de tentar conseguir que uma nova ideologia capitalista fosse construída. A globalização não surge de um plano pensado ou por causa de algum tipo de conspiração. Foi a própria crise que compeliu os capitalistas a encontrar outras maneiras de aumentar seus lucros e porção do produto interno bruto. Esta reconstrução capitalista global inevitavelmente significava pressionar os trabalhadores e os pobres; downsizing (prática de enxugamento massivo de pessoal) e destruição da capacidade industrial, desmantelamento do estado de bem-estar social, abolição de subsídios para comida, intensificação da exploração, desregulamentação, privatização e flexibilização do trabalho e abolição do controle sobre o capital. Além disso, o processo de globalização teve um poderoso ímpeto com a queda do Muro de Berlin em 1989.

Neoliberalismo

Neoliberalismo é a expressão política da globalização. Em termos econômicos, a globalização é impulsionada por um rápido crescimento no comércio mundial, na exportação do capital, no investimento estrangeiro direto e numa verdadeira internacionalização da produção. O número de companhias operando no plano global teve um desenvolvimento espetacular nos últimos 15 anos. Isto foi acompanhado de uma rápida expansão da produção internacional e da dependência da exportação. Um aspecto principal da globalização é o aprofundamento do processo de integração econômica e do desenvolvimento de uma parcialmente nova divisão internacional do trabalho. As companhias multinacionais construíram uma rede global sofisticada de fornecedores e sub-empreiteros. Isto, por sua vez, sublinhou o fato de que a luta para mudar a sociedade deve ser armada com uma perspectiva internacional, que a luta dos trabalhadores e da juventude em qualquer país deve tentar ganhar apoio internacional.

O objetivo das companhias multinacionais de obter o máximo de lucros é a força impulsionadora por trás da globalização. A economia mundial é liderada por algumas centenas de gigantescas multinacionais, as quais são muitas vezes maiores que nações. Muitos setores da economia global são controlados por somente um punhado de companhias multinacionais.

Mais de 50 das 100 maiores economias do mundo são companhias multinacionais. O conjunto das vendas das 200 maiores corporações excede o produto interno bruto total de todos os países do mundo sem considerar as nove maiores economias. As multinacionais também tornaram-se maiores e mais poderosas depois da recente onda de fusões e aquisições internacionais, isto é, a absorção de uma companhia por outra. Isto significa que a concentração de riqueza e capital alcançou um nível sem precedentes.

As companhias multinacionais dão conta de quatro quintos da produção industrial no mundo e mais de dois terços do comércio mundial. O comércio interno das companhias multinacionais constituem mais de 40% do comércio mundial. Além disso, o comércio interno é frequentemente usado como um meio de evitar pagar impostos.

O Estado-nação ainda é relevante?

Isto significa que o estado-nação está se tornando irrelevante, tal como alguns comentaristas argumentaram? Certamente o capitalismo foi capaz de, parcialmente, superar o estado-nação pelo desenvolvimento do mercado mundial. Alguns entusiastas da globalização referem-se às companhias “transnacionais” se espalhem pelo mundo, livres de qualquer controle. Porém, o termo multinacional é uma descrição mais acurada. Dificilmente qualquer uma das enormes companhias multinacionais pode ser descrita como “transnacional”. As companhias multinacionais não são completamente livres ou “sem-lar”. Elas operam numa escala global, mas possuem fortes raízes por meio de propriedade, produção, emprego, gerência, pesquisa e desenvolvimento em seus respectivos países de origem. Sejam companhias grandes ou pequenas, elas ainda dependem, em algum grau, de mercados nacionais ou regionais, infra-estrutura e várias formas de proteção do estado (subsídios, desconto de impostos, proteção legal, etc.) oferecidas por seus próprios governos nacionais.

Outro traço importante da globalização é que a especulação substituiu a produção como a atividade econômica mais lucrativa, o que, de certa forma, mostra que o sistema como um todo alcançou um beco sem saída. É surpreendente que Hardt & Negri não apontam para a natureza especulativa e parasitária do capitalismo moderno, o que espalha corrupção.

A globalização é um “sistema fluido, com uma expansão infinita e altamente organizado que abrange toda a população do mundo”, mas que carece de qualquer “local de poder”. escreveu o New York Times, em 7 de julho de 2001, assumindo as visões de Império.

Muitos analistas capitalistas afirmam que a globalização é um novo sistema tecnológico-econômico baseado no micro chip e gerido por investidores financeiros e fundos e corporações multinacionais, livres de qualquer estado-nação ou estruturas de poder. Estas idéias pós-modernistas recebem eco, desde um ponto de vista esquerdista, de Hardt & Negri.

Mas tal como a revista de esquerda dos EUA Montly Review comentou: “A noção de uma hegemonia de um mercado global livre sem o estado-nação e qualquer centro de poder discernível (somente instrumentos do mercado altamente visíveis) significa uma concepção de capitalismo que tornou-se, virtualmente, sinônimo de globalização. É afirmado que não há alternativa, porque não há nada fora do sistema e não há um centro dentro do sistema. O nevoeiro ideológico que impregna todos os aspectos do debate sobre a globalização está destinado a, eventualmente, dissipar, na medida em que se tornar claro que as contradições do capitalismo, que nunca foram superadas, estão presentes de uma forma mais universal e mais destrutiva do que nunca” (Montly Review, janeiro de 2002).

Império não está afirmando que o sistema não pode ser transformado, mas assim que a questão de como a transformação pode ser feita é colocada os autores perdem o contato com toda a realidade. Eles esperam que a migração e o poder quase místico da “recusa ao trabalho” irão fazer todo o trabalho de uma transformação significativa.

No Prefácio de Império os autores fazem afirmações insustentáveis e transformam hipóteses em “fatos”, os quais formam as bases das quais suas conclusões são tiradas. Infelizmente este método é algo comum no livro. Os autores assumem que a globalização é “irresistível e irreversível” e seguindo esta noção eles argumentam que um novo Império “sem fronteiras” está ganhando forma. Mas como um Império pode se manifestar sem um centro que tome as decisões ou um centro de poder? Não há nenhum número de telefone ou mesmo uma caixa postal para o Império. Ao invés disso, supõe-se que ele está em todo o lugar e unido por redes difusas. Os autores afirmam: “nosso Império pós-moderno não tem Roma” (p. 338). Lendo Império você não pode deixar de perguntar a questão: onde está o poder a ser derrubado?

Marxismo versus pós-modernismo

Hardt & Negri tentam reconciliar as idéias e os métodos do socialismo revolucionário (marxismo) com o que pode ser descrito como a onda pós-modernista dentro da esquerda internacional. A tarefa consiste em “reorganiza-los e canaliza-los [os processos de globalização] para novos objetivos. As forças criadoras da multidão que sustenta o Império são capazes também de construir, independentemente, um Contra-império, uma organização política alternativa de fluxos e intercâmbios globais” (p. 15). O objetivo é “construir uma nova cidade… criar uma nova forma de luta que é baseada não só na oposição direta mas em um tipo de luta por subtração – uma recusa do poder, uma recusa da obediência. Não somente uma recusa do trabalho e uma recusa da autoridade, mas também emigração e movimentos de todos os tipos que recusam os obstáculos que bloqueiam o movimento e o desejo” (citado de Negri, durante uma discussão online, 3 de maio de 2000).

Os autores descartam os sindicatos, “as organizações operárias institucionais” (p. 329) tal como eles os descrevem, a classe trabalhadora industrial e o que eles descreveram como o “velho” internacionalismo proletário. De acordo com os autores, a luta contra o Império não necessita de consciência coletiva e organização de classe ou qualquer programa, tática ou estratégia. A libertação virá de qualquer forma na medida em que os oprimidos resistem e o Contra-império ganha força.

O mundo, porém, não é comandado por um “império” imaginário, mas pelas forças capitalistas dominantes e pelas classes dominantes da “Tríade” dos Estados Unidos, estados da União Européia e do Japão. O imperialismo está longe de estar “morto”; a época que o imperialismo entrou com o processo de globalização é um novo estágio ou fase. A classe dominante dos Estados Unidos viu a globalização como um meio de expandir sua posição no mercado mundial ao custo de outras forças capitalistas. Isto aumenta as contradições inerentes ao capitalismo e, ao mesmo tempo, abriu espaço para o re-surgir de um ânimo anti-capitalista dirigido, especialmente, contra as multi-nacionais dos EUA e a natureza super-exploradora do imperialismo.

Império foi escrito antes das mudanças nas relações mundiais conseqüentes aos eventos de 11 de setembro de 2001. Já se provou que muitas suposições feitas pelos autores são falsas ou unilaterais, tais como: “A polícia mundial americana não age movida por interesse imperialista, mas por interesse imperial” (p. 199). Os Estados Unidos, de acordo com os autores, não agem no interesse de sua classe dominante, mas “no interesse universal” (p. 198). Não há menção sobre rivalidade, divisões e competição entre as diferentes classes dominantes e poderes imperialistas no livro. Mas se a classe dominante e o governo norte-americano não agem primariamente em defesa da hegemonia, dos mercados, dos lucros e do prestígio do capitalismo dos Estados Unidos, então o que dita as políticas e as ações? As decisões precisam ser tomadas em algum lugar e elas são tomadas em Washington, não por corpos “supranaturais” espalhados através do mundo. A reação ao 11 de setembro e suas conseqüências ilustraram o quanto a classe dominante dos Estados Unidos está preparada para defender e expandir seu poder e seu domínio. A presente tendência de unilateralismo por parte de George W. Bush e sua administração é o oposto do que é descrito como “universalismo” nas páginas de Império. “A guerra contra o terrorismo é simplesmente um eufemismo para aumentar o controle dos Estados Unidos no mundo, seja projetando força através de seus porta-aviões, seja construindo novas bases militares na Ásia Central”, afirma o proffessor Paul Rodgers do Departamento de Estudos sobre a Paz da Universidade de Bradford (London Observer, 10 de fevereiro de 2002).

A reafirmação do poder e do unilateralismo dos EUA ao preço dos outros está destinada a alimentar instabilidade, assim como tensões, entre as nações e os diferentes blocos capitalistas. Os autores cometem um erro quando eles assumem que o capitalismo foi capaz de superar as barreiras postas pelo estado-nação e pela propriedade privada dos meios de produção.

A presente tendência rumo ao unilateralismo em algum estágio, com certeza, reverterá e a classe dominante dos EUA pode ser compelida a procurar outros caminhos alternativos para defender sua posição dominante.

O que é surpreendente é que os autores não oferecem argumentos ou números reais para substanciar sua afirmação de que a globalização conduziu ao nascimento de uma ordem social, política e econômica totalmente nova – o Império. Ao invés de analises sobre o passado, o presente e o futuro, o leitor encontra volumosas citações de um incontável número de pensadores e filósofos acrescentados por comentários abstratos, tais como o seguinte: “o poder está em toda parte, mas está em toda parte porque em toda parte está em jogo o nexo entre virtualidade e possibilidade, um nexo que é província exclusiva da multidão” (p. 383). Como este trecho ilustra, algumas vezes Império se torna impossível de ler.
Papel do FMI, da OMC e etc.

Hardt & Negri afirmam que as organizações e instituições capitalistas internacionais tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio (OMC), Fórum Econômico Mundial de Davos, etc. são parte de uma estrutura de poder supranacional. Mas estas organizações e a reunião da elite capitalista em Davos antes de ser parte de “uma estrutura supranacional” são meios das potências imperialistas de impor uma agenda neoliberal e abrir novos mercados para a exportação de bens e capital, isto é, para salvaguardar os interesses do capitalismo ocidental em geral e do imperialismo dos EUA em particular.

Por exemplo, o FMI está sob controle dos EUA de tal forma que seu plano de emergência para a Argentina (em 2002) foi elaborado pelo Ministério de Finanças dos EUA.

Durante a crise econômica no sudeste da Ásia (1997-98) o imperialismo dos EUA, depois de distanciar qualquer tentativa do capitalismo japonês intervir, usou o FMI como uma cobertura para expandir sua influência. Representantes do Ministério de Finanças dos EUA eram os encarregados do time do FMI que negociavam com os diferentes países do sudeste da Ásia atingidos pela crise. “Os EUA comportaram-se como saqueadores depois de um ciclone econômico”, tal como afirmou um dos patrões da Austrália. A revista dos EUA Newsweek, descreve este tipo de intervenção imperialista clássica nas seguintes palavras: “Os americanos retornaram com grande força [para o sudeste da Ásia]. Desta vez, na forma de bancos de investimento de bancos dos EUA, fundos de ativos e especuladores como George Soros, todos eles comandando uma onda de triunfalismo assim que os poderosos mercados ocidentais transbordaram completamente o fechado sistema financeiro que o Japão inspirou por toda a Ásia. Assim que o contágio asiático derrubou economia após economia, as firmas dos EUA estão abrindo estes sistemas com uma ferocidade que 150 anos de negociações dos EUA não alcançariam”. Se isto não é imperialismo, o que é?

“O proletariado já não é o que era” (p. 72), escrevem os autores de Império. Eles dispensam a classe trabalhadora e suas organizações políticas e sindicais. Eles são coisas do passado e, ao invés de partidos, os autores apresentam a idéia de “auto-organização” e mencionam o movimento Zapatista como um modelo a seguir.

É notável que ao listar muitos dos movimentos e lutas dos anos 60, os autores não mencionam a grande greve geral de 10 milhões na França em 1968: um movimento tão poderoso que o presidente francês, Charles de Gaulle, disse para o embaixador dos EUA naquele período: “Houve uma revolução comunista na França e não há nada que possamos fazer sobre isto”. Depois disto, de Gaulle, fugiu para uma base militar na Alemanha.

O internacionalismo proletário e mesmo a luta pelo socialismo são consideradas, por Império, como velhas e ligadas a uma era quando o estado-nação era uma parte orgânica do capitalismo. Mas as condições atuais, escrevem os autores, demandam um novo movimento “que corresponde aos regimes informais de produção pós-fordiano” (p. 433). Deixando de lado que o comando dos patrões e a estrutura hierárquica do capitalismo não são exatamente um “regime informal”, o livro tem pouco mais a dizer sobre a luta nos locais de trabalho. Ele nem mesmo menciona o fato de que a globalização reforçou a necessidade do “internacionalismo proletário” na ação.

A anulação da classe trabalhadora e o silêncio sobre a necessidade de construir partidos revolucionários e socialistas genuínos sucedem as falsas premissas e análises feitas no início do livro. As hipóteses dos autores nunca se tornarem mais do que abstrações feitas com uma linguagem obscura e quase-intelectual. Afirmação depois de afirmação é feita sem ser substanciada. A análise de Lênin do “imperialismo e de suas crises”, por exemplo, é apresentada como aquela que leva “diretamente para a teoria do Império” (p. 254). Mas Lênin argumentou o oposto contra os “super-globalizadores” de seu tempo.

Nas páginas anteriores de Império, os bolcheviques são acusados de terem entrado “no terreno da mitologia nacionalista” (p. 129) na análise da abordagem marxista e sensível destes à questão nacional e na luta das nacionalidades oprimidas contra o Czarismo na Rússia – o que Hardt & Negri enxergam como uma concessão ao nacionalismo. Eles não oferecem argumento para apoiar esta extraordinária, mas também vaga, afirmação.

O que Hardt & Negri fazem é extrair a última conclusão do que pode ser descrito como uma teoria da “super-globalização”. A globalização, porém, de fato agravou as contradições fundamentais inerentes ao capitalismo, isto é, a colisão entre as forças de produção e as relações de produção (o modelo social e político em que o sistema capitalista opera: relações internacionais, o papel do estado-nação, o governo, relações entre classes, etc.). É esta colisão básica que leva às crises, guerras e revoluções.

Contradições do capitalismo

O capitalismo por sua natureza é incapaz de desenvolver nenhuma tendência única para sua conclusão final. O capitalismo monopolista não abole a anarquia do mercado ou da competição. A presente ordem capitalista internacional é apenas mais um momento na história, não seu ponto final. A globalização, assim como qualquer outra fase no desenvolvimento do capitalismo, semeia as sementes de sua derrocada. O Estado-nação e a propriedade privada dos meios de produção agem cada vez mais como barreiras absolutas para o desenvolvimento da sociedade.

O capitalismo ainda é enraizado no Estado-nação que é uma formação social com elementos históricos, tais como uma linguagem comum, a cultura, a propriedade territorial e etc. Cada classe dominante nacional depende de vários tipos de apoio e proteção oferecidos por seu aparato estatal. Em última análise, o estado capitalista é reduzido aos “corpos de homens armados” (a polícia, militares, agências de inteligência, etc.) e seus apêndices materiais, isto é, prisões e etc. O estado não é um corpo “neutro” na sociedade capitalista; ele está firmemente sob controle da classe capitalista. O estado oferece aos capitalistas uma proteção contra competidores externos e “o inimigo interno”, tal como Margaret Thatcher nomeou os mineiros britânicos em greve durante os anos 80.

Seja o que for que os capitalistas afirmam sobre as “forças auto-reguladoras do livre mercado”, quando eles são jogados contra o muro gritarão por ajuda, proteção e apoio de seu próprio aparato estatal. Em resposta a uma crise econômica nos EUA, o presidente Bush decidiu impor tarifas à importação de aço de outros países e continuar com os subsídios para seu próprio setor agrícola. “O sr. Bush aumentou as tarifas no aço importado, protegeu os produtores de madeira da competição canadense e assinou de forma muito animada uma lei sobre agricultura que regride por volta de 30 anos no curso do livre comércio na agricultura (Financial Times, 13 de junho de 2002).

Assim que uma nação capitalista, ou grupo de nações, se expande ao preço da posição de outras, sempre existirá uma tendência para o protecionismo nacional ou para o surgimento de blocos continentais ou regionais.

A natureza de todo acordo entre estados capitalistas tende a ser temporária e difícil, refletindo o balanço presente de forças. Diante de crescentes tumultos sociais e políticos em casa, de uma competição mais dura no mercado mundial, as diferentes classes capitalistas nacionais farão o que for necessário para proteger a própria pele. O capitalismo não possui qualquer princípio sagrado que não seja o impulso por lucro. Uma coisa é estar a favor de uma moeda única, livre comércio e cooperação internacional quando “todos são vencedores”. Mas quando as margens diminuem, os mercados são perdidos, os capitalistas gritam para o estado por proteção contra a competição externa e para implementar medidas que fortaleçam suas posições ao preço de outras. Isto se expressa principalmente na forma de diferentes blocos agindo contra outros, mas também de países agindo contra um rival específico. Um protecionismo emergente e medidas para controlar e restringir o fluxo de capital começa a reverter os rumos da globalização, com algumas similaridades com a reversão do processo de rápida integração no início do século XX que deflagrou na I Guerra Mundial e com a crise dos anos 30.

As reivindicações dos trabalhadores necessitam de um programa político
O Império imaginário é comandado, é reivindicado por uma rede – que forças estão incluídas nesta rede não é explicado – e baseia seu poder no dinheiro, na bomba (forças de destruição) e no controle da comunicação e da informação. Por conseqüência, o capitalismo mundial entrou na era pós-industrial e, de acordo com os autores, esta é a razão de que a classe operária industrial “perdeu sua posição hegemônica” (p. 277).

A definição de Império de todo o estrato oprimido como parte de uma “multidão” é uma outra forma de reduzir a classe trabalhadora a, no máximo, um papel auxiliar em lutas futuras. Além disso, os autores totalmente ignoram as conseqüências políticas e ideológicas do colapso do stalinismo.

Os socialistas sempre argumentaram contra aqueles que definem a classe trabalhadora como somente os trabalhadores industriais. Este é um estereótipo, uma definição rígida, que tem pouco a ver com o marxismo. A produção e a distribuição de mercadorias sob o capitalismo moderno tornaram-se mais social e internacional do que nunca, envolvendo diferentes setores dos trabalhadores num plano nacional e global. A produção e a realização de lucros depende não somente de trabalhadores empregados em fábricas.

É graças ao seu papel na produção e na distribuição que a classe trabalhadora se desenvolve e age enquanto um poder coletivo. É sobre este poder e ação coletivos que os autores silenciam. Mas muito pior é que a posição tomada pelos autores tende a alienar os trabalhadores do movimento anti-capitalista.

As condições dos trabalhadores no setor público ou nos serviços são largamente as mesmas condições enfrentadas pelos trabalhadores industriais. Ao mesmo tempo, uma larga seção das classes médias não possuem mais uma posição privilegiada e segura na sociedade. Uma proletarização da classe média está acontecendo em todos os países capitalistas. Uma crise, tal como foi demonstrado pela Argentina e pela Turquia (2001-2002), poderia da noite para o dia levar à pauperização da classe média. A classe média na Argentina hoje é referida como “aqueles que uma vez tinham”.

Os eventos na Argentina ilustraram que a luta para mudar a sociedade necessita ser consciente e armada com um programa político. Os resultados da luta de classes ao fim do dia serão decididos por fatores políticos e o quanto a classe trabalhadora tem consciência de seu papel e de sua força.

O peso social e a força potencial da classe trabalhadora, o trabalhador assalariado, nunca foi maior. Mas a falta de uma alternativa política, de organizações combativas e, acima de tudo, uma liderança capaz de enfrentar a tarefa de liderar a luta para uma transformação socialista, criou um abismo sem precedentes entre o poder potencial da classe trabalhadora e a situação presente de ataques violentos contra os direitos dos trabalhadores.

Afirma-se que Império dará armas para o movimento anti-capitalista com uma compreensão do presente regime capitalista global, mas falha completamente. Trata-se de um caso de novas roupagens do Império: muitas páginas com muito pouco conteúdo.

Escrito em Junho de 2002, traduzido para o português por Fernando Lacerda, dezembro de 2005